sábado, 4 de março de 2017

Bruxelas faz uma dura autocrítica e apresenta os planos da UE ‘pós Brexit’

CLAUDI PÉREZ

Na Europa as causas mais nobres convivem com perturbadora promiscuidade com desconfortáveis áreas de sombra. E essas áreas obscuras não param de crescer: ao conjunto de crises dos últimos tempos, Brexit incluído, soma-se agora a incerteza política, com o crescimento da extrema direita. Bruxelas apresentou na quarta-feira o esperado Livro Branco sobre o Futuro da Europa. Paradoxalmente, o mais interessante desse exercício de perspectiva é o olhar pelo retrovisor: a Comissão faz um incomum e duro exercício de autocrítica sobre seu papel na crise do último decênio.

UE evitou os mea culpa nos últimos anos apesar da péssima gestão da crise, em um estado de negação permanente do qual só saía à beira do abismo. A Comissão corrigiu o rumo das políticas econômicas com um pouco mais de flexibilidade fiscal e um plano de investimento, mas nunca fez nada parecido a uma autocrítica. Até a quarta-feira: o Livro Branco oferece vários cenários sobre a nova UE sem o Reino Unido e, de passagem, lança uma mensagem clara e direta sobre o papel das instituições europeias nos últimos tempos. A crise pôs a UE à prova. E a União demonstrou uma resistência formidável. Mas também afloraram graves problemas: “A União esteve abaixo das expectativas na pior crise financeira, econômica e social do pós-guerra”, resume o texto.

A Grande Recessão se transformou, na Europa, em uma crise existencial que deixou mais do que cicatrizes. “A recuperação está mal distribuída entre a sociedade e as regiões. Solucionar o legado da crise, do desemprego persistente aos altos níveis de endividamento, continua sendo uma prioridade urgente”, aponta Bruxelas, consciente de que o mal-estar social com a globalização indiscriminada explica, em parte, fenômenos como o Brexit. Quase 10 anos depois da quebra da Lehman Brothers, a Europa ainda não recuperou a renda per capita nem o índice de desemprego de antes da crise. Ao ponto de o legado da Grande Recessão ameaçar um dos princípios pétreos do europeísmo: “Os acontecimentos alimentaram dúvidas a respeito da economia social de mercado e sua capacidade de fazer que cada geração viva melhor que as anteriores”. “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial existe um risco real de que os jovens vivam pior do que seus pais”, acrescenta.

A UE é o maior mercado comum do mundo. O euro é a segunda moeda mais usada. A diplomacia europeia liderou o recente acordo nuclear com o Irã, e o doclima em Paris. Mas os problemas estão aí: a segunda economia do bloco está de saída, a extrema direita abarca cerca de 25% dos votos na França. “O papel da Europa no mundo está diminuindo”, alerta o Livro Branco, em termos de população e PIB, e mesmo num conceito muito mais fluido como o atrativo internacional.

E um dos pilares básicos está em questão: a Comissão admite que a Europa “não pode continuar sendo ingênua: o soft power já não basta para ser poderoso quando a força prevalece sobre as regras”, diz em uma referência tácita à invasão da Ucrânia por parte da Rússia de Putin ou às diatribes de Trump. A UE “continua tendo um forte apoio”. Mas “já não é incondicional”. Há 10 anos, metade dos europeus confiava na UE; hoje, essa confiança se limita a um terço dos cidadãos.

O diagnóstico, no final das contas, é demolidor, e em sua esmagadora sinceridade contrasta com a formidável complacência que caracterizou as instituições. A Comissão se queixa de que os Estados “culpam Bruxelas pelos problemas e nacionalizam os sucessos”, e acrescenta que a população “não é imune” à imagem de desunião” que a Europa mostrou repetidas vezes durante a crise, com o racha entre credores e devedores, ou a queda de braço entre Leste e Oeste nacrise migratória. Por esse lado, e o da crise de defesa e segurança, chega uma das passagens mais sombrias do texto: “Os recentes ataques terroristas abalaram sociedade. As linhas difusas entre ameaças internas e externas estão mudando a forma de pensar a segurança e as fronteiras”. A crise de refugiados “abriu umdebate sobre solidariedade e responsabilidade entre os Estados e colocou em questão o futuro da gestão de fronteiras e da livre circulação de pessoas na Europa”, admite. O presidente Jean-Claude Juncker foi mais otimista perante o Parlamento Europeu: “Qualquer dia triste de 2017 ainda será muito mais alegre que o de nossos antepassados nos campos de batalha”, disse solene, em uma frase que parece saída da descrição de Waterloo de Stendhal.
Cinco cenários para a Europa pós-Brexit

Além desse raro exercício de autocrítica, a Comissão inovou no Livro Brancoapresentado na quarta-feira A Comissão costuma propor iniciativas, que depois são debatidas entre os Estados membros e o Parlamento Europeu até chegar a um texto final. Mas, nos últimos tempos, o braço Executivo da UE ficou absolutamente isolado em propostas de peso, como a proposta de solução da crise de refugiados. Farta de ver os membros culparem a Europa pelos fracassos e monopolizarem os êxitos, Bruxelas optou por um novo formato para desenhar a UE do futuro: expõe cinco cenários e obriga os Governos a dar sua opinião.Juncker tomará partido de uma das vias em seu discurso sobre o Estado da União em setembro. E os líderes terão a última palavra na cúpula de dezembro. As opções, em linhas gerais, são as seguintes:

1. Continuar igual. Aplicar a agenda atual, com avanços nos assuntos de segurança e defesa. O próprio Executivo comunitário admite que a integridade da UE pode ser posta em questão, mas essa via permite “acabar com o reflexo de regular absolutamente tudo”, segundo Juncker.

2. Somente mercado único. Essa é a opção mais minimalista. Preservaria as quatro grandes liberdades e transformaria o mercado comum na única razão de ser da UE, eliminando regulamentações europeias em todo o resto. “Não é minha opção, mas há Governos que querem limitar o papel da Comissão”, apontou o presidente em referência aos países do Leste. Seria uma espécie de sonho britânico transformado em realidade, logo agora que o Reino Unido saiu da União.

3. Diferentes velocidades. A UE com 27 continuaria funcionando como até agora, mas seriam incentivadas as múltiplas velocidades nas agendas fundamentais, para evitar que os vetos impeçam o avanço de quem quiser fazê-lo. A Europa já começou a seguir esse caminho, com a redução das votações por unanimidade para evitar os vetos. A Comissão destaca que essa via – apoiada porAlemanha e França – permitiria avançar em defesa, segurança e união fiscal, mas admite que esse caminho também pode gerar problemas de legitimidade democrática.

4. Menos é mais. Bruxelas oferece a possibilidade de a UE se concentrar nas áreas em que pode ser mais forte, e abandonar as que só geram divisões. Junto com o cenário anterior é, a priori, o mais realista, e tem o apoio de países como aHolanda.

5. Estados Unidos da Europa. A via defendida pelo liberal Guy Verhofstadt e com a qual Jean-Claude Juncker concorreu às eleições de 2014 não tem condições de prosperar: a crise política dos últimos anos fez aflorar enormes diferenças entre os Estados membros. A União se dirigiria dessa forma a uma maior harmonização fiscal, social e financeira, com a possibilidade de colocar em andamento estímulos contra os choques econômicos. Permitiria criar uma União Europeia da Defesa. Esse tipo de salto federal sempre foi o sonho dos pais fundadores da UE, mas não parece factível: Bruxelas admite o risco de “perder parte da sociedade, que acredita que a UE carece de legitimidade ou foi feita com muito poder”.

OS SOCIALISTAS SE SEPARAM
LUCÍA ABELLÁN
Os socialistas buscam seu espaço político uma vez encerrada a grande coalizão no Parlamento Europeu. Diante do apoio tradicional prestado aos grandes símbolos da UE, o grupo socialdemocrata optou na quarta-feira por criticar a proposta da Comissão Europeia. “O Livro Branco nos decepciona. É uma reflexão ao invés de um plano claro para fortalecer nosso projeto. A Comissão não é um corpo burocrático, e sim político”, disse o chefe dos sociais-democratas no Parlamento Europeu, Gianni Pittella, ao presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, que apresentou o projeto no hemiciclo europeu.

Os socialistas entendem que a crise política que assola a Europa exige uma aposta pela integração ao invés de se esboçar cinco cenários para que os Estados decidam. Apesar de tudo, essa postura não tem o apoio de todos os sociais-democratas (por exemplo, os líderes da República Tcheca e da Eslováquia demonstram receio). A Comissão criticou Pittella por colocar seu grupo do mesmo lado dos eurocéticos. Sua equipe refuta essa equiparação e tenta situar-se em uma via intermediária. Com um discurso mais ponderado, a eurodeputada Elena Valenciano deu a Juncker a razão no diagnóstico, mas acrescentou: “Ele se equivoca ao não mostrar o caminho”.

El País - Bruxelas 

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