CLAUDI PÉREZ
Na Europa as causas mais nobres convivem
com perturbadora promiscuidade com desconfortáveis áreas de sombra. E essas
áreas obscuras não param de crescer: ao conjunto de crises dos últimos
tempos, Brexit incluído, soma-se agora a
incerteza política, com o crescimento da extrema direita. Bruxelas apresentou
na quarta-feira o esperado Livro Branco sobre o Futuro da Europa.
Paradoxalmente, o mais interessante desse exercício de perspectiva é o olhar
pelo retrovisor: a Comissão faz um incomum e duro exercício de autocrítica
sobre seu papel na crise do último decênio.
A UE evitou
os mea culpa nos últimos anos apesar da péssima gestão da crise, em
um estado de negação permanente do qual só saía à beira do abismo. A Comissão
corrigiu o rumo das políticas econômicas com um pouco mais de flexibilidade
fiscal e um plano de investimento, mas nunca fez nada parecido a uma
autocrítica. Até a quarta-feira: o Livro Branco oferece vários
cenários sobre a nova UE sem o Reino Unido e, de passagem, lança uma mensagem
clara e direta sobre o papel das instituições europeias nos últimos tempos. A
crise pôs a UE à prova. E a União demonstrou uma resistência formidável. Mas
também afloraram graves problemas: “A União esteve abaixo das expectativas na
pior crise financeira, econômica e social do pós-guerra”, resume o texto.
A Grande
Recessão se transformou, na Europa, em uma crise existencial que deixou mais do
que cicatrizes. “A recuperação está mal distribuída entre a sociedade e as
regiões. Solucionar o legado da crise, do desemprego persistente aos altos
níveis de endividamento, continua sendo uma prioridade urgente”, aponta Bruxelas, consciente de que o mal-estar
social com a globalização indiscriminada explica, em parte, fenômenos como o
Brexit. Quase 10 anos depois da quebra da Lehman Brothers, a Europa ainda não
recuperou a renda per capita nem o índice de desemprego de antes da crise. Ao
ponto de o legado da Grande Recessão ameaçar um dos princípios pétreos do
europeísmo: “Os acontecimentos alimentaram dúvidas a respeito da economia
social de mercado e sua capacidade de fazer que cada geração viva melhor que as
anteriores”. “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial existe um risco real de que os
jovens vivam pior do que seus pais”, acrescenta.
A UE é o
maior mercado comum do mundo. O euro é a segunda moeda mais usada.
A diplomacia europeia liderou o recente acordo nuclear com o Irã, e o doclima em Paris.
Mas os problemas estão aí: a segunda economia do bloco está de saída, a extrema
direita abarca cerca de 25% dos votos na França. “O papel da Europa no mundo está
diminuindo”, alerta o Livro Branco, em termos de população e PIB, e mesmo
num conceito muito mais fluido como o atrativo internacional.
E um dos
pilares básicos está em questão: a Comissão admite que a Europa “não pode
continuar sendo ingênua: o soft power já não basta para ser poderoso
quando a força prevalece sobre as regras”, diz em uma referência tácita à invasão da Ucrânia por parte da
Rússia de
Putin ou às diatribes de Trump.
A UE “continua tendo um forte apoio”. Mas “já não é incondicional”. Há 10 anos,
metade dos europeus confiava na UE; hoje, essa confiança se limita a um terço
dos cidadãos.
O
diagnóstico, no final das contas, é demolidor, e em sua esmagadora sinceridade
contrasta com a formidável complacência que caracterizou as instituições. A
Comissão se queixa de que os Estados “culpam Bruxelas pelos problemas e
nacionalizam os sucessos”, e acrescenta que a população “não é imune” à imagem
de desunião” que a Europa mostrou repetidas vezes durante a crise, com o racha
entre credores e devedores, ou a queda de braço entre Leste e Oeste nacrise
migratória. Por
esse lado, e o da crise de defesa e segurança, chega uma das passagens mais
sombrias do texto: “Os recentes ataques terroristas abalaram sociedade. As
linhas difusas entre ameaças internas e externas estão mudando a forma de
pensar a segurança e as fronteiras”. A crise de refugiados “abriu umdebate sobre solidariedade e
responsabilidade entre os Estados e
colocou em questão o futuro da gestão de fronteiras e da livre circulação de
pessoas na Europa”, admite. O presidente Jean-Claude Juncker foi mais otimista
perante o Parlamento Europeu: “Qualquer dia triste de 2017 ainda será muito
mais alegre que o de nossos antepassados nos campos de batalha”, disse solene,
em uma frase que parece saída da descrição de Waterloo de Stendhal.
Cinco
cenários para a Europa pós-Brexit
Além
desse raro exercício de autocrítica, a Comissão inovou no Livro
Brancoapresentado na quarta-feira A Comissão costuma propor iniciativas, que
depois são debatidas entre os Estados membros e o Parlamento Europeu até chegar
a um texto final. Mas, nos últimos tempos, o braço Executivo da UE ficou
absolutamente isolado em propostas de peso, como a proposta de solução da crise
de refugiados. Farta de ver os membros culparem a Europa pelos fracassos e
monopolizarem os êxitos, Bruxelas optou por um novo formato para desenhar a UE
do futuro: expõe cinco cenários e obriga os Governos a dar sua opinião.Juncker tomará
partido de uma das vias em seu discurso sobre o Estado da União em setembro. E
os líderes terão a última palavra na cúpula de dezembro. As opções, em linhas
gerais, são as seguintes:
1.
Continuar igual. Aplicar a agenda atual, com avanços nos assuntos de
segurança e defesa. O próprio Executivo comunitário admite que a integridade da
UE pode ser posta em questão, mas essa via permite “acabar com o reflexo de
regular absolutamente tudo”, segundo Juncker.
2.
Somente mercado único. Essa é a opção mais minimalista. Preservaria as
quatro grandes liberdades e transformaria o mercado comum na única razão de ser
da UE, eliminando regulamentações europeias em todo o resto. “Não é minha
opção, mas há Governos que querem limitar o papel da Comissão”, apontou o
presidente em referência aos países do Leste. Seria uma espécie de sonho
britânico transformado em realidade, logo agora que o Reino Unido saiu
da União.
3.
Diferentes velocidades. A UE com 27 continuaria funcionando como até
agora, mas seriam incentivadas as múltiplas velocidades nas agendas
fundamentais, para evitar que os vetos impeçam o avanço de quem quiser fazê-lo.
A Europa já começou a seguir esse caminho, com a redução das votações por
unanimidade para evitar os vetos. A Comissão destaca que essa via – apoiada porAlemanha e França – permitiria avançar
em defesa, segurança e união fiscal, mas admite que esse caminho também pode
gerar problemas de legitimidade democrática.
4. Menos
é mais. Bruxelas oferece a possibilidade de a UE se concentrar nas áreas
em que pode ser mais forte, e abandonar as que só geram divisões. Junto com o
cenário anterior é, a priori, o mais realista, e tem o apoio de países
como aHolanda.
5.
Estados Unidos da Europa. A via defendida pelo liberal Guy Verhofstadt e
com a qual Jean-Claude Juncker concorreu às eleições de 2014 não tem condições
de prosperar: a crise política dos últimos anos fez aflorar enormes diferenças entre
os Estados membros. A União se dirigiria dessa forma a uma maior harmonização
fiscal, social e financeira, com a possibilidade de colocar em andamento
estímulos contra os choques econômicos. Permitiria criar uma União Europeia da
Defesa. Esse tipo de salto federal sempre foi o sonho dos pais fundadores da
UE, mas não parece factível: Bruxelas admite o risco de “perder parte da
sociedade, que acredita que a UE carece de legitimidade ou foi feita com muito
poder”.
OS
SOCIALISTAS SE SEPARAM
LUCÍA ABELLÁN
Os
socialistas buscam seu espaço político uma vez encerrada a grande coalizão no
Parlamento Europeu. Diante do apoio tradicional prestado aos grandes símbolos
da UE, o grupo socialdemocrata optou na quarta-feira por criticar a proposta da
Comissão Europeia. “O Livro Branco nos decepciona. É uma reflexão ao
invés de um plano claro para fortalecer nosso projeto. A Comissão não é um
corpo burocrático, e sim político”, disse o chefe dos sociais-democratas no
Parlamento Europeu, Gianni Pittella, ao presidente da Comissão, Jean-Claude
Juncker, que apresentou o projeto no hemiciclo europeu.
Os
socialistas entendem que a crise política que assola a Europa exige uma aposta
pela integração ao invés de se esboçar cinco cenários para que os Estados
decidam. Apesar de tudo, essa postura não tem o apoio de todos os
sociais-democratas (por exemplo, os líderes da República Tcheca e da Eslováquia
demonstram receio). A Comissão criticou Pittella por colocar seu grupo do mesmo
lado dos eurocéticos. Sua equipe refuta essa equiparação e tenta situar-se em
uma via intermediária. Com um discurso mais ponderado, a eurodeputada Elena
Valenciano deu a Juncker a razão no diagnóstico, mas acrescentou: “Ele se
equivoca ao não mostrar o caminho”.
El País -
Bruxelas
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