sexta-feira, 17 de julho de 2015

Roleta grega

João Pereira Coutinho

No dia 5 de julho, os gregos foram às urnas. E, em gesto de coragem, disseram "não" à "austeridade". A Europa exigia que os gregos subissem a idade da aposentadoria? Os gregos disseram "não". A Europa exigia aumento de impostos em setores estratégicos do país, como o turismo? Os gregos disseram "não". A Europa desejava mais cortes na despesa do Estado? "Não", "não" e "não".

Foi uma noite de festa em Atenas, provavelmente esgotaram-se as garrafas de "retsina" e Alexis Tsipras, o premiê do país, surgiu perante o seu povo garantindo que tinha mais poder para negociar –e que um acordo com os outros governos europeus (que ele classificou de "mentirosos" e seu ex-ministro das Finanças, de "terroristas") seria conseguido em poucos dias.

O clima era tão heroico que Vladimir Safatle, colunista desta Folha, declarava poeticamente que os gregos tinham "um governo que sabe como a política é a definição do inegociável". O título do texto era ainda mais poético: "Aquele que diz 'não'" (7/7/2015)

Amanheceu em Atenas. E o mesmo premiê que pedira "não" aos seus compatriotas tinha agora uma contraproposta para apresentar em Bruxelas. E que nos dizia essa contraproposta?

Fácil: o leitor pode fazer "copiar+colar" da proposta inicial da União Europeia e terá a nova proposta grega quase "ipsis verbis". Com um pormenor: a "austeridade" que o governo grego recusara era defendida pelo mesmo governo em termos ainda mais violentos (tradução: € 12 bilhões em cortes). Como explicar a mudança de Alexis Tsipras em 24 horas? E como explicar que a utilidade do plebiscito que ele convocou com arrogância suicidaria, abandonando as negociações? Três hipóteses:
a) O premiê grego não leu a coluna de Vladimir Safatle.
b) O premiê grego sofre de um distúrbio de personalidade.
c) O premiê grego brincou com o destino do país, esperando que o "não" assustasse a Europa inteira.

Eliminando as duas primeiras hipóteses como irracionais, resta a terceira: o mesmo governo que disse "não" à austeridade e insultou os credores com vigor, olhou para o abismo econômico que tinha à frente e, no dia seguinte, já estava a pedir aos credores (aos "mentirosos", aos "terroristas") um novo cheque de € 50 bilhões para não naufragar.
Perante esta história, digna de Marx (o Groucho, não o Karl; como dizia o primeiro, "esses são os meus princípios; mas se você não gosta, eu tenho outros"), será de admirar que a Europa considere o governo grego um parceiro "não confiável" (para usar um eufemismo)?

E será de admirar que com a economia do país paralisada durante duas semanas –bancos fechados, controlo de capitais etc.– as necessidades de financiamento grego já estejam acima dos € 80 bilhões?

O resultado do circo está à vista: depois de 17 horas de negociações, a Grécia está de joelhos como nunca esteve em cinco anos de ajustamento. Da subida de impostos à imposição das privatizações; do controlo das contas do país pelo FMI à venda de ativos públicos (€ 50 bilhões), pior era impossível. E agora?

Agora, o governo grego tem 48 horas para passar no Parlamento este novo plano, que transforma o plano original recusado por Tsipras em brincadeira de crianças.

Desconheço se Atenas aceitará a terapêutica. Desconheço se o governo de Tsipras irá sobreviver a esta monumental humilhação. E mesmo que o Parlamento aceite tudo, desconheço se o povo grego ficará tranquilamente em casa, depois das ilusões (e das traições) do seu próprio governo.

Por agora, o "caso grego" apenas oferece uma lição aos pequenos "che guevaras" que gostam de brincar à política com a vida de milhões de seres humanos: ocultar a realidade com mentiras e soberba é o primeiro passo para que a realidade nos esmague sem perdão. 

João Pereira Coutinho

Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.


Folha de São Paulo

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