quinta-feira, 16 de julho de 2015

De volta ao passado

Affonso Celso Pastore

Nos últimos 50 anos, foram frequentes os períodos nos quais o País foi penalizado por sua negligência em relação à disciplina fiscal. Nas décadas de 1970 e 1980 não havia disciplina fiscal, e a dívida pública só não teve um crescimento explosivo devido à receita do “imposto inflacionário”, que frequentemente atingia níveis próximos de 3% do PIB, fazendo o papel que atualmente é exercido pelos superávits primários. O custo dessa estratégia foi um processo de inflação contínua e crescente que nos levou à hiperinflação. O Plano Real, em 1994, estabilizou a inflação e pôs um ponto final ao financiamento inflacionário dos déficits públicos. Depois de alguma hesitação, entre 1994 e 1998, o governo FHC reconheceu que seria necessário interromper o contínuo crescimento da relação dívida/PIB e comprometeu-se a cumprir metas para os superávits primários em tamanho suficiente para estabilizá-la ou mesmo reduzi-la. 

Um segundo capítulo dessa história desenrolou-se em 2002/2003. Naqueles anos, uma elevada proporção da dívida pública era dolarizada, tornando-a altamente dependente do comportamento da taxa cambial. Ninguém sabia se Lula, uma vez eleito, seguiria a rota de FHC na política fiscal ou se colocaria em prática o discurso do PT que pregava o repúdio ao pagamento da dívida pública. O medo de que caminhássemos para um default provocou intensa fuga de capitais, depreciando o real e elevando a relação dívida/PIB, aumentando ainda mais o risco da insolvência do governo, provocando novas ondas de fugas de capitais e de depreciação cambial. 

Estava instalada uma crise com uma componente de profecia autorrealizável, e o círculo vicioso só foi rompido quando a equipe que saía fechou um acordo de transição com o FMI com a anuência de Lula. Entre outras coisas, o novo governo se comprometia a realizar superávits primários suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB. Embora tal compromisso fosse repetido à exaustão pelo novo ministro da Fazenda, não teria tido eficácia caso ficasse apenas em palavras. A crise só foi abortada porque o governo não teve nenhum pudor de romper com a pregação do PT, passando a executar uma política fiscal muito próxima à colocada em ação por FHC no seu segundo mandato. O cumprimento das metas de superávits primários e o controle da inflação, permitido pelo regime de metas, juntamente com a acumulação de reservas internacionais, começou a reduzir os riscos, culminando com a promoção brasileira ao “grau de investimento”. 

Fórmula mágica. Um terceiro capítulo dessa história teve início no segundo mandato de Lula. Gradualmente, o governo foi abandonando a disciplina fiscal, culminando na total indisciplina que caracterizou o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Inicialmente, a desculpa para o aumento de gastos e a redução de impostos foi a necessidade de realizar “ações contracíclicas”, que prosseguiram mesmo depois que o Brasil já havia superado completamente o contágio da crise externa. O que havia, na realidade, era a crença de que uma dose suficientemente elevada de estímulos à expansão da demanda agregada faria o milagre de libertar o “espírito animal” dos empresários, e essa seria a fórmula mágica que provocaria o aumento dos investimentos e colocaria o País na rota do crescimento acelerado e sustentável. Invocava-se o “espírito de Keynes”, que, numa leitura tendenciosa e totalmente distorcida, teria nos ensinado que o estímulo aos investimentos é apenas uma questão de vontade política. Levada ao exagero, essa crença fez a presidente Rousseff afirmar, repetidas vezes, que “gasto é vida”. Melhor seria reconhecer que, no curto prazo, gasto é voto! 

O desarranjo fiscal teve também a faceta das transferências por fora do orçamento para os bancos oficiais, totalizando 10% do PIB, que destruiu a possibilidade de se utilizar a dívida líquida do setor público para aferir a solvência do governo. O milagre da aceleração do crescimento não ocorreu e, depois do benefício colhido nas urnas, sobrou o custo, previsível, de que a forte redução dos superávits primários colocou a dívida bruta em uma trajetória de crescimento contínuo. O ponto culminante dessa sequência de erros ocorreu em 2014, quando, em vez de um superávit primário, o governo entregou, em meio a um conjunto enorme de “truques” da contabilidade criativa, um déficit primário recorrente de 1,5% do PIB, deixando pesada herança de gastos a serem pagos nos anos seguintes.

Dívida. Diante de uma dívida em crescimento contínuo, que ameaçava a perda do grau de investimento, era preciso retornar à austeridade fiscal, e os mercados festejaram “a mudança de Dilma” quando Joaquim Levy foi nomeado ministro da Fazenda. Mas um ajuste dessa magnitude não se resolve facilmente. Primeiro, porque, a menos que sejam realizadas reformas que elevem o crescimento econômico e baixem a taxa real de juros, os superávits primários que estabilizam a dívida bruta em relação ao PIB são bem maiores do que as metas de 1,1% e 2% do PIB propostas por Levy para 2015 e 2016. Com alguma dose de otimismo, precisaríamos manter – por vários anos – superávits de no mínimo 2,5% do PIB. 

Segundo, porque nem mesmo no gradualismo proposto por Levy será possível cumprir a meta em 2015, e isso não se deve apenas à recessão, que reduziu as receitas, mas também à incapacidade de convencer o Congresso a aprovar, na íntegra e com rapidez, a totalidade das propostas de cortes e de redução das desonerações tributárias. 

Revelando o seu verdadeiro DNA, o PT se nega a apoiar abertamente as medidas fiscais e nenhum partido político, quer da oposição quer da coalizão que suporta o governo, se dispõe a assumir o ônus do ajuste, principalmente porque não há como escapar da recessão, que deverá ser longa. Um dos erros cometidos nos últimos anos foram ações que levaram ao crescimento dos salários reais muito acima da produtividade média, acarretando o forte crescimento do custo unitário do trabalho medido em reais, que é o grande responsável pela destruição da competitividade da indústria e pela queda das exportações. 

As alternativas são claras: ou o governo consegue executar uma agenda de reformas que eleve a taxa de crescimento e reduza a taxa de juros, fazendo com que superávits primários como os propostos levem à queda progressiva da relação dívida/PIB, ou terá de fazer um esforço fiscal ainda maior do que o atual. Não vejo como fará o milagre de retomar a curto prazo o crescimento acelerado, o que significa que o ajuste fiscal terá de ser aprofundado. 

Embora as agências de classificação de risco silenciem diante da baixa probabilidade de retomada do crescimento e/ou da possibilidade política de elevação do esforço fiscal, o mesmo não ocorre com os mercados. As cotações do CDS brasileiro persistem significativamente acima da média de 2013 e 2014, quando, sob a orientação de Dilma, Mantega destruía o regime econômico herdado de FHC e do primeiro mandato de Lula, e colocando em seu lugar a desastrada “nova Matriz de política econômica”, criada pelo ministro Nelson Barbosa. Todos esses são sinais de que o Brasil está caminhando celeremente na direção de perder o “grau de investimento”. 

Affonso Celso Pastore

Estadão
05 Julho 2015 | 03h 00


Comentário do blog:
A.C.Pastore: “Um dos erros cometidos nos últimos anos foram ações que levaram ao crescimento dos salários reais muito acima da produtividade média, acarretando o forte crescimento do custo unitário do trabalho medido em reais, que é o grande responsável pela destruição da competitividade da indústria e pela queda das exportações. “

Negativo. Não é esse salário de miserável que é o grande responsável pela destruição da competitividade da indústria. Num valor de venda do produto industrial, um dos menores componentes é o salário. Em primeiríssimo lugar vem os impostos, sem falar dos juros.

Os governos municipal, estadual e federal extorquem 40% do PIB só para manter o Estado como um fim em si mesmo. Este é o primeiro problema. O segundo é a taxa de juros. Quanto à produtividade, esta tem que ser perseguida sempre. 

PS. O salário só não é miserável para aqueles que trabalham para multinacionais. E, logicamente, para aqueles que "trabalham" para os governos. No mais, é uma vergonha.

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