Affonso Celso Pastore
Nos últimos 50 anos, foram frequentes os períodos
nos quais o País foi penalizado por sua negligência em relação à disciplina
fiscal. Nas décadas de 1970 e 1980 não havia disciplina fiscal, e a dívida
pública só não teve um crescimento explosivo devido à receita do “imposto
inflacionário”, que frequentemente atingia níveis próximos de 3% do PIB,
fazendo o papel que atualmente é exercido pelos superávits primários. O custo
dessa estratégia foi um processo de inflação contínua e crescente que nos levou
à hiperinflação. O Plano Real, em 1994, estabilizou a inflação e pôs um ponto
final ao financiamento inflacionário dos déficits públicos. Depois de alguma
hesitação, entre 1994 e 1998, o governo FHC reconheceu que seria necessário
interromper o contínuo crescimento da relação dívida/PIB e comprometeu-se a
cumprir metas para os superávits primários em tamanho suficiente para
estabilizá-la ou mesmo reduzi-la.
Um segundo capítulo dessa história desenrolou-se em
2002/2003. Naqueles anos, uma elevada proporção da dívida pública era
dolarizada, tornando-a altamente dependente do comportamento da taxa cambial.
Ninguém sabia se Lula, uma vez eleito, seguiria a rota de FHC na política
fiscal ou se colocaria em prática o discurso do PT que pregava o repúdio ao
pagamento da dívida pública. O medo de que caminhássemos para um default
provocou intensa fuga de capitais, depreciando o real e elevando a relação
dívida/PIB, aumentando ainda mais o risco da insolvência do governo, provocando
novas ondas de fugas de capitais e de depreciação cambial.
Estava instalada uma crise com uma componente de
profecia autorrealizável, e o círculo vicioso só foi rompido quando a equipe
que saía fechou um acordo de transição com o FMI com a anuência de Lula. Entre
outras coisas, o novo governo se comprometia a realizar superávits primários
suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB. Embora tal
compromisso fosse repetido à exaustão pelo novo ministro da Fazenda, não teria
tido eficácia caso ficasse apenas em palavras. A crise só foi abortada porque o
governo não teve nenhum pudor de romper com a pregação do PT, passando a
executar uma política fiscal muito próxima à colocada em ação por FHC no seu
segundo mandato. O cumprimento das metas de superávits primários e o controle
da inflação, permitido pelo regime de metas, juntamente com a acumulação de
reservas internacionais, começou a reduzir os riscos, culminando com a promoção
brasileira ao “grau de investimento”.
Fórmula
mágica. Um terceiro
capítulo dessa história teve início no segundo mandato de Lula. Gradualmente, o
governo foi abandonando a disciplina fiscal, culminando na total indisciplina
que caracterizou o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Inicialmente, a desculpa
para o aumento de gastos e a redução de impostos foi a necessidade de realizar
“ações contracíclicas”, que prosseguiram mesmo depois que o Brasil já havia
superado completamente o contágio da crise externa. O que havia, na realidade,
era a crença de que uma dose suficientemente elevada de estímulos à expansão da
demanda agregada faria o milagre de libertar o “espírito animal” dos
empresários, e essa seria a fórmula mágica que provocaria o aumento dos
investimentos e colocaria o País na rota do crescimento acelerado e
sustentável. Invocava-se o “espírito de Keynes”, que, numa leitura tendenciosa
e totalmente distorcida, teria nos ensinado que o estímulo aos investimentos é
apenas uma questão de vontade política. Levada ao exagero, essa crença fez a
presidente Rousseff afirmar, repetidas vezes, que “gasto é vida”. Melhor seria
reconhecer que, no curto prazo, gasto é voto!
O
desarranjo fiscal teve também a faceta das transferências por fora do orçamento
para os bancos oficiais, totalizando 10% do PIB, que destruiu a possibilidade
de se utilizar a dívida líquida do setor público para aferir a solvência do
governo. O milagre da aceleração do crescimento não ocorreu e, depois do
benefício colhido nas urnas, sobrou o custo, previsível, de que a forte redução
dos superávits primários colocou a dívida bruta em uma trajetória de
crescimento contínuo. O ponto culminante dessa sequência de erros ocorreu em
2014, quando, em vez de um superávit primário, o governo entregou, em meio a um
conjunto enorme de “truques” da contabilidade criativa, um déficit primário
recorrente de 1,5% do PIB, deixando pesada herança de gastos a serem pagos nos
anos seguintes.
Dívida. Diante de uma
dívida em crescimento contínuo, que ameaçava a perda do grau de investimento,
era preciso retornar à austeridade fiscal, e os mercados festejaram “a mudança
de Dilma” quando Joaquim Levy foi nomeado ministro da Fazenda. Mas um ajuste
dessa magnitude não se resolve facilmente. Primeiro, porque, a menos que sejam
realizadas reformas que elevem o crescimento econômico e baixem a taxa real de
juros, os superávits primários que estabilizam a dívida bruta em relação ao PIB
são bem maiores do que as metas de 1,1% e 2% do PIB propostas por Levy para
2015 e 2016. Com alguma dose de otimismo, precisaríamos manter – por vários
anos – superávits de no mínimo 2,5% do PIB.
Segundo,
porque nem mesmo no gradualismo proposto por Levy será possível cumprir a meta
em 2015, e isso não se deve apenas à recessão, que reduziu as receitas, mas
também à incapacidade de convencer o Congresso a aprovar, na íntegra e com
rapidez, a totalidade das propostas de cortes e de redução das desonerações
tributárias.
Revelando
o seu verdadeiro DNA, o PT se nega a apoiar abertamente as medidas fiscais e
nenhum partido político, quer da oposição quer da coalizão que suporta o
governo, se dispõe a assumir o ônus do ajuste, principalmente porque não há
como escapar da recessão, que deverá ser longa. Um dos erros cometidos nos últimos anos foram ações que levaram ao
crescimento dos salários reais muito acima da produtividade média, acarretando
o forte crescimento do custo unitário do trabalho medido em reais, que é o
grande responsável pela destruição da competitividade da indústria e pela queda
das exportações.
As
alternativas são claras: ou o governo consegue executar uma agenda de reformas
que eleve a taxa de crescimento e reduza a taxa de juros, fazendo com que
superávits primários como os propostos levem à queda progressiva da relação
dívida/PIB, ou terá de fazer um esforço fiscal ainda maior do que o atual. Não
vejo como fará o milagre de retomar a curto prazo o crescimento acelerado, o
que significa que o ajuste fiscal terá de ser aprofundado.
Embora
as agências de classificação de risco silenciem diante da baixa probabilidade
de retomada do crescimento e/ou da possibilidade política de elevação do
esforço fiscal, o mesmo não ocorre com os mercados. As cotações do CDS
brasileiro persistem significativamente acima da média de 2013 e 2014, quando,
sob a orientação de Dilma, Mantega destruía o regime econômico herdado de FHC e
do primeiro mandato de Lula, e colocando em seu lugar a desastrada “nova Matriz
de política econômica”, criada pelo ministro Nelson Barbosa. Todos esses são
sinais de que o Brasil está caminhando celeremente na direção de perder o “grau
de investimento”.
Affonso Celso Pastore
Estadão
05 Julho 2015 | 03h 00
Comentário do blog:
A.C.Pastore: “Um
dos erros cometidos nos últimos anos foram ações que levaram ao crescimento dos
salários reais muito acima da produtividade média, acarretando o forte crescimento
do custo unitário do trabalho medido em reais, que é o grande responsável pela
destruição da competitividade da indústria e pela queda das exportações. “
Negativo. Não é
esse salário de miserável que é o grande responsável pela destruição da
competitividade da indústria. Num valor de venda do produto industrial, um dos
menores componentes é o salário. Em primeiríssimo lugar vem os impostos, sem falar
dos juros.
Os governos
municipal, estadual e federal extorquem 40% do PIB só para manter o Estado como
um fim em si mesmo. Este é o primeiro problema. O segundo é a taxa de juros.
Quanto à produtividade, esta tem que ser perseguida sempre.
PS. O salário só não é miserável para aqueles que trabalham para multinacionais. E, logicamente, para aqueles que "trabalham" para os governos. No mais, é uma vergonha.
PS. O salário só não é miserável para aqueles que trabalham para multinacionais. E, logicamente, para aqueles que "trabalham" para os governos. No mais, é uma vergonha.
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