J.R. Guzzo
Democracias,
para existirem de verdade, têm de merecer a própria existência. Não basta
escrever uma Constituição com 250 artigos (e mais de 100 emendas, desde que
passou a valer em 1988), e declarar que o Brasil, por exemplo, é uma democracia
na qual o poder pertence ao povo.
Não
basta afirmar que os direitos e deveres do cidadão são estes e mais aqueles,
dizer que no Brasil há Três Poderes “separados e harmônicos” e jurar que isso
aqui é um “estado de direito”. Não basta, em suma, fazer um desenho mostrando
como o país deve funcionar.
Uma
democracia, para sobreviver, precisa antes de tudo que os cidadãos a defendam –
e eles só vão defender o sistema democrático se estiverem convencidos de que há
razões claras para fazer isso, ou seja, se julgarem que as instituições merecem
realmente ser defendidas. No caso do Brasil, pouca gente acha que essa pasta
que está aí merece algum tipo de defesa.
Porque
haveria de merecer, quando se olha o que os donos da nossa democracia fazem no
seu dia a dia? Todo mundo já cansou de ouvir que as “instituições” são uma
coisa, e as “pessoas” são outra. Pode até ser assim no mundo das ideias. No
mundo das coisas reais não é.
Se a
conduta pública e objetiva das pessoas que operam o sistema democrático é um
insulto diário ao cidadão, não adianta ler para ele um tratado de ciência
política escrito na Sorbonne. O sujeito simplesmente perde o interesse na coisa
toda. Quando acha, depois de anos a fio de desapontamento, que não recebe nada
de útil da democracia, também não vai dar nada por ela. O Brasil está assim já
há um bom tempo. Sempre vão dizer, é claro, que “o povo brasileiro” não
permitirá “nenhuma ruptura com as instituições”. Mas alguém acha, a sério, que
a população irá para a rua defender esses deputados, senadores e ministros do
Supremo que estão aí?
O fato,
que ninguém gosta de comentar, é que as Forças Armadas, hoje em dia, são a
única garantia efetiva que o Congresso, o STF e o resto das instituições têm
para permanecerem em funcionamento. Tomara que continuem assim, porque a
maioria dos brasileiros, neste lamentável ano de 2020, não daria nem uma volta
no quarteirão para salvar a democracia que sustenta com seus impostos. Pelo
contrário, quem se dispõe a ir para a praça pública tem feito exatamente o
contrário: pede o fechamento de tudo.
Qual a
surpresa, aí? Vivemos num país em que 55.000 indivíduos se beneficiam de uma
aberração, inédita no mundo, chamada “foro privilegiado” – ou seja, a lei
brasileira diz, com todas as letras, que essa gente tem mais direitos que os
outros 200 milhões de brasileiros. Não podem, simplesmente, ser julgados
perante a Justiça comum pelos crimes que cometem. Um projeto para suprimir esse
privilégio está parado há 500 dias na Câmara dos Deputados; não é colocado em
votação, simplesmente.
A nova
lei para o saneamento básico, que permitiria às empresas privadas investirem
num setor onde 50% das pessoas não tem esgoto, não vai adiante. Os políticos
querem manter as estatais que mandam na área, e continuar pedindo verbas para
elas; se o problema for resolvido, as verbas param.
O STF,
onde há ministros que conduzem inquéritos criminais secretos, censuram órgãos
de imprensa ou absolvem donos de empresas de ônibus que roubam o erário, impõe
ao País um estado de insegurança jurídica permanente; está destruindo a
possibilidade de se prever o que é certo e o que é errado. O poder executivo
manda sua polícia agredir cidadãos, algemar mulheres e prender crianças, com a
cumplicidade do legislativo, do Ministério Público e da Justiça, a por aí se
vai. Que defesa isso tudo merece?
(Publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, em 3 de maio de 2020)
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