Luís Roberto Barroso
O Brasil
vive a necessidade de enfrentar três tipos distintos de criminalidade, cada
qual com o seu cortejo de malefícios e atrasos civilizatórios: (i) a
criminalidade violenta, que inclui homicídios, latrocínios, roubos e estupros;
(ii) a criminalidade organizada, que inclui as facções criminosas e sua atuação
no tráfico de drogas, de armas e toda a delinquência associada a esses crimes;
e (iii) a criminalidade institucionalizada, que é a praticada de dentro das
instituições, por agentes públicos desonestos. A detecção da lavagem de
dinheiro é decisiva para o enfrentamento tanto do crime organizado quanto da
corrupção entranhada no Estado.
Nesse
sentido, foi um alívio a decisão do Supremo Tribunal Federal, relativamente ao
compartilhamento de dados pela Receita Federal e pelo COAF (rebatizado de UIF).
Como disse em meu voto pela revogação da medida cautelar que havia sido
concedida, não era bom para o Brasil, para a Justiça nem para o Supremo, nesse quadro
e nessa quadra em que o país vive, criar mais dificuldades e entraves
burocráticos para o combate à alta criminalidade. Sem mencionar o descrédito
que nos traria a percepção internacional de que aqui se lava dinheiro com
facilidade.
Tenho
dito e repetido da bancada do Supremo Tribunal Federal que o Brasil foi
devastado, ao longo de muitos anos, por um processo de corrupção estrutural,
sistêmica e institucionalizada. Não foi fenômeno de um governo, de um partido
ou de uma pessoa. Foi o acúmulo histórico de décadas, que um dia transbordou.
A
corrupção nos atrasa na história, com suas consequências desastrosas, que
incluem: a) fraudes em licitações; b) superfaturamento de contratos; c)
propinas em empréstimos e financiamentos públicos; d) propinas em desonerações
e isenções tributárias; e) achaques em CPIs; e f) emendas orçamentárias
parlamentares cujos recursos não chegam ao seu destino.
Tão ruim
quanto o país feio e desonesto que resulta dessa fotografia é o conjunto de
decisões equivocadas que são tomadas pelos motivos errados. É aí que se
materializam as obras inúteis e as aquisições desnecessárias. Tudo provado,
documentado, confessado. Há em curso no Brasil, no entanto, um esforço imenso
para capturar a narrativa do que aconteceu no país. Muita gente querendo
transformar a imensa reação indignada da sociedade brasileira e de algumas de
suas instituições no enfrentamento da corrupção numa trama para perseguir gente
proba e honesta. E, para isso, não se hesita em lançar mão de um conjunto
sórdido de provas ilícitas, produzidas por criminosos – Deus sabe a soldo de
quem.
Este
processo de tentativa de reescrever a história, com tinturas stalinistas,
produz as alianças mais esdrúxulas, de um extremo ao outro do espectro
político. Só falta a criação de um Ministério da Verdade, como na obra 1984, de
George Orwell, que vivia de reescrever a história a cada tempo, modificando os
fatos. Nessa versão, tudo não passou de uma conspiração de policiais federais,
procuradores e juízes, cooptados por um punitivismo insano contra gente que
conduzia o país com lisura e boas práticas.
Na
conspiração, também foram incluídos a Receita Federal, o Banco Central e o
COAF. Pior: a conspiração se tornou internacional e agora abrange, também:
a) a
Transparência Internacional, que nos coloca em um vexatório 105º lugar no
Índice de Percepção da Corrupção. Atenção: a Transparência Internacional apenas
divulga os dados apurados. Ela não os fabrica. Não adianta atirar no
mensageiro;
b) a
OCDE, que reiteradamente vem manifestando preocupação com a forma como vimos
tratando a criminalidade que inclui corrupção e lavagem de dinheiro;
c) o
Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que multou a Petrobras em mais de
US$ 800 milhões por práticas de corrupção com repercussão em território
americano;
d) a
Securities and Exchange Commission, que multou a Petrobras em US$ 933 milhões;
e) a
Justiça Federal de Nova York, que homologou acordo de US$ 2,9 bilhões para pôr
fim à ação coletiva movida por acionistas lesados por práticas de corrupção;
E f) os
bancos suíços que, de ofício, comunicam às autoridades brasileiras os
inequívocos indícios de lavagem de dinheiro procedente de atividades ilícitas.
Para que
não se perca a memória do país, gostaria de lembrar:
a) eu
ouvi o áudio do Senador pedindo propina ao empresário e indicando quem iria
recebê-la, bem como vi o vídeo do dinheiro sendo entregue;
b) eu vi
o inquérito em que altos dignitários recebiam propina para atos de ofício,
abriam offshores por interpostas pessoas e sem declará-las à Receita,
subcontratavam empresas de fundo de quintal e tinham todas as despesas pagas
por terceiros;
c) eu vi
o Deputado correndo pela rua com uma mala de dinheiro com a propina recebida,
numa cena que bem serve como símbolo de uma era;
d) todos
vimos o apartamento repleto com R$ 51 milhões, com as impressões digitais do
ex-Secretário da Presidência da República no dinheiro;
e) eu
vi, ninguém me contou, o inquérito em que o Senador recebia propina para
liberação dos pagamentos à empreiteira pela construção de estádio;
f) todos
vimos o diretor da empresa estatal que devolveu a bagatela de R$ 182 milhões;
E g)
todos vimos a usina que foi comprada por US$ 1,2 bilhão e revendida por menos
da metade do preço.
Eu não
preciso continuar a enumeração do que é público e notório. O país vem fazendo
um esforço enorme para empurrar para a margem da história essa velha ordem, em
que era legítima a apropriação privada do Estado e o desvio rotineiro de
dinheiro público.
A
sociedade brasileira já não aceita mais o inaceitável e desenvolveu uma enorme
demanda por integridade, idealismo e inclusão social. As instituições precisam
corresponder a essas expectativas, ajudando a fazer um país melhor e maior.
Luís Roberto Barroso é Ministro do
Supremo Tribunal Federal.
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