José Padilha
A
História recente do Brasil se caracteriza pela substituição de uma ditadura de
direita, que controlava o país na ponta da baioneta e explorava a sociedade
auferindo “vantagens competitivas” para grupos empresariais “amigos” do regime,
por um mecanismo de dominação mais suave, em que a democracia e as eleições
diretas legitimam a exploração econômica da sociedade por grandes fornecedores
do Estado associadas a quadrilhas travestidas em partidos políticos.
Uso o
termo “mecanismo de exploração” porque, de fato, opera no Brasil um mecanismo
amplo e recorrente, empresarial e juridicamente estruturado, que tem a função
precípua de desviar recursos públicos. Os recursos públicos, evidentemente,
nada mais são do que uma parcela do trabalho e do esforço do cidadão comum, no
caso, o explorado.
Este
mecanismo funciona da seguinte forma: Os partidos ou as coligações de partidos
políticos que vencem as eleições indicam seus operadores para cargos-chave da administração
pública. A função dos operadores é costurar acordos com cartéis e empresas
fornecedoras de bens e de serviços para o Estado, de modo a superfaturar os
orçamentos do setor público (Nestor Cerveró é um exemplo de operador).
O
direito de indicar um operador para um cargo público é a principal moeda de
troca dos partidos políticos brasileiros, sendo parte essencial das relações
entre o Poder Executivo e o Legislativo em todas as esferas do poder público.
Uma diretoria da Petrobras ou uma presidência do BNDES valem muito. Já o
controle do Daerp, Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto, vale menos.
Mas vale alguma coisa.
O
mecanismo de exploração a que me refiro não abre mão de um único orçamento
público, por menor que ele seja. Os orçamentos públicos superfaturados geram
uma receita “extra” para as empresas fornecedoras do Estado. Essa receita,
apesar de ser fruto de corrupção, entra legalmente na contabilidade dessas
empresas. Todavia, parte dela pertence aos políticos e precisa ser repassada
para eles.
O repasse acontece de três formas:
1)
Parentes, prepostos e amigos dos políticos formam empresas que prestam serviços
para as fornecedoras do Estado. Em troca desses “serviços”, recebem espantosas
remunerações, que nada mais são do que o kick-back da corrupção. (A GameCorp,
do filho de Lula, faturou mais de R$ 350 milhões entre 2005 e 2017. O
escritório de advocacia da mulher de Sérgio Cabral faturou R$ 35 milhões
durante os mandatos do seu marido). Note que não há caixa dois nesse esquema. É
tudo por dentro.
2) Por
meio da doação “legal” de recursos para campanhas políticas. Nesta modalidade,
também não há crime fiscal atrelado ao crime de corrupção. Esse tipo de repasse
é particularmente perverso, pois aufere vantagem competitiva a políticos corruptos
e transforma campanhas políticas em atividades criminais. (Muita gente boa
defende Dilma Rousseff alegando ser este o seu único crime...)
3) A
lavagem de dinheiro é, de longe, a forma de repasse que movimenta o maior
volume de recursos. Tanto assim que demanda mão de obra especializada. O
doleiro, profissão peculiar do Brasil, tem a função de montar empresas fajutas,
de emitir notas frias para retirar recursos da contabilidade das fornecedoras
do Estado, e de distribuir esses recursos para os políticos. Organiza entregas
de maletas com dinheiro vivo, paga despesas para políticos (e para suas
amantes), viabiliza aportes de caixa dois em campanha eleitoral e faz remessas
para empresas offshore. Um verdadeiro concierge do crime.
Essas
três formas de kick-back constituem, de longe, a maior parte da receita dos
políticos e de seus partidos. (Note o absurdo dessa frase, que, no entanto, é
verdadeira). Note ainda que o mecanismo descrito acima obedece um padrão de
fractal, e se repete em todas as esferas do poder público “democraticamente
constituído” no país: no governo federal, nos 26 estados, nas 5.570 cidades e
em suas respectivas Assembleias Legislativas.
Obviamente,
um sistema de exploração com tal extensão e profundidade só pode existir
mediante a adoção de legislação especializada (o foro privilegiado é apenas um
exemplo) e com a conivência e a participação do Poder Judiciário. De fato, a
aceitação da corrupção sistêmica pelo Poder Judiciário sempre foi uma
característica básica da democracia brasileira.
Tanto
assim que, desde 1988, mais de 500 parlamentares foram investigados pelo STF,
tendo a primeira condenação ocorrido apenas em 2010.
A
absolvição de políticos por prescrição de pena, simples e cinicamente porque o
STF não teve tempo para julgá-los, é lugar-comum. Assim como, tenho certeza, é
lugar-comum a corrupção de magistrados das mais altas Cortes do país. O
mensalão e a Lava-Jato representam quebras desse paradigma. Resulta daí a sua
importância histórica, e resultam daí, também, os ataques da classe política ao
Poder Judiciário, evidenciados em projetos de lei feitos para coibir juízes e
procuradores e em proposta de anistia para crimes atrelados ao caixa dois.
Desde o
início de nossa incipiente democracia, bilhões e bilhões de dólares foram desviados
dos cofres públicos, afetando negativamente a Educação, a Saúde, a Segurança
Pública e a economia, e contribuindo para a pobreza e para a fome de milhões de
brasileiros. Os nossos exploradores “democráticos”, empresários e políticos,
têm sangue nas mãos. Mataram muita gente. Destruíram sonhos e desperdiçaram
talentos.
Ao
manter um cidadão, réu de crime de peculato e que se recusou a cumprir ordem
judicial, solto e presidente do Senado, o STF confirmou que é subserviente ao
mecanismo de exploração descrito acima, lançou sérias dúvidas sobre a
honestidade de seus membros e aboliu a vigência da lei para os poderosos. Isso
em plena luz do dia. Difícil imaginar argumento melhor a favor da desobediência
civil, a tese de que um indivíduo pode, ou mesmo deve, se recusar publicamente
a cumprir a lei quando confrontado por um Estado inerentemente injusto.
O
filósofo americano Henry David Thoreau praticou a desobediência civil quando
se recusou a pagar impostos para um governo que considerava a escravidão legal.
A História, diga-se de passagem, deu-lhe razão. Pois bem.
O
explorado do sistema político brasileiro, o cidadão comum que não tem Segurança
Pública, que convive com um sistema de Saúde caótico e que não tem acesso à
Educação, mas que paga seus impostos regiamente, deve estar se perguntando: se
os políticos roubam o meu dinheiro com a conivência do Judiciário, se a
lei não se aplica a todos, por que diabos se aplicaria a mim?
O Globo
11/12/2016
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