Fábio Chazyn
Tá na
boca do povo: “É muita lei e pouca vergonha!”. No Brasil, a lei é
pra-inglês-ver e pobre respeitar. Culpa de quem? Assim como não se pode
condenar as raposas por gostarem de galinhas, não se pode condenar o criminoso
poderoso por gostar da impunidade.
A
hipocrisia das nossas leis vem de longe. Vejamos o caso da nossa Lei Magna. A
nossa primeira Constituição de 1824, ainda sob o império, exaltava as virtudes
da igualdade em pleno país da escravidão; a de 1891, já sob a república,
gabava-se por promover o sufrágio universal, enquanto a fraude eleitoral corria
solta e mulher nem votava; a de 1937 enaltecia as atribuições de um Congresso
quase sempre fechado; a de 1969 garantia os direitos à liberdade do cidadão sob
o AI-5. Já a mais recente, conhecida como a que garante direitos ao cidadão,
ah! essa garante mesmo... Estabelece que um cidadão não pode ser preso antes de
ser condenado três vezes por um sistema jurídico super ocupado e emperrado.
Quando
se trata de ladrão-de-galinhas, ele vai preso mesmo sem condenação alguma e
fica mofando na cadeia esperando que os juízes “arrumem” um tempo para diminuir
a pilha dos 100 milhões de processos pendentes no judiciário brasileiro para,
então, avaliarem se o cara foi prêso com razão ou sem razão.
A lei é
para todos, pois todos são iguais perante ela. Mas têm uns mais iguais do que
outros. Quando se trata de transgressor endinheirado, independentemente da
gravidade e do estrago causado pelo seu delito, a justiça permite que ele
espere, em liberdade, o processo tramitar de recurso-em-recurso até o crime
prescrever.
Se não é
gozação, é conspiração!
Se os
operadores de leis permitem brechas na sua elaboração e/ou na sua aplicação,
não pode restar dúvida de que se trata de gente de índole duvidosa que quer
conquistar espaço político e econômico com a covardia dos que agem com
conchavos nas sombras dos gabinetes ou nas garagens dos palácios...
Mas
também não se pode ignorar que agora vivemos na era da “Lava-Jato” e da
“Internet”. A primeira permitiu mostrar o problema, enquanto a segunda
viabiliza a solução do problema permitindo que a ‘voz-do-povo’ seja ouvida.
Daqui
pra frente, a culpa por deixar a “putaria-correr-solta” recai sobre os próprios
cidadãos que titubeiam em tirar a raposa do galinheiro.
Convenhamos!
Se a lei não consegue eficácia, é porque o sistema judicial atual é ‘poroso’,
leniente com os “amigos da cúria”, sem puni-los pelos seus crimes. Na medida em
que se optou pela prioridade absoluta da garantia da “plena defesa do
contraditório”, o réu adquiriu o direito de procrastinar sua condenação indo de
recurso-em-recurso. Seria ingenuidade ou má-intenção não se admitir que, apesar
do mérito da opção, ela acaba abrindo oportunidades para a bandidagem agir
impunemente.
Como é
que chegamos a esse ponto? A explicação não precisa de muito detalhe. Um rápido
passeio na história basta para mostrar o que aconteceu.
Nos
tempos idos, as relações entre a população tribal eram regidas pelo
“Direito-Costumeiro”. Este nasceu do “Direito-Natural” ditado pela “Lei-das-Selvas”
que, se de um lado permitia liberdade à vazão do instinto predador do Homem,
por outro lado ele o praticava seguindo um código tácito que impunha a regra do
‘jogo-limpo’ da luta e da piedade para com o perdedor. Era o postulado da
“Lei-Divina”.
Com o
passar do tempo, foi necessário se inventar regras de organização e controle de
territórios que vinham sendo anexados por conquistadores. Foi o que aconteceu
durante a formação do Império Romano. Assim surgiu o primeiro código escrito,
conhecido como a “Lei das Doze Tábuas”, que reconhecia explicitamente que a
vontade do povo tinha força de lei e que as leis não podiam ser feitas contra o
indivíduo.
Mais
tarde, durante as invasões européias pelos bárbaros vindos do Norte, que
dividiram o Império Romano em feudos, houve a reimplantação da ordem regida
pelo “Direito-Costumeiro”. Desta vez, Germânicos. Na sequência, os feudos se
reconsolidam e formam reinos sob o jugo de monarcas. Estes acabam dando
vida ao sistema híbrido do “Direito Romano-Germânico”, que servia tanto para o
controle de grandes territórios, como para não subverter hábitos já arraigados
nas populações envolvidas.
Naquela
época, a natureza absolutista do monarca via-de-regra incitava aspirações e
conspirações. A autoridade-opressora vivia instável. Acabou encontrando refúgio
na retórica da razão-libertadora proposta pelos filósofos Iluministas que
promoviam o conceito do governo focado na “vontade geral”. De fato, a conversão
do foco nos valores individuais para os valores da coletividade foi a bandeira
que procuravam para conseguirem manter-se no poder.
Porém,
promover a “vontade geral” implicava agregar a realização de objetivos sociais
às tarefas ligadas à manutenção da ordem. Esta nova atribuição do governante
acabou levando à formação de uma casta tecnocrata-legisladora que tinha o
propósito de criar códigos rígidos e regulamentados. Foi o início da era do “positivismo-jurídico”.
Esse
“Direito-Positivo” foi tomando mais corpo quanto mais se afastava do
“Direito-Natural”. No processo, os legisladores se debatiam para não entregar o
poder político aos julgadores interpretadores das suas leis. O divórcio entre o
“Direito” e a “Moral” era inevitável dentro da pretensão de tutelar o cidadão
em todos os aspectos da sua vida, pois era preciso “regrar o uso para evitar o
abuso”.
Daí foi
só um pulo para que os fazedores de leis as disseminassem com crescente
positivismo na procura da segurança-jurídica e, em consequência, da
estabilidade dos inquilinos do poder...
Enquanto
evoluía o “Direito Romano-Germânico” fertilizando a prática do
“Direito-Positivo” nos países em que essa cultura se irradiava, desenvolvia-se
outro processo nos de cultura inglesa.
Com as
mesmas origens tribais, o “Direito-Costumeiro” dos povos primitivos da
Inglaterra deu lugar ao “Direito-Comum”. Trata-se de um sistema de
‘leis-não-escritas’, ou seja, baseado nas experiências passadas. Lá, a lei é
jurisprudencial. Às memórias dos costumes da região registradas nas Cortes de
Westminster agregaram-se normas produzidas pela Chancelaria do monarca.
Mas a sua aplicação é somente subsidiária. As sentenças continuam centradas nos
usos e costumes, que são exaltados durante o confronto de argumentações orais
entre os patronos dos litigantes.
É a
letra-quente do direito-comum no Reino Unido, Estados Unidos e outros
herdeiros, em oposição à letra-fria do direito-civil baseado no “Direito
Romano-Germânico”, adotado no Brasil.
Aqui na
terrinha, enquanto os fazedores-de-leis exorbitam na produção de normas nos
labirintos da burocracia, os interpretadores-de-leis arbitram em nome da
‘mutação’ dos costumes, construindo regras ‘ao vivo’. Estes estão se revelando
campeões entre os “caga-regras”, ainda que os legisladores tenham conseguido a
façanha de produzir quase 6 milhões de leis desde a outorga da Constituição de
1988. Já regulamentaram um terço dela. “Só” faltam os outros dois terços...
mais, é claro, a regulamentação das confusões criadas pelo STF!
A
crescente audácia de discricionariedade do STF aparentemente tem sido a forma
que encontrou para continuar participando da “política” de compadrio num
ambiente de presidencialismo-de-coalizão que tentou excluí-lo da ‘orgia’ do
toma-lá-dá-cá...
Enquanto
isso, nem os fazedores-de-leis, nem os interpretadores-de-leis aceitam devolver
ao cidadão a sua discricionariedade no exercício de sua cidadania, sob o
pretexto de que ele é incompetente. “O brasileiro não sabe nem votar!”,
reverberam em coro. Acham que é preciso proibir o cidadão de decidir as coisas
com o seu livre-arbítrio. É necessário normatizar tudo, pois “tudo o que lei
não proíbe, é permitido”. Sob o pretexto de proteger a segurança do cidadão
incapaz, “não se pode deixar que ele entre na água sem saber nadar, ainda que,
sem entrar na água, ele nunca vai aprender a nadar”.
No
Brasil, sob o atual sistema político, o cidadão segue tutelado, fadado a nunca
se emancipar, e o STF segue paternalista, como pretenso defensor obstinado da
segurança de um povo infantilizado, “interpretando” o que é ser cidadão
brasileiro e o que ele quer e precisa.
O STF
“interpreta” até o que são provas incriminatórias. Age como se a sua versão é
mais importante do que o fato. Quando os ministros da Corte “interpretam” que a
prova não é “lícita”, determinam que não há prova. O STF se apropriou do
direito de tergiversar sobre a licitude da prova. Insiste que o que o cidadão
vê ou ouve não é necessariamente a verdade, mas sim o que magistrado “quer” ver
ou ouvir.
Quem
ganhou de verdade com a Carta de 88 não foram os cidadãos, como ela prometeu na
sua letra-fria, mas sim os magistrados que ganharam o poder de
interpretar-e-aplicar a lei segundo a sua versão do fato.
Os membros
do STF viraram ‘pop-star’. Na mídia o tempo todo, desfilam como
ativistas-especialistas. Posam orgulhosos nos seus ‘tronos’ televisionados
ostentando um vernáculo inacessível ao cidadão comum e reafirmando a sua
distância deste, sem dissimular o seu desprezo à imposição legal da igualdade
de todos perante a lei. Usam e abusam de uma verborreia tão rebuscada que beira
a necessidade de recorrer-se a um interprete do vernáculo para interpretar o
interprete das leis. Tarefa difícil esta que tem sido desempenhada pelos
tradutores para a língua libras.
Fingem
que entendem de tudo, da lei, da sociologia e até da ciência, em episódios
novelescos passando pela pesquisa com célula-tronco, direito ao aborto de feto
acéfalo, união de pessoas do mesmo sexo, etc. etc.
Usurpam
do povo a última palavra. Desprezam o mandato eletivo, que lhes daria pelo
menos um mínimo de legitimidade, para subir no pódio do melhor emprego
vitalício do País. Ousam decidir o que querem, independentemente do que quer a
sociedade, que desprezam. Se não conseguem em solo, constroem conluios na sua
“turma” e suspenses numa torcida que, acreditam, já está castrada e não pode
reagir.
São os
interpretes-guardiães-protetores de tudo. Da “vontade geral” dos cidadãos, do
funcionamento da sociedade e até da política. Metem o bedelho em tudo. Tudo
serve como pretexto para consolidarem a sua hegemonia sobre os outros poderes
da Nação. Decidem sobre o destino dos corruptos, dos infiéis partidários, de
quem pode ou não pode ter foro privilegiado, por prisão após sentença em 2ª
instância judicial, etc. etc. e até qual instituição pública é confiável ou
não...
É o
extremo-poder do mandatário da extrema-discricionariedade. Sou ousadia é
desmesurada. Desprezando a camisa-de-força que são submetidos os juízes pelo
positivismo jurídico, os podem-tudo do STF têm a audácia de construir a
argumentação sobre o ‘mutatis mutandis’ dos costumes e converter o errado no
certo.
A
extrapolação de poder pelo STF é o sintoma da doença que desnaturou o
positivismo-jurídico no Brasil e que maculou o sistema de separação de poderes
do Montesquieu. O lado bom disso é que o vedetismo dos ministros daquela Corte
age para revelar o seu descolamento com a sociedade Levanta suspeitas de que
legisladores e julgadores inescrupulosos infiltrados nos poderes institucionais
do País têm usado seus cargos para desfrutar de poder discricionário em
benefício próprio.
Não há
como negar que o atual sistema é vulnerável ao ataque de covardes
impatrióticos. O povo já pôs o dedo na ferida. O povo está certo, “tem muita
lei e pouca vergonha”. E também já tá-na-cara, só não vê quem não quer: estamos
às vésperas da mudança de um sistema jurídico que não funciona como deveria.
Estamos às vésperas do golpe-de-misericórdia para por fim a esta Constituição
que nasceu Cidadã e vai morrer Vilã.
Tá na
hora de pensar na próxima. Que ela não seja “porosa”, pondo fim à possibilidade
dos criminosos usarem a lei como poder contra a impunidade.
Que não
tarde mais. Afinal, já passou da hora de tirar a raposa do galinheiro!
No próximo artigo, “De volta para o
Futuro”, vamos examinar as alternativas de um novo arcabouço jurídico para o
Brasil.
Alerta Total
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