André Shalders
O grupo político do
presidente Jair
Bolsonaro tem pelo menos três grandes desafios a cumprir antes de
tornar realidade o partido Aliança pelo Brasil, anunciado por ele numa reunião
no Palácio do Planalto nesta terça-feira
Nos últimos dias, o próprio presidente e políticos aliados
a ele detalharam o plano. Os leitores de impressões digitais dos celulares
permitiriam coletar as cerca de 492 mil assinaturas necessárias a tempo de
lançar candidatos a prefeito e a vereador já em 2020. E as migrações de
deputados federais hoje no PSL e
em outros partidos de centro e de direita fariam com que a Aliança pelo Brasil
chegasse à marca dos 100 deputados — perto do recorde registrado pelo antigo
PFL (hoje DEM) em 1998, quando a sigla chegou a ter 105 representantes na
Câmara.
Os obstáculos ao plano passam pela lei eleitoral e pela
dinâmica da criação de novos partidos.
A primeira está relacionada com a migração de deputados:
a lei eleitoral hoje não garante automaticamente ao deputado o direito de ficar
com mandato ao migrar para um partido que acabou de ser montado, segundo
advogados especializados na área consultados pela BBC News Brasil.
Depois, o projeto esbarra também nas incertezas sobre a
possibilidade de fazer a coleta de assinaturas via celular.
Por fim, há a questão dos prazos na Justiça Eleitoral:
mesmo que as assinaturas sejam coletadas rapidamente, a tramitação no Tribunal
Superior Eleitoral pode impedir a nova sigla de lançar candidatos em 2020. Para
estar na urna eletrônica no ano que vem, o partido precisa estar pronto até
abril.
Lançamento
A primeira convenção do partido está marcada para as 10h
da manhã da próxima quinta-feira (21), no hotel Royal Tulip em Brasília. O
Estatuto da nova legenda deve ser apresentado nesta cerimônia, dando início ao
processo de criação da sigla.
A reportagem da BBC News Brasil conversou com políticos e
especialistas em direito eleitoral envolvidos com o caso para entender cada um
desses desafios. Nem todas as pessoas ouvidas podem ter seus nomes divulgados.
1. Partido novo
não permitiria 'janela' para migração de deputados
No começo da semana, políticos aliados ao Presidente da
República disseram que a criação da nova legenda resolveria a questão da saída
da ala "bolsonarista" dos deputados do PSL: a formação da nova
legenda abriria a brecha legal para a mudança de partido, com a manutenção dos
mandatos.
O problema é que esta hipótese não consta da lei
eleitoral brasileira, para deputados estaduais, federais e vereadores - o
entendimento atual da Justiça Eleitoral é de que esses cargos, conquistados no
sistema proporcional, pertencem ao partido.
Já quem possui cargo majoritário (prefeitos,
governadores, senadores, presidente da República) pode mudar de partido quando
quiser.
"Quando esse partido for criado de maneira formal no
TSE, abre-se uma janela, tanto para os deputados estaduais quanto para os
federais, para a gente poder sair do PSL ou de qualquer outro partido em que
nós estejamos", disse a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) em um
áudio distribuído por ela a seus contatos no WhatsApp, na tarde de terça.
"Inclusive vários aliados já vieram falar conosco de
que querem sair dos seus partidos para vir para o partido do Bolsonaro. Então
abre-se essa janela, com possibilidade inclusive de ser o maior partido do
Brasil, em número de Estaduais e federais", diz ela, no áudio. Ao longo da
semana, aliados do presidente especularam que o número de representantes na
Câmara poderia passar de uma centena - algo que não é visto desde os anos 1990.
Mas a tal "janela" não existe mais na Lei dos Partidos
Políticos de 1995, lembra o advogado especializado em direito
eleitoral Fernando Neisser.
O artigo 22-A da lei cita três casos nos quais a pessoa
que ocupa cargo proporcional pode sair da legenda e manter o cargo: caso a
legenda se afaste demais de suas ideias e propostas anteriores; quando o
congressista é alvo de discriminação ou perseguição dentro do partido; e em ano
de eleições, ao fim do mandato (2022, no caso dos deputados).
A "janela" para novos partidos existia até
2015, lembra Neisser - no fim daquele ano, o Congresso aprovou a toque de caixa
uma "minirreforma eleitoral" excluindo essa hipótese de migração.
A Rede Sustentabilidade, partido fundado naquele ano pela
ex-ministra Marina Silva, só foi beneficiada pela "janela" graças a
uma decisão liminar (provisória) do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo
Tribunal Federal.
A decisão
foi depois confirmada pelo plenário da corte, em 2018, mas seus
efeitos foram restritos ao caso da Rede.
Por causa da mudança de 2015, alguns dos principais
líderes do Congresso não trabalham com a hipótese de uma mega-bancada da
Aliança —pelo menos no curto prazo.
"A lei eleitoral mudou (em 2015), depois do
escândalo do PMB, o Partido da Mulher Brasileira. Não pode mais o parlamentar
mudar para um partido novo e manter o mandato", disse à BBC News Brasil o
líder de um dos principais partidos de centro.
Segundo Neisser e outros especialistas em direito
eleitoral consultados pela reportagem, cada um dos deputados - do PSL ou de
outros partidos - teria de pleitear na Justiça, individualmente, o direito de
continuar com seus mandatos. A ala do PSL ligada ao atual presidente, o deputado
Luciano Bivar, tem dito que ingressará com ações judiciais para manter os
mandatos.
Apesar disso, a advogada eleitoral Karina Kufa, que
trabalha pela criação da Aliança, argumenta que a "janela" para novos
partidos continua existindo. A possibilidade de migrar para um novo partido
apareceria em uma resolução do TSE (de 2007) - que continuaria em vigor. A
minirreforma de 2015 trouxe apenas novas possibilidades de "justa
causa" para deputados que querem deixar seus partidos, disse ela à BBC News
Brasil.
O novo partido também nasceria, a princípio, sem grandes
recursos dos fundos Partidário e Eleitoral, além de pouco tempo de TV e rádio
para as campanhas eleitorais — o que desincentivaria a migração de
congressistas.
2. Coleta digital
é incerta, e a manual é trabalhosa
Para colocar o novo partido de pé antes das eleições de
2022, os advogados eleitorais que auxiliam Bolsonaro criaram um plano ousado:
usar um aplicativo de celular e o leitor de impressões digitais de cada
aparelho para coletar as quase 492 mil assinaturas
necessárias.
A ideia esbarra na falta de clareza: não é certo que a
Justiça Eleitoral permitirá a inovação. A área técnica do tribunal já se
manifestou favoravelmente ao uso de uma tecnologia diferente — a chamada
"assinatura digital" — para a coleta. Mas esta modalidade é pouco
difundida, e costuma ser usada apenas por advogados, jornalistas e outros
profissionais. O deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS) formulou uma
consulta ao TSE no fim de 2018 sobre o assunto, mas o pedido dele ainda não foi
analisado.
A reportagem da BBC News Brasil questionou o advogado
eleitoral e ex-ministro do TSE Admar Gonzaga sobre o assunto, mas ele disse que
não poderia comentar - Gonzaga integra a equipe de advogados que auxiliam
Bolsonaro na criação do novo partido.
Aliados de Bolsonaro admitem que, se a coleta via
aplicativo não for liberada a tempo, as assinaturas serão buscadas pela via
tradicional, em papel.
Só que este é um processo cheio de tecnicalidades: os
partidos costumam coletar um número bem maior que o necessário, pois grande
parte das assinaturas é descartada.
O deputado Paulo Pereira da Silva (SP), presidente
nacional e fundador do partido Solidariedade, disse que em 2013, época de
fundação do partido, foram coletadas 1,5 milhão de assinaturas — mas só cerca
de 500 mil foram aceitas.
"Você tem que mandar as assinaturas uma por uma, em
ordem alfabética, para o cartório eleitoral. E aí tem cartório que pede a
assinatura igual ao do dia que a pessoa tirou o Título de Eleitor. Tem outro
que pede assinatura igual ao do dia da última eleição. Não há uma uniformidade
entre eles", diz Paulinho da Força, como é conhecido.
"Só para você ter uma ideia, em Mogi das Cruzes (SP)
eu perdi 53 mil assinaturas, porque o cartório local considerou que eram
falsas. Não quiseram nem olhar o restante. Aí, para não brigar, eu deixei para
lá", exemplifica ele. "Se o Bolsonaro não trabalhar direito, corre o
risco de chegar em 2022 sem ter o partido pronto", diz.
No caso do Solidariedade, diz ele, sindicalistas da Força
Sindical trabalharam para coletar as assinaturas necessárias. "É muito
trabalhoso. Não é uma coisa simples, e não dá para fazer via WhatsApp",
disse ele à BBC News Brasil.
3. A tramitação no
TSE é demorada mesmo depois das assinaturas
O processo para criar um novo partido político no Brasil
não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista.
Depois da coleta das assinaturas — que precisam ser
verificadas pela Justiça Eleitoral — há uma série de prazos que precisam ser
cumpridos antes do processo ser finalmente julgado pelos sete ministros que
compõem o TSE.
"Obter as assinaturas é algo que pode ser feito, em
tese, em um único dia. Nunca aconteceu, mas é tecnicamente possível. Agora,
independente disso, você tem um rito processual a ser cumprido", diz à BBC
News Brasil um ex-ministro do TSE, sob anonimato.
O primeiro ato após a validação das assinaturas é a
indicação de um relator — o ministro que decidirá quando o caso irá a
julgamento. Há prazos para impugnação (quando qualquer cidadão brasileiro
poderá apontar problemas no processo de criação do novo partido) e para
manifestação do Ministério Público Eleitoral, por exemplo. Só depois disso o
pedido vai ao plenário.
A legislação atual acaba fazendo com que os processos se
arrastem ao longo do tempo. De 76 partidos considerados "em formação"
no Brasil, só quatro chegaram à fase final — e nenhum foi julgado ainda. Os
mais avançados são a Unidade Popular, um partido de esquerda, e o Partido
Nacional Corinthiano. O primeiro está com o processo tramitando desde agosto de
2014. O segundo, desde outubro de 2016.
BBC News
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