BBC News
Cuba é
reconhecida há tempos pela sua "diplomacia médica", enviando milhares
de profissionais
de saúde para trabalhar em missões pelo mundo todo e recebendo, em
troca, bilhões de dólares.
No
Brasil, profissionais cubanos integraram o programa Mais Médicos de 2013 até o
final de 2018, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito e disse que
não aceitaria mais os termos do acordo negociado com o governo de Cuba durante
a gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
De
acordo com uma pesquisa recente, alguns dos médicos enviados para missões em
diferentes países dizem que as condições de trabalho podem ser um
"pesadelo".
A BBC News reuniu algumas histórias
e dados para entender esse mundo secreto de médicos exportados por Cuba para o
mundo.
Promessas antes das missões
A cubana
Dayli Coro sempre quis ser médica. "Estudei por vocação. Costumava dormir
entre três e quatro horas por dia de tanto estudar. Trabalhei muito no meu
primeiro ano de prática. Pegava vários turnos extras", conta.
"E,
agora que estou formada, não posso ser médica em Cuba. É frustrante."
Dayli,
hoje com 31 anos, queria se especializar em atendimento em unidades de terapia
intensiva (UTIs). Depois de se formar, disseram a ela que, se fosse para uma
missão médica na Venezuela, ganharia experiência na área que escolheu, além de
poder contar esse período como os três anos de serviço social obrigatório que
todos os formandos em medicina precisam cumprir em Cuba.
Ela concordou em se juntar ao que
Havana chama de "missões internacionalistas",
seguindo os passos de centenas de milhares de médicos cubanos. Desde 1960, o
trabalho médico de Cuba no exterior é usado pelo governo do país como um
símbolo de solidariedade. Fidel Castro chamava os médicos que participavam
dessas missões de integrantes do "exército de jalecos brancos" de
Cuba.
Além de
ser fonte de orgulho e prestígio, a diplomacia médica garante recursos para o
regime. Vale lembrar que um dos principais importadores dos serviços médicos é
a Venezuela, aliado estratégico que pagou por esses serviços com petróleo numa
fase de boom das commodities.
Ante a pouca transparência do
governo cubano, é preciso analisar estimativas
oficiais e independentes. Em fevereiro de 2017, José Luis Rodríguez,
ex-ministro da Economia de Cuba, afirmou em artigo no portal Cubadebate que
essa política rendeu US$ 11,5 bilhões por ano, em média, entre 2011 e 2015. Em
novembro de 2009, o Ministério do Comércio Exterior falava em US$ 9 bilhões por
ano. Em contraponto, a Economist Intelligence Unit estima que essa média anual
tenha sido de US$ 9,6 bilhões no período.
Atualmente,
há cerca de 30 mil médicos cubanos atuando em 67 países - a maioria na América
Latina e na África, mas também em alguns países europeus, como Portugal e
Itália. As autoridades cubanas estabelecem regras rígidas para impedir seus
cidadãos de "desertarem" o regime uma vez no exterior. Mas o que
atrai médicos para esse programa internacional?
Os
salários pagos nos países que recebem os profissionais cubanos costumam ser
muito maiores que os oferecidos em Cuba. Esse foi um dos fatores que levaram
Dayli a aderir ao programa.
Em Cuba,
ela recebia um salário de US$ 15 por mês, em 2011. Na Venezuela, receberia US$
125 por mês nos primeiros seis meses - valor que subiria para US$ 250 após seis
meses e para US$ 325 no terceiro ano. A família dela, em Cuba, também receberia
um bônus de US$ 50 por mês.
De
acordo com um relatório do Prisoners Defenders, uma ONG baseada na Espanha que
advoga pelos direitos humanos em Cuba e que é ligada ao grupo de oposição
cubano União Patriótica de Cuba, os médicos cubanos em missões recebem entre
10% e 25% dos salários pagos pelos países onde atuam. O restante é retido pelas
autoridades cubanas.
Dayli
diz que ela assinou voluntariamente o contrato para um período de três anos na
Venezuela, mas não teve tempo de ler seu teor nem recebeu uma cópia do
documento.
Em
outubro de 2011, a médica foi encaminhada para uma clínica na cidade
venezuelano de El Sombrero. Ela passou a integrar o programa Bairro Adentro,
que distribui médicos cubanos em áreas pobres da Venezuela desde 2003. O
governo de Nicolás Maduro paga pelo serviço dos médicos cubanos com petróleo.
Dayli
diz que se viu, de repente, numa quase zona de guerra, a ponto de se acostumar
a ter uma arma apontada para si frequentemente.
A
Venezuela estava na época em meio a uma escalada do crime que levou a uma taxa
de 92 mortos por 100 mil habitantes em 2016, de acordo com a ONG venezuelana
Observatório da Violência.
Já o
Banco Mundial diz que houve 56 mortos por 100 mil habitantes em 2016, na
Venezuela - o terceiro pior resultado do continente americano, atrás apenas de
El Salvador e Honduras.
"Havia
muitas quadrilhas. Quando elas brigavam entre si, levavam seus feridos a nós,
porque o hospital venezuelano local tinha policiais fazendo a segurança e nós,
não. Esses garotos levavam pacientes com 12, 15 balas no corpo, apontavam as
armas e exigiam que a gente os salvasse. 'Se ele morrer, você morre'. Esse tipo
de coisa acontecia diariamente. Era rotina", diz Dayli.
Os
membros de grupos criminosos que a médica atendia tinham entre 15 e 16 anos.
"Já recebi um com uma bala no coração, outro com cinco na cabeça. Alguns
poderiam sobreviver, mas você sabia que, se não fossem operados em minutos,
morreriam, e a gente não tinha as condições necessárias nem remédios básicos.
Era para haver quatro médicos intensivistas, mas, normalmente, só havia um por
turno", diz ela.
Esses
pacientes eram normalmente transferidos de ambulância para um hospital que
ficava a 45 minutos de distância. Alguns membros de gangues ordenavam que Dayli
entrasse na ambulância com eles. "Uma vez uma ambulância foi alvejada por
outra quadrilha, e um médico venezuelano e o motorista morreram", conta.
"Sempre
havia a possibilidade de uma gangue rival tentar eliminar o paciente durante a
transferência para um hospital. Já vivi uma situação em que uma quadrilha rival
entrou e matou o paciente. Eu tinha 24 anos. Mas, num lugar com tamanha
violência, você desenvolve uma frieza emocional impressionante."
O que dizem os médicos cubanos
Um
relatório do Cuban Prisoners Defenders, baseado no depoimento inédito de 46
médicos que atuaram em missões internacionais e nos testemunhos públicos de
outros 64 profissionais cubanos revela que:
- 89%
não tinham conhecimento prévio de onde seriam alocados dentro do país de
destino;
- 41%
tiveram seus passaportes confiscados por uma autoridade cubana ao chegar ao
país de destino;
- 91%
disseram ter sido monitorados por agentes de segurança de Cuba durante a missão
e pressionados a compartilhar informações sobre os colegas;
- 57%
não se voluntariaram para aderir à missão, mas se sentiram obrigados a isso,
enquanto 39% disseram que se sentiram fortemente pressionados a participar do
programa internacional.
A BBC
fez vários pedidos para que o governo cubano se manifestasse, mas não recebeu
resposta. Mas, depois do relatório ser publicado, o presidente cubano Miguel
Diaz-Canel tuitou: "Mais uma vez, o império mente para desacreditar os
programas de cooperação de saúde com outros países, rotulando-os de 'escravidão
moderna' e de práticas de 'tráfico humano'. Eles não se conformam com exemplo e
a solidariedade de Cuba."
Em
dezembro, ele fez uma homenagem aos "heróis da medicana cubana e
latino-americana" para marcar o Dia da Medicina da América Latina.
"Para aqueles que lutam pela vida, é a mesma coisa num bairro modesto de
Cuba ou num vilarejo na Amazônia. Mais que médicos, eles são guardiões da
virtude humana", disse o presidente cubano, no Twitter.
No final
do ano passado, o governo de Cuba decidiu retirar seus médicos do Brasil, após
ser alvo de críticas de Bolsonaro, que acabara de ser eleito. O presidente
brasileiro questionou a qualificação dos profissionais cubanos e disse que
atuavam numa situação análoga à de "trabalho escravo", destacando que
mantinham apenas 25% da remuneração paga pelo Brasil e que o restante ia para o
governo cubano.
Em
resposta, as autoridades cubanas rebateram essa comparação com a escravidão e
disseram que não era "aceitável questionar a dignidade, o profissionalismo
e o altruísmo" da equipe médica internacional de Cuba.
Médicas relatam abusos e violência
sexual
Alguns
profissionais também relatam ter sofrido violência sexual nos países onde
atuaram. É o caso de uma médica de 48 anos que prefere ser identificada nesta
reportagem como Júlia para poupar os familiares do sofrimento pelo qual passou.
No
início de sua missão de cinco anos na Venezuela, ela foi levada ao Estado de
Bolívar. "Tive o azar de o coordenador da missão se interessar por mim.
Não aceitei suas insinuações repulsivas, e ele me mandou para uma série de
missões em áreas rurais", diz Júlia.
Em dado
momento, ela foi alojada num casebre, juntamente com outra médica cubana.
"Acordei numa noite com alguém cobrindo a minha boca. A médica no outro
quarto estava gritando. Havia dois homens portando armas", diz Julia.
Ela
conta que foi estuprada. O coordenador da missão retirou as duas mulheres da
localidade, mas Júlia diz que ele não sofreu qualquer reprimenda por ter
exposto integrantes de seu time a situações de perigo. A médica foi levada a
Caracas, onde recebeu medicamento anti-HIV e passou por sessões com um
psicólogo cubano. "Mas não era o melhor tratamento. O foco era basicamente
me fazer não contar para ninguém o que aconteceu."
Durante
uma missão na Bolívia, Júlia fugiu e cruzou a fronteira com o Chile.
Atualmente, ela mora na Espanha, onde pediu asilo e trabalha como assistente de
um cirurgião.
Maria,
cujo nome foi trocado para proteger sua identidade, é outra médica cubana que
diz que o fato de ser mulher a transformou em alvo. Ela tinha 26 anos quando
foi encaminhada para a Guatemala, em sua primeira missão internacional, em
2009.
Durante
a jornada até o Estado de Alta Verapaz, o coordenador da missão começou a
contar para ela sobre um homem rico da região, a quem se referia como
engenheiro. "Ele insinuou que esse homem gostava de mulheres
cubanas." Maria conta que recebeu um celular, e o "engenheiro"
passou a telefonar para ela todos os dias.
"Não
respondia e cheguei a trocar de número, mas ele continuou ligando. O
coordenador me disse que seria mandada para casa como punição, se não me
encontrasse com esse homem. Embarquei numa missão pelo meu país com a ideia de
ajudar pessoas pobres. Foi muito frustrante. Estava assustada, não tinha como
fugir."
Maria
conta que seu passaporte foi confiscado por funcionários cubanos assim que
chegou à Guatemala. Após dois meses resistindo à pressão para que se
encontrasse com o homem, ela foi transferida para outra missão.
Alguns
meses depois, soube que o "engenheiro" havia sido preso numa operação
do Exército, acusado de ser traficante de drogas. Maria completou dois anos na
Guatemala e desertou quando ia ser enviada ao Brasil, se inscrevendo num
programa do governo americano dedicado a ajudar médicos cubanos a fugir.
Metas estabelecidas pelos líderes da
missão
Dayli
conta que ela e seu time na Venezuela tinham que cumprir metas semanais
estabelecidas pelos líderes da missão cubana, como números mínimos de vidas
salvas, pacientes admitidos e tratamentos para determinadas doenças. Ela diz
que rejeitou aderir ao que chamou de interferência antiética nos princípios
médicos.
"Não
aceitei mentir. Se um paciente está pronto para receber alta e tomar
medicamento oralmente, não vou interná-lo por cinco dias (para cumprir a meta).
Não tenho como antecipar quantos pacientes com ataques cardíacos vou receber
numa semana."
De
acordo com o relatório do Cuban Prisoners Defenders, mais da metade dentre 46
médicos com experiência em missões internacionais entrevistados relatou ter
falsificado estatísticas e inventar pacientes, atendimentos e patologias que
não existiam.
Ao
exagerar a eficácia das missões, as autoridades cubanas podem, diz o relatório,
exigir pagamentos maiores dos países que recebem os profissionais ou justificar
extensões no contrato de colaboração.
Dayli
diz que as discordâncias que manifestou sobre adulteração de estatísticas
fizeram com que fosse transferida para uma cidade rural mais calma, San José de
Guaribe. Mas as dificuldades de trabalhar sem equipamentos médicos suficientes
e as ordens para atingir metas impossíveis continuaram.
Uma vez,
uma mulher chegou à clínica em trabalho de parto, lembra Dayli, mas não havia
instrumentos adequados para auxiliar no parto. Em outra ocasião, ela diz que
teve de usar a luz do próprio telefone como iluminação para entubar um
paciente. Dayli também conta que seu pedido para transferir um homem com câncer
no pulmão para Caracas foi recusado para que ele fosse inserido na estatística
da sua clínica.
"A
saúde dos venezuelanos não importa para a missão. Um menino de 11 anos morreu
nos meus braços quando tentei colocá-lo em aparelhos respiratórios que não
estavam funcionando", diz ela.
Dayli
também conta que qualquer fraternização com venezuelanos fora do ambiente de
trabalho era proibido. Os médicos cubanos moravam juntos e tinham de respeitar
um toque de recolher às 18h.
O
coordenador da missão era um agente do serviço de inteligência cubano.
"Ele costumava perguntar sobre meus colegas de casa e tinha uma rede de
informantes locais que passavam qualquer informação que pudesse indicar
possíveis desertores. Não nos era permitido tomar um drink com um venezuelano
ou ir à casa de alguém que você salvou para ver como ela estava."
Uma
reportagem do jornal americano The New York Times, publicada em março, trouxe
depoimentos de médicos cubanos baseados na Venezuela que disseram que tiveram
persuadir seus pacientes a votar no Partido Socialista, do governo de Nicolás
Maduro.
Os
cubanos seriam orientados a recusar tratamento para simpatizantes da oposição e
a entregar remédios como propina em troca de votos.
Em
resposta, o governo cubano negou as acusações dizendo que seus médicos salvaram
quase 1,5 milhão de vidas na Venezuela, além de citar a participação dos
profissionais na luta contra o vírus Ebola na África e da Cólera, no Haiti,
entre outros exemplos.
Após as
experiências nas missões internacionais, Dayli retornou a Cuba em 2014, onde
foi alocada num hospital que não tem unidade de terapia intensiva - um sinal
claro, diz ela, de que não contava com a simpatia do regime. Posteriormente,
foi suspensa de praticar a medicina em face de alegações de que teria se
ausentado injustificadamente do trabalho, o que ela nega.
Dayli
conta que passou a ser tratada como dissidente e que um agente de segurança do
governo cubano passou a vigiar sua casa e segui-la para onde fosse. Amigos e
familiares passaram a ser assediados, afirma. Em dado momento, ela não
conseguiu mais suportar a situação e está, agora, visitando parentes na
Espanha, onde pretende tentar permanecer.
"Queria
ser uma médica em Cuba, mas tive que desistir. Não quer ser um risco para a
minha família. Falei o que achava, e essa é a consequência. Eles querem
soldados, não médicos."
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