Carlos I.S. Azambuja
O texto abaixo é um pequeno extrato do depoimento
de RAMON MERCADER DEL RIO, um espanhol, o homem que, no México, a mando de
STALIN, assassinou LIEV DAVIDOVITCH TROTSKI. Após cumprir 20 de anos de prisão,
passou a viver em Cuba. O texto foi transcrito do livro “O Homem que Amava
os Cachorros”, escrito pelo cubano Leonardo Padura. Ele, RAMON MERCADER, é
o homem que amava os cachorros.
No fim dos anos 1990, a vida no país (Cuba) tinha começado a recuperar certa normalidade, totalmente alterada durante os anos mais duros da crise. Mas, ao mesmo tempo em que essa nova normalidade regressava, tornava-se evidente que alguma coisa muito importante se desfizera pelo caminho e que estávamos instalados num estranho ciclo da espiral, no qual as regras do jogo tinham mudado.
No fim dos anos 1990, a vida no país (Cuba) tinha começado a recuperar certa normalidade, totalmente alterada durante os anos mais duros da crise. Mas, ao mesmo tempo em que essa nova normalidade regressava, tornava-se evidente que alguma coisa muito importante se desfizera pelo caminho e que estávamos instalados num estranho ciclo da espiral, no qual as regras do jogo tinham mudado.
A partir daquele momento já não seria possível
viver com os poucos pesos dos salários oficiais. Os tempos da pobreza
equitativa e generalizada como conquista social tinham e começava o que meu
filho Pablo, com uma noção da realidade que me ultrapassava, definia como o “salve-se
quem puder” (e que ele, como muitos filhos de minha geração, aplicou à sua
vida, da única maneira que estava ao seu alcance: saindo do país).
Havia pessoas que, como Dany, lançando mão do
cinismo e do melhor espírito de sobrevivência tinham conseguido adaptar-se, mais
ou menos, à nova realidade. Meu amigo deixara o emprego na editora, enfiara num
saco todos os seus sonhos literários e agora ganhava muito mais dinheiro como
motorista de taxi atrás do volante do Pontiac modelo 1954 que herdara do pai.
Além disso, em sua casa contavam como o apetecível
trabalho conseguido pela mulher numa empresa espanhola (onde lhe pagavam alguns
dólares por baixo da mesa e lhe davam alguns pacotes de comida duas vezes por
mês) e viviam cm algum desafogo. Mas aqueles que não tinham onde agarrar-se nem
onde roubar (Ana e eu, entre muitos outros) começaram a ver as coisas ainda
mais sombrias do que nos anos dos apagões infindáveis e dos cafés da manhã à
base de tisanas de folhas de laranjeira.
Com Ana antecipadamente aposentada e minha já
demonstrada incapacidade para a vida prática, a corda que trazíamos ao pescoço
não fazia mais do que apertar, mantendo-nos sempre à beira da asfixia, da qual
nos salvavam os presentes que os donos de cães e gatos me davam pelos meus
serviços e os pesos adicionais que me entregavam os criadores de porcos em
pagamento das castrações, desparasitações e outros trabalhos que muitas vezes
cobrava ao preço ridículo de “pague o que quiser”.
Mas era evidente que estávamos mergulhados no fundo
de uma atrofiada escala social, na qual a inteligência, decência, conhecimento
e capacidade de trabalho, davam lugar à habilidade, à proximidade do dólar, à
posição política, a ser filho, sobrinho ou primo de Alguém, à arte de resolver,
inventar, medrar, fugir, fingir, roubar tudo que fosse passível de roubo. E ao
cinismo, à porta do cinismo.
Soube então que para muitos da minha geração não
seria possível sair incólume daquele salto mortal sem rede. Éramos a geração
dos crédulos, a dos que romanticamente aceitaram e justificaram tudo com os
olhos postos no futuro, a dos que cortaram cana convencidos que deveriam
cortá-la (sem cobrar, evidentemente, por aquele trabalho infame); a dos que
foram para uma guerra nos confins do mundo porque assim o exigia o
internacionalismo proletário, sem esperar outra recompensa que não fosse a
gratidão da Humanidade e da História.
A geração que sofreu e resistiu aos embates da
intransigência sexual, religiosa, ideológica, cultural e até alcoólica com um
gesto de cabeça e muitas vezes sem se encher de ressentimento ou do desespero
que conduz à fuga, esse desespero que abria agora os olhos dos mais jovens, e
os levava a optar pela fuga mesmo antes de levarem o primeiro pontapé na bunda.
Tínhamos crescido vendo (era esse o grau da nossa miopia) em cada soviético,
búlgaro ou checoslovaco um amigo sincero, como dizia Martí.
Um irmão proletário e tínhamos vivido sob o lema.
Tantas vezes repetido em cerimônias escolares, de que o futuro da humanidade
pertencia por completo ao socialismo (àquele socialismo que, quando muito, só
nos parecia um pouco feio, esteticamente, só esteticamente grotesco e incapaz
de criar, digamos, uma canção com metade da beleza de “Rocker Man” ou
com um terço de “Dedicated toThe One I Love”; meu amigo e congênere
Mario Conde poria “Proud Mary”na lista, na versão de Creedence).
Atravessamos a vida alheios, da forma mais
hermética, ao conhecimento das traições que, tal como a da Espanha republicana
ou da Polônia invadida, tinham sido cometidas em nome daquele mesmo socialismo.
Não ficáramos sabendo das repressões e dos genocídios de povos, etnias,
partidos políticos inteiros, das perseguições mortais a inconformistas e
religiosos, da fúria homicida dos campos de trabalho, do assassinato da
legalidade e da credulidade, antes, durante e depois dos processos de Moscou.
Também não fazíamos a menor idéia de quem tinha
sido Trotski ou porque o tinham matado, ou das infames combinações subterrâneas
e até evidentes da União Soviética com o nazismo e com o imperialismo, da
violência conquistadora dos novos czares moscovitas, das invasões e mutilações
geográficas, humanas e culturais dos territórios adquiridos e da prostituição
dos ideais e das verdades transformados em palavras de ordem vomitadas por
aquele socialismo modelar, patenteado e dirigido pela genialidade do Grande Timoneiro
do Proletariado Mundial, o camarada Stalin, remendado mais tarde por seus
herdeiros, defensores de uma rígida ortodoxia, que usaram para condenar a menor
dissidência do cânone que suportava seus desmandos e megalomanias.
Agora, com muito custo, conseguíamos compreender
como e por que toda aquela perfeição havia desmoronado quando só tinham sido
deslocados dois dos tijolos da fortaleza: um acesso mínimo à informação e uma
ligeira mas decisiva perda do medo (sempre o bendito medo, sempre, sempre, sempre)
que dera consistência àquela estrutura.
Dois tijolos e veio-se abaixo: o gigante tinha pés
de barro e só se mantivera ereto graças ao terror e à mentira... As profecias
de Trotski acabaram por cumprir-se, e a fábula futurista e imaginativa de Orwell,
em 1984, acabou se transformando num romance descaradamente
realista.
E nós sem saber de nada... Ou será que não
queríamos saber?
Carlos
I. S. Azambuja é Historiador.
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
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