sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O Homem que amava os cachorros


Carlos I.S. Azambuja

O texto abaixo é um pequeno extrato do depoimento de RAMON MERCADER DEL RIO, um espanhol, o homem que, no México, a mando de STALIN, assassinou LIEV DAVIDOVITCH TROTSKI. Após cumprir 20 de anos de prisão, passou a viver em Cuba. O texto foi transcrito do livro “O Homem que Amava os Cachorros”, escrito pelo cubano Leonardo Padura. Ele, RAMON MERCADER, é o homem que amava os cachorros.

No fim dos anos 1990, a vida no país (Cuba) tinha começado a recuperar certa normalidade, totalmente alterada durante os anos mais duros da crise. Mas, ao mesmo tempo em que essa nova normalidade regressava, tornava-se evidente que alguma coisa muito importante se desfizera pelo caminho e que estávamos instalados num estranho ciclo da espiral, no qual as regras do jogo tinham mudado.

A partir daquele momento já não seria possível viver com os poucos pesos dos salários oficiais. Os tempos da pobreza equitativa e generalizada como conquista social tinham e começava o que meu filho Pablo, com uma noção da realidade que me ultrapassava, definia como o “salve-se quem puder” (e que ele, como muitos filhos de minha geração, aplicou à sua vida, da única maneira que estava ao seu alcance: saindo do país).

Havia pessoas que, como Dany, lançando mão do cinismo e do melhor espírito de sobrevivência tinham conseguido adaptar-se, mais ou menos, à nova realidade. Meu amigo deixara o emprego na editora, enfiara num saco todos os seus sonhos literários e agora ganhava muito mais dinheiro como motorista de taxi atrás do volante do Pontiac modelo 1954 que herdara do pai.

Além disso, em sua casa contavam como o apetecível trabalho conseguido pela mulher numa empresa espanhola (onde lhe pagavam alguns dólares por baixo da mesa e lhe davam alguns pacotes de comida duas vezes por mês) e viviam cm algum desafogo. Mas aqueles que não tinham onde agarrar-se nem onde roubar (Ana e eu, entre muitos outros) começaram a ver as coisas ainda mais sombrias do que nos anos dos apagões infindáveis e dos cafés da manhã à base de tisanas de folhas de laranjeira.

Com Ana antecipadamente aposentada e minha já demonstrada incapacidade para a vida prática, a corda que trazíamos ao pescoço não fazia mais do que apertar, mantendo-nos sempre à beira da asfixia, da qual nos salvavam os presentes que os donos de cães e gatos me davam pelos meus serviços e os pesos adicionais que me entregavam os criadores de porcos em pagamento das castrações, desparasitações e outros trabalhos que muitas vezes cobrava ao preço ridículo de “pague o que quiser”.

Mas era evidente que estávamos mergulhados no fundo de uma atrofiada escala social, na qual a inteligência, decência, conhecimento e capacidade de trabalho, davam lugar à habilidade, à proximidade do dólar, à posição política, a ser filho, sobrinho ou primo de Alguém, à arte de resolver, inventar, medrar, fugir, fingir, roubar tudo que fosse passível de roubo. E ao cinismo, à porta do cinismo.


Soube então que para muitos da minha geração não seria possível sair incólume daquele salto mortal sem rede. Éramos a geração dos crédulos, a dos que romanticamente aceitaram e justificaram tudo com os olhos postos no futuro, a dos que cortaram cana convencidos que deveriam cortá-la (sem cobrar, evidentemente, por aquele trabalho infame); a dos que foram para uma guerra nos confins do mundo porque assim o exigia o internacionalismo proletário, sem esperar outra recompensa que não fosse a gratidão da Humanidade e da História.

A geração que sofreu e resistiu aos embates da intransigência sexual, religiosa, ideológica, cultural e até alcoólica com um gesto de cabeça e muitas vezes sem se encher de ressentimento ou do desespero que conduz à fuga, esse desespero que abria agora os olhos dos mais jovens, e os levava a optar pela fuga mesmo antes de levarem o primeiro pontapé na bunda. Tínhamos crescido vendo (era esse o grau da nossa miopia) em cada soviético, búlgaro ou checoslovaco um amigo sincero, como dizia Martí.

Um irmão proletário e tínhamos vivido sob o lema. Tantas vezes repetido em cerimônias escolares, de que o futuro da humanidade pertencia por completo ao socialismo (àquele socialismo que, quando muito, só nos parecia um pouco feio, esteticamente, só esteticamente grotesco e incapaz de criar, digamos, uma canção com metade da beleza de “Rocker Man” ou com um terço de “Dedicated toThe One I Love”; meu amigo e congênere Mario Conde poria “Proud Mary”na lista, na versão de Creedence).

Atravessamos a vida alheios, da forma mais hermética, ao conhecimento das traições que, tal como a da Espanha republicana ou da Polônia invadida, tinham sido cometidas em nome daquele mesmo socialismo. Não ficáramos sabendo das repressões e dos genocídios de povos, etnias, partidos políticos inteiros, das perseguições mortais a inconformistas e religiosos, da fúria homicida dos campos de trabalho, do assassinato da legalidade e da credulidade, antes, durante e depois dos processos de Moscou.

Também não fazíamos a menor idéia de quem tinha sido Trotski ou porque o tinham matado, ou das infames combinações subterrâneas e até evidentes da União Soviética com o nazismo e com o imperialismo, da violência conquistadora dos novos czares moscovitas, das invasões e mutilações geográficas, humanas e culturais dos territórios adquiridos e da prostituição dos ideais e das verdades transformados em palavras de ordem vomitadas por aquele socialismo modelar, patenteado e dirigido pela genialidade do Grande Timoneiro do Proletariado Mundial, o camarada Stalin, remendado mais tarde por seus herdeiros, defensores de uma rígida ortodoxia, que usaram para condenar a menor dissidência do cânone que suportava seus desmandos e megalomanias.

Agora, com muito custo, conseguíamos compreender como e por que toda aquela perfeição havia desmoronado quando só tinham sido deslocados dois dos tijolos da fortaleza: um acesso mínimo à informação e uma ligeira mas decisiva perda do medo (sempre o bendito medo, sempre, sempre, sempre) que dera consistência àquela estrutura.

Dois tijolos e veio-se abaixo: o gigante tinha pés de barro e só se mantivera ereto graças ao terror e à mentira... As profecias de Trotski acabaram por cumprir-se, e a fábula futurista e imaginativa de Orwell, em 1984, acabou se transformando num romance descaradamente realista.

E nós sem saber de nada... Ou será que não queríamos saber?

Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net


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