Percival Puggina
A expressão
guerra cultural suscita, em muitas pessoas, um sentimento de aversão por evocar
perda das conexões entre grupos sociais, esfacelamento da ordem, fim da
política, e, não raro, violência.
O leitor destas linhas talvez se surpreenda com o
que vou dizer, mas guerra cultural tem, mesmo, tudo a ver com isso. Essa guerra
começou a ser empreendida há muitos anos, desde que os marxistas ocidentais
começaram a ler Gramsci e Luckács. Durante décadas, foi uma guerra travada
unilateralmente entre a esquerda e a cultura do Ocidente cristão. O Brasil foi
e continua sendo um dos cenários dessa guerra.
Aqui, nas últimas décadas, bem antes, mesmo, da
redemocratização, ela se travou entre um polo ativo e um polo passivo. Um polo
combatente e um polo combatido. Um lado que gradualmente conquistava
“território” e outro que gradualmente o cedia sem resistência. O polo
combatente agia com plena consciência de seus objetivos, dispunha de intensa
produção e reprodução bibliográfica e tinha cartilha a seguir. Conhecia as
“cabeças de praia” (para usar a linguagem militar) de onde deveria partir para
a conquista do território. E as tomou sem resistência, naquela que talvez tenha
sido a mais assimétrica de todas as guerras. Assim, avançou sobre o sistema de
ensino, notadamente nas graduações em humanidades, expandindo-se daí para os
níveis médio e fundamental. Neste território, o resultado foi avassalador,
tornando a universidade, e, em especial, a universidade pública, uma espécie de
“cosa nostra”, impenetrável por qualquer possível divergência. Partindo de
outras cabeças de praia, dominou os meios de comunicação, hegemonizou a área da
produção cultural, invadiu os seminários e o clero católico, conseguindo
controlar a CNBB, mediante uma teologia travestida de “libertadora” – a
Teologia da Libertação, conhecida como TL.
A partir daí, o resto veio por natural acréscimo, naquela
fatalidade que, com palavras de Marx, preside as transformações da natureza.
Veio o controle dos sindicatos, a miríade de movimentos sociais e suas violências,
as primeiras vitórias eleitorais nos fronts locais e, por fim, a hegemonia do
poder político associado ao poder financeiro pelos mecanismos que se tornaram
conhecidos de todos.
Quando o projeto vazou – e vazou com energia das forças
da Natureza quando longamente contidas –, sobreveio a derrota política e o fim
dessa hegemonia. Dessa hegemonia, repiso. Mas se a derrota abalou a força
política, não reduziu o ímpeto da guerra cultural. A diferença no ambiente
dessa guerra foi o surgimento das redes sociais para aglutinar e dar voz ao
polo até então passivo, que despertou para a necessidade de se defender nos
espaços em que ela era travada.
A guerra cultural, agora, tem dois lados em confronto.
Vem daí a sensação de que a sociedade está dividida e muitos que a levavam de
roldão, agora reclamam da resistência que passam a encontrar. Era impossível
que ela não emergisse quando a sociedade começou a contabilizar suas vítimas
civis. A guerra cultural fez vítimas em proporções demográficas. Deixou milhões
de crianças mentalmente mutiladas. Crianças que se tornaram adultos tolhidos em
suas potencialidades. Mutilados em sua fé. Professores ocupados com formar
quadros e não indivíduos livres; preocupados com hegemonia e não com harmonia;
dedicados a um projeto que prescinde do livre pensar e que nunca, em parte
alguma, conviveu bem com o contraditório. Uma guerra que precisa produzir
mutilados.
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