Murillo de Aragão
Apesar
dos mais de 30 anos de redemocratização, ainda vivemos sob o império do
autoritarismo. O chocante é que muitos dos que o praticam não se consideram
autoritários. Essa é uma questão complexa que envolve interpretação e
comportamento, além das regras existentes. Envolve também a precária educação
cívica dos brasileiros, que não têm ideia de seus direitos e deveres.
Nosso
autoritarismo tem raízes profundas no Brasil colônia, onde o caráter subalterno
de nossa gente era transversal às classes – desde a senzala, passando pela
casa-grande, até os paços do reino. Cada um esmagando o menor com o abuso de
poder e de autoridade.
Mesmo
com as lutas, revoluções e reconstruções das instituições políticas visando ao
estabelecimento de regime democrático concreto, o autoritarismo resiste em
nossa sociedade de forma bastante pronunciada e se expressa de diversas formas
e em vários lugares: no dia a dia das cidades; nas repartições públicas; nas
escolas; nas redes sociais; nas relações de consumo; na Justiça e na política;
no “neopeleguismo” dos sindicatos de trabalhadores e de patrões, dominados pelo
clientelismo.
Nosso
autoritarismo está expresso no ônibus que não para no ponto. Na recepção
grosseira ao paciente humilde que chega ao hospital público. No comportamento do
Estado, que manipula, empreende, financia, regula, coopta, suborna, faz vista
grossa para o corporativismo e elege campeões que ganham medalhas no sistema
financeiro estatal.
No campo
da Justiça, o autoritarismo revela-se no ativismo judicial, que é ir além do
que prega o mandamento constitucional, e se expressa, por exemplo, ao se
desconsiderarem as novas determinações do Código de Processo Civil de estimular
o entendimento entre as partes. A condução coercitiva independente de prévia
intimação e mesmo negativa injustificada a comparecer para depor também o são.
Para dizer o mínimo.
Existe
ainda o ativismo burocrático, que cobra atitudes da cidadania a partir de
interpretações largas e ilegais do que seriam as regras e se expressa por meio
decisões sem o devido amparo legal. A mesma burocracia que é resistente aos
programas de desburocratização e impõe uma cerca de proteção aos seus
interesses, senta-se em cima das licenças ambientais por conta de seus
interesses políticos ou ideológicos.
O
corporativismo que submete o povo a greves intermináveis ou a operações
tartaruga no serviço público, sem que haja uma intervenção decisiva da
autoridade judicial, também se mostra egoísta e autoritário. A omissão da
Justiça nesses casos é imperdoável. Também o é o paternalismo da legislação
trabalhista, que impede acordos entre patrões e empregados e impõe uma tutela
que nem sempre é adequada aos interesses de quem trabalha.
Mas o
autoritarismo não reside apenas no sistema judiciário, um dos mais caros do
mundo e um dos menos eficientes, e na burocracia, cuja produtividade é risível
quando voltada para o cidadão e admirável quando dedicada à cobrança de
tributos. O autoritarismo também propõe e incentiva o patrulhamento ideológico.
Quem está fora da curva do pensamento politicamente correto pode ser trucidado.
O
império do autoritarismo tem ainda sua face na superficialidade das análises e
das opiniões. Não sabemos de nada e por isso sabemos de tudo.
Muitos
têm apenas palavras vazias para todas as opiniões, que devem ser dadas num mar
de mediocridade. Achar que todo político é ladrão e que todas as opiniões que
nos aborrecem são vendidas também é autoritário.
Assim
como parar em fila dupla e avançar o sinal de trânsito.
É
autoritário concordar com a injustiça quando o réu nos desagrada. Da mesma
forma, é autoritário condenar a justiça quando o réu nos é simpático. O
autoritarismo está presente ainda nas interpretações de que tudo o que o Poder
Executivo propõe deve ser aceito sem questionamento no Legislativo, como se o “hiperpresidencialismo”
que nos escraviza devesse ser a regra. No mínimo, revelamos ignorância do papel
dos Poderes da República e de suas autonomias.
Nosso
autoritarismo está cristalizado na relação subalterna entre a sociedade e o
Estado. Antes, essa relação decorria de um arranjo de oligarquias que
controlavam o País. Mais recentemente, decorre do paternalismo de esquerda,
que, ao tempo em que aparelha a máquina pública, trata a cidadania como
dependente, e não como os devidos patrões da Nação.
Também é
lamentável ver a burocracia, sob a complacência da Justiça, ganhar salários
acima do teto constitucional, em prova cabal da omissão e do desrespeito aos
interesses da cidadania. Assim como usar a corrupção para financiar partidos e
campanhas ou usar as verbas do Fundo Partidário para pagar mordomias.
No
sistema político, o sistema partidário caótico e sua absurda fragmentação não
são uma expressão saudável da democracia. São um produto da submissão do debate
de ideias e programas ao interesse rasteiro de muitos caciques e chefes
políticos que fazem qualquer negócio pelo poder.
Como disse o político britânico Benjamin Disraeli, “danem-se os
princípios, o que interessa é o partido”. Prática de muitos que governaram o
País nas últimas décadas.
Estamos
em lenta evolução, mas ainda na infância da democracia. E engatinhando numa
creche de baixíssima qualidade quando se trata de educação cívica voltada para
os direitos e os deveres da cidadania. Ainda levará tempo para nos livrarmos
desse carma. Em longo prazo, com melhor educação e o trabalho consciente de
formadores de opinião talvez possamos vencer esta etapa da nossa construção
social cidadã e democrática, derrotando o autoritarismo que nos contamina.
Blog do Murillo de
Aragão
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