Percival de Souza
Enfrentar
o mundo do crime e as suas regras próprias, implacáveis. É aproposta
de Sérgio Moro, o ex-juiz e agora ministro da Justiça, em seu pacote à
Dostoievski — crime e castigo — em mãos do Congresso Nacional eà
vista dos mais variados tipos de “especialistas” e “juristas” — alguns
sim, outros não ou nem tanto. A matéria é de interesse nacional.
O
projeto chegou acompanhado de uma mensagem do presidente Bolsonaro. É um
pacote. A tendência é que o pacote seja embrulhado, de preferência em papel
celofane, não quero entrar no mérito se cor de rosa ou azul, até porque existem
daltônicos.
“A
criminalidade bateu recordes, fruto do enfraquecimento das forças de segurança
e leis demasiadamente permissivas.” Criticou a “efusiva vitimização social do
criminoso: a mentalidade era: quem deve ir para o banco dos réus é a
sociedade”. A Associação dos Juízes Federais achou o projeto “bastante
positivo”. O ministro Herman Benjamim, do Superior Tribunal de Justiça, também
foi favorável: “Sabe-se que não há justiça quando a sanção, caso escape da prescrição,
vem efetivada anos depois do crime, tendo o criminoso inserido na sociedade e
no meio das suas próprias vítimas, o que gera inevitável e pernicioso geração
de impunidade”.
Críticas
vieram de todos os lados, em número aritmeticamente superior aos elogios,
apontando falhas e inconstitucionalidades, repetindo à exaustão discursos
enfadonhos.
Quem vai
decidir? O Congresso, que possui alguns covis de raposas, novatos estreantes e
inflamados, e bem-intencionados perdidos numa fase darwiniana de adaptação.
Quem tem
razão? É a pergunta a ser respondida e com boa argumentação: de que lado ela
está, e por quê. Aparentemente simples, mas não é, porque aqui entram as
ferozes disputas partidárias, os dogmas ideológicos em confronto direto com a
realidade, que não permite fantasias.
Há
décadas ouço falar na necessidade de reformar o Código Penal. Comissões foram
criadas para isso, em todos os níveis, e prestei singelos depoimentos em
Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Câmara dos Deputados, Senado da
República e clubes de serviço. Muitos anteprojetos foram apresentados, um deles
pela Associação Paulista de Magistrados, à qual dei a minha singela
colaboração. Assisti a vários encontros de secretários de Segurança no
Ministério da Justiça. O assunto, sempre o mesmo: a lei precisa mudar. Numa das
comissões, a da Câmara, citei uma frase do escritor Albert Camus: vivemos
tempos em que corremos risco de morte se ousarmos dizer que... dois mais dois
são quatro.
Quatro?
Não. Somos recordistas mundiais em assassinatos, mas agimos como se quem mata
tivesse direito a uma amostra grátis. Isso mesmo: mata-se, júri popular, recurso
automático e empurra-se com a barriga até uma última instância (só no Brasil é
que existem quatro) e assim se caminha para a prescrição, isto é, a impunidade.
Quatro?
Não. Temos um sistema para prender inócuo, com reincidência acima do patamar de
70%, e assim mesmo preferimos, mesmo sabendo que ali está instalada a
universidade do crime, argumentar, vestindo a capa de “especialista”, que mesmo
sendo ele inútil temos que esvaziá-lo e não aprimorá-lo. Ou seja: perdeu a
função, mas tem que ser mantido.
Quatro?
Não. Para que serve o Tribunal do Júri condenar assassinos, a expressão máxima
da violência, se a decisão do tribunal popular (“soberano”, segundo a
Constituição), depende de ratificação no Tribunal de Justiça Estadual, que
também de nada vale, pois fica à mercê de confirmação do Superior Tribunal de
Justiça, também inútil, pois cabe um último recurso ao Supremo Tribunal
Federal?
Quatro?
Não. Recorrer aos escalões superiores, as Cortes do Planalto, custa muito
dinheiro. Carvão. Cascalho. Grana. Impossível e inacessível para a grande massa
carcerária. Esta, como pedir liberdade em forma de habeas corpus prescinde de
advogado constituído, produz hieróglifos escritos até em papel higinênico. A
verdade é essa. Por que tanta celeuma, então? Porque estamos diante de uma
reserva de mercado. É mais vantajoso manter as coisas como estão.
Quatro?
Não. Cabe aqui uma recordação histórica: quando matar não era direito, a lei
dizia que o réu, ao ser pronunciado (decisão judicial de mandá-lo a júri), era
automaticamente preso. Isso mesmo: preso. O delegado Sérgio Fleury, pai do
Esquadrão da Morte, foi pronunciado num dos muitos processos. Ficou “preso”
(ficava na sua própria sala no Dops, a polícia política). Foi aí que o
Congresso aprovou uma lei que dava ao réu acusado de homicídio o privilégio de
responder ao processo em liberdade. A ignomínia ficou conhecida como “Lei
Fleury”, ou seja, a única lei do país que é conhecida pelo nome do beneficiado,
e não do autor. Está em vigor.
Entulhos
da ditadura às vezes são considerados interessantes. Duas vezes quatro.
Quatro?
Bandido anda armado até os dentes, mas não deve ser importunado, jamais, porque
antes dos disparos é apenas suposto arcanjo ou querubim, e não há nada demais
em andar pelas ruas com pistolas privativas (9 mm e ponto 40), metralhadoras,
escopetas e fuzis. Que há de mal nisso?
Quatro?
Não. Polícia infiltrar agentes em quadrilhas super-organizadas e surpreendê-las
antes de dar o bote? Um exagero, porque seriam apenas “atos preparatórios”,
crimes apenas planejados, e “não consumados”. A polícia que espere acontecer,
porque senão estaríamos falando de um “flagrante preparado”, definição saborosa
como um favo de mel na boca de um “jurista” da corrente “garantista”.
Combata-se a polícia, e não o crime.
Quatro?
Não. Nada como um bom bode expiatório. No caso, a imprensa em geral. A
população vive uma “sensação de insegurança” provocada pela divulgação dos
fatos e não pelos fatos em si. Ou seja: antes de Gutemberg, vivíamos no
Paraíso. O Éden foi banido do mapa quando Caim, lendo certo tipo de jornal ou
influenciado por assistir a certos programas de televisão, tirou a vida de seu
irmão Abel. Há um “jurista” que sente um prazer erotizado ao “denunciar” a
“imprensa predadora”, embora a venere quando ele é personagem.
Quatro?
Não. Tudo está ótimo, tudo está funcionando, cada instituição cumpre o seu
papel, e os sábios há décadas se debruçam sobre leis para decidir que nada vai
se mudar.
O autor
do novo pacote, Sérgio Moro, vive o seu momento de crise de identidade. Como magistrado,
tinha o poder com uma caneta nas mãos. Uma bela caneta. A de Bolsonaro é uma
Bic, mas ele está procurando cumprir exatamente o que cumpriu em campanha. Os
adversários preferem vê-lo como uma espécie de piloto de avião, e como são do
contra preferem que o avião despenque. O problema do raciocínio é que estamos
todos a bordo, sem direito a máscara de oxigênio ou bancos flutuantes. Moro,
agora, precisa aprender a conviver com certos tipos que ele que preferiria
interrogar. Não é fácil deixar de ser estilingue e virar vidraça.
Quatro.
Não. Para o pacote de Moro, faltou uma consulta ao mundo do crime, quer no
cárcere, quer fora dele. Sim, porque o número de mandados de prisão a serem
cumpridos se aproxima vertiginosamente do número de enclausurados. Além do que,
como o crime organizado manda de fora para dentro e de dentro para fora, seria
apropriado consultá-lo. Desconfio de que esse mundo criminógeno está aplaudindo
entusiasticamente às reações anti-proposta de Moro. Palmas. Muitas palmas.
Dois
mais dois são quatro? Não quero dizer que estão todos enganados, são três, mas
estou temeroso de que um sniper do crime me acerte um disparo na cabeça. O que
poderia impedi-lo de andar por aí com um inofensivo AR-15 nas mãos? Ele não
estaria em ação, eu é que fiquei no caminho dele.
Bem
feito, não soube ler Camus direito. Anteprojetos foram para a gaveta. Pacote
pode ir para o lixo, para o qual um “especialista” irá designar um impecável
coletor de resíduos. Chamá-lo de lixeiro não ficaria bem.
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