Ana
Lucia Gonzalez
Pense em como é sua vida digital.
Você está no celular, entra em um site de buscas para procurar
restaurantes nas redondezas e aparecem várias sugestões.
O seu aplicativo de música oferece uma playlist que combina
perfeitamente com você, e os seus feeds de rede social são em sua maioria livres
de conteúdo ofensivo.
Mas você sabia que se não fosse por um exército oculto de milhares de
trabalhadores em todo o mundo, nada disso seria possível?
São os chamados "microtrabalhadores" - uma espécie de
crowdsourcing (colaboração coletiva) paga para executar tarefas que as máquinas
não conseguem desempenhar sozinhas.
Esses empregos costumam ter uma reputação negativa - são vistos como
mal remunerados e podem envolver um trabalho repulsivo, de analisar vídeos e
imagens com conteúdo perturbadores.
Mas para muita gente, é o trabalho perfeito.
O que é
'microtrabalho'?
Os microtrabalhadores geram dados ao transcrever, limpar, corrigir e
categorizar conteúdo.
Eles ajudam a fornecer dados para os algoritmos de aprendizagem
automática ("machine learning", em inglês), que são a base da
inteligência artificial.
As tarefas podem incluir desenhar caixas delimitadoras ao redor de
imagens para ensinar aos carros sem motorista o que é uma árvore, um obstáculo
ou uma pessoa em movimento.
Eles também rotulam os conteúdos com emoções, de modo que os
algoritmos de análise de sentimentos possam aprender como soa uma música
"triste", ou se um texto ou uma palavra é "alarmante".
Podem, ainda, identificar imagens de seres humanos, para ajudar o
reconhecimento facial a diferenciar entre características como olhos, narizes e
bocas.
Quem usa
esse serviço?
A Amazon montou a primeira plataforma de microtrabalho em 2005.
Na ocasião, o CEO da empresa, Jeff Bezos, a descreveu como
"inteligência artificial artificial".
A plataforma chama Amazon Mechanical Turk, nome inspirado no
"Turco Mecânico", um robô jogador de xadrez do século 18 que os
adversários enfrentavam pensando estar competindo contra uma máquina, quando na
verdade havia um mestre de xadrez escondido lá dentro.
A Amazon usou esse sistema pela primeira vez para eliminar milhões de
páginas duplicadas de produtos, uma vez que os computadores não conseguiam
perceber diferenças sutis nas páginas, mas os humanos, sim.
No entanto, como uma pessoa não seria capaz de completar essa tarefa
sozinha, eles dividiram o trabalho em tarefas pequenas, independentes e
repetitivas que poderiam, em teoria, ser realizadas em segundos por
trabalhadores humanos de qualquer lugar.
Em seguida, lançaram esse modelo de trabalho por meio de um site que
servia como intermediário entre empresas que postavam tarefas e candidatos a
relizar o trabalho.
Os microtrabalhadores ao redor do mundo que completam as tarefas são,
então, pagos por elas.
Quem são os
microtrabalhadores?
É difícil estimar quantos microtrabalhadores há no mundo, já que as
companhias não divulgam números oficiais, a não ser os de usuários registrados.
Mas, para se ter uma ideia, estima-se que na Amazon Mechanical Turk, a
plataforma mais conhecida, dezenas de milhares de pessoas trabalhem todos os
meses - e que em qualquer momento do dia haja cerca de 2 mil a 2,5 mil
microtrabalhadores ativos.
Esse número foi calculado por Panos Ipeirotis, professor na
Universidade de Nova York, nos EUA.
O estudo dele constatou que a maioria dos trabalhadores da MTurk está
baseada nos EUA e na Índia - mas isso se deve principalmente ao fato de que a
plataforma limitou por muitos anos o acesso de trabalhadores de fora do
território americano.
Atualmente, existem muitas outras plataformas de microtrabalho ao
redor do mundo.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) entrevistou 3,5 mil
microtrabalhadores em 75 países.
E descobriu que a idade média dos entrevistados era de 33 anos.
Um terço era de mulheres, mas em países em desenvolvimento, esse
percentual caía para um quinto.
Eles também são instruídos - menos de 18% dos entrevistados haviam
estudado até o ensino médio, um quarto havia frequentado a universidade e 20%
tinham pós-graduação.
Mais da metade é especialista em ciência e tecnologia, 23% em
engenharia e 22% em tecnologia da informação.
Como é ser
um microtrabalhador?
O microtrabalho pode ser uma tábua de salvação para pessoas que não
têm acesso a emprego ou a fontes de renda tradicionais, especialmente em países
em crise.
Michelle Muñoz é dentista. Ela mora na Venezuela e trabalha online há
dois anos.
O colapso da economia e a hiperinflação galopante tornaram o
microtrabalho a melhor opção para Michelle ganhar dinheiro na Venezuela.
"Eu tinha um consultório. Mas, infelizmente, tive que fechá-lo
por causa da emigração. Muitas pessoas se foram, e as que ficaram não têm
dinheiro suficiente para pagar dentista, precisam se preocupar com comida,
educação e outras coisas", explica.
Yahya Ayoub Ahmed é sírio e vive no campo de refugiados de
Darashakran, em Erbil, no Iraque, após ter fugido da guerra.
Ele aprendeu inglês e habilidades de TI com uma organização chamada
Preemptive Love, o que permitiu a ele ter acesso a microtrabalhos.
"Você pode usar (esse sistema) remotamente e gerar renda. Por
aqui, se candidatar a um emprego é muito difícil, não é como se você pudesse
simplesmente dar um Google em busca de trabalho, então isso permite que você
trabalhe sem precisar se candidatar e enviar um currículo", explica.
Ele aprendeu a realizar tarefas altamente precisas, como traçar caixas
delimitadoras em volta de imagens ou desenhar máscaras de segmentação.
"Estou muito animado em aprender sobre machine learning e
inteligência artificial", diz ele.
Mas há um obstáculo extra para trabalhadores em países como o Iraque,
já que as tarefas são voltadas principalmente para países desenvolvidos,
explica Allen Ninous, da Preemptive Love.
"A maioria dos serviços restringe o acesso de iraquianos. E mesmo
que conseguissem entrar, não há uma maneira simples de receber o dinheiro, uma
vez que todos os pagamentos são feitos por meio de sistemas bancários
terceirizados, como o PayPal", diz Allen Ninous, da Preemptive Love.
A organização dele assina acordos especiais com empresas para
facilitar o acesso.
Encontrar trabalho é ainda mais complexo para quem faz isso sozinho em
casa.
Rafael Pérez, que mora na Venezuela e ganha a vida com microtrabalhos,
descreve uma situação semelhante.
Ele diz que não pode realizar a maioria das tarefas que são postadas.
E conta como muitas vezes levou calote.
"Lembro quando ganhei US$ 180 em 15 dias. É muito dinheiro, mas
nunca me pagaram. Mandei email, liguei... mas você não tem com quem
reclamar."
Quanto
paga?
O microtrabalho tem sido alvo de críticas por pagar muito pouco. A
pesquisa da OIT mostrou que os trabalhadores ganhavam, em média, US$ 4,43 por
hora.
Mas o pagamento varia muito de acordo com a região.
Enquanto nos EUA eles ganham uma média de US$ 4,70 (que é menos do que
o salário-mínimo), na África recebem US$ 1,33.
E isso sem contar que os trabalhadores gastam, em média, 20 minutos em
atividades não remuneradas para cada hora de trabalho remunerado.
Isso inclui procurar tarefas ou fazer testes para se qualificar para
as mesmas.
"Passo o dia todo, ou a maior parte do dia, procurando tarefas.
Quando consigo, tenho de sentar e fazer", diz Rafael.
Eles também gastam parte do tempo fugindo de golpes.
Michelle conta que no início foi enganada por sites fraudulentos, mas
que agora se certifica de pesquisar e submeter as plataformas a um período de
teste antes de começar a trabalhar nelas.
A forma como recebem o pagamento tampouco é simples.
Como é
feito o pagamento?
Os trabalhadores são remunerados por meio de pagamentos eletrônicos.
Para terem acesso aos valores, usam plataformas online em que
terceiros convertem seu crédito eletrônico em dinheiro vivo, após cobrar uma
comissão.
Rafael diz que, se o dia for favorável, ele ganha de US$ 8 a US$ 10,
com os quais consegue comprar uma caixa de ovos pequena, um quilo de farinha de
milho e um quilo de feijão.
"Você não vai viver muito bem, mas vai comer", diz.
Ele se concentra naquilo que chama de tarefas "tediosas",
mas fáceis, como buscar informações na web e identificar partes de frases.
Michelle, por sua vez, realiza tarefas mais complexas, como traduções,
desenhos de caixas e análise de sentimentos. Ela conta à BBC que chegou a
ganhar cerca de US$ 80 em um dia, que usou para comprar um smartphone que
utiliza agora para o microtrabalho.
Ela acredita que deveria haver mais "apoio e reconhecimento"
aos microtrabalhadores, que as plataformas ganham muito dinheiro graças ao
trabalho deles e "pagam mal, pelo menos na Venezuela".
É o
trabalho do futuro?
Paola Tubaro, que estuda as práticas de microtrabalho, acha que esse
tipo de trabalho não é transitório, mas estrutural para o desenvolvimento de
novas tecnologias, como a inteligência artificial.
"Mesmo que as máquinas aprendam, digamos, a reconhecer cães e
gatos e não precisem de mais exemplos, ainda é necessário fornecer mais
detalhes para elas reconhecerem, como sinais de trânsito em outros idiomas ou
de outros países."
À medida que essas tecnologias avançam, aumentará a necessidade de
pessoas para alimentá-las de dados. "Não é algo temporário", avalia.
Atualmente, não há regulamentação governamental para plataformas de
microtrabalho, portanto, são as próprias plataformas que estabelecem as
condições.
Também houve críticas à falta de apoio aos microtrabalhadores que
realizam tarefas de moderação e estão expostos a conteúdos perturbadores, com
os quais têm de lidar sozinhos.
A OIT, em seu estudo, pede uma melhor regulação do setor para que
certas condições - como salário-mínimo e maior transparência nos pagamentos -
sejam cumpridas.
Por enquanto, diz Tubaro, "o microtrabalho é invisível para muita
gente e tem atraído pouca atenção da opinião pública".
Até mesmo o debate ético em torno da inteligência artificial, diz ela,
se concentrou na transparência e na imparcialidade dos algoritmos, mas
"não levou em conta os trabalhadores que estão por trás da própria
produção da inteligência artificial".
"Não pode ser justo se essas pessoas não são pagas o suficiente,
ou não têm nenhum tipo de proteção social. Se as pessoas trabalham sob as
mesmas condições que as fábricas do século 19, isso não é algo que nossa
sociedade deveria aceitar."
BBC
World Service
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