quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Itália volta a mergulhar na incerteza política com renúncia de premiê e avanço de Salvini

Lucas Ferraz

A atual crise política italiana, que culminou na renúncia do primeiro-ministro Giuseppe Conte, mantém atual uma famosa frase atribuída ao ditador fascista Benito Mussolini, para quem governar a Itália não era difícil, era simplesmente inútil.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), o país já teve 65 governos, de longe o mais instável da Europa. Agora, em meio à conflagração política e a incertezas econômicas, começará as tratativas para a formação do 66º.

O governo que se encerrou nesta terça-feira (20), uma aliança entre o movimento populista 5 Estrelas, contra o sistema político, e a Liga, partido radical de direita, terminou após 14 meses graças a um de seus integrantes.


Vice-premiê e ministro do Interior, Matteo Salvini, líder da Liga, foi o responsável por apresentar há duas semanas uma moção de desconfiança contra o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, abrindo a crise que chegou à renúncia desta terça.

Era um ineditismo: pela primeira vez na história da República italiana, um partido da maioria apresentava um voto de censura contra o chefe do governo.

Advogado independente, com um ar professoral, Conte assumiu o posto de primeiro-ministro após um acordo entre a Liga e o 5 Estrelas - formalizado em junho de 2018, o contrato de formação da aliança chegou a ser reconhecido em cartório.

Mas desde maio, quando se iniciou uma aberta e cada vez mais aguerrida disputa entre os dois partidos, o fim do governo parecia próximo, apesar da reiterada negativa dos protagonistas.

Reflexos da UE
O combustível da crise foi o resultado das eleições do Parlamento europeu, que consolidou Salvini como o político mais popular da Itália - sua Liga obteve 34% dos votos.

O Movimento 5 Estrelas, que tinha sido o mais votado na eleição nacional de março de 2018, caiu no pleito europeu para 17%, ficando atrás do Partido Democrático, de centro-esquerda e em forte crise de identidade.
Um dos líderes da direita populista em expansão na Europa, o ministro do Interior acabou impondo sua agenda nesses 14 meses.


Contrário à imigração, ele determinou o fechamento dos portos para embarcações que resgatam imigrantes no mar Mediterrâneo e transformou ONGs em inimigas do Estado nos seus discursos.

Como o presidente americano Donald Trump, diz lutar para combater a "invasão de imigrantes", e a sua agenda parece agradar à maioria dos italianos.

Agressivo com críticos e adversários, especialmente os da esquerda, Salvini também passou a explorar símbolos religiosos em seus eventos políticos - beijando um rosário, por exemplo - e critica frequentemente figuras como o papa Francisco, defensor do acolhimento aos imigrantes, e líderes europeus como a alemã Angela Merkel e o francês Emmanuel Macron.

Oficialmente, Salvini alegou diferenças programáticas com o aliado para detonar a atual crise. A principal delas, explicitada numa votação no Parlamento, diz respeito a um antigo projeto de construção de um trem de alta velocidade entre a cidade italiana de Turim e a francesa Lyon - o 5 Estrelas é contra o projeto.

Mas o real motivo do fim do arranjo político foi declarado pelo próprio líder da Liga ao encaminhar o pedido de rompimento, no dia 8, quando citou outra famosa frase de Mussolini, personagem ainda muito presente no cenário nacional: "Peço aos italianos para me dar plenos poderes".

Qual será o futuro da Itália?
A resolução da crise, ao que tudo indica, não será rápida - se o caminho for o voto, uma nova eleição não deve ocorrer antes do final de outubro.
Conforme ficou claro nos últimos dias, Salvini é o político mais popular nas ruas, mas não tem a mesma aprovação nem a maioria no Parlamento.

Sua pressa para ir logo às eleições foi rechaçada na semana passada numa deliberação que aliou o 5 Estrelas ao Partido Democrático - o que muitos viram como um ensaio de uma possível aliança entre as siglas, adversárias num passado recente.

Hoje no país não parece haver alternativa com a mesma força eleitoral de Salvini, mas ele precisará de aliados para governar. Os mais prováveis, atualmente, são dois partidos: o Força Itália, de direita, comandado por Silvio Berlusconi, e o Irmãos da Itália, defensor de uma agenda anti-imigração como a da Liga.

Apesar de ter contado até agora com um discreto apoio de Berlusconi, Salvini ainda não recebeu dele um sinal explícito de aliança para um futuro governo.

O empresário, senador e ex-premiê tem posições muito diferentes sobre temas como a União Europeia, da qual é um ferrenho defensor. Nos últimos dias, o líder da Liga afirmou em entrevistas que deixar o euro não está nos planos - mas essa foi, durante anos, uma de suas bandeiras.


Por outro lado, um acordo entre 5 Estrelas e Partido Democrático é defendido exatamente para frear a ascensão de Salvini. Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro e um dos expoentes do PD, defendeu essa medida: um governo de unidade nacional para, segundo ele, salvar a Itália do autoritarismo e dos riscos de recessão.

A deterioração econômica é outro problema no horizonte do país - tema que ganhou novas proporções após a notícia de que a Alemanha, maior economia do euro, entrou em recessão.

A Itália precisa aprovar no próximo mês o seu Orçamento, que deverá ser analisado pela União Europeia - sem um governo estabelecido, não se sabe como será feito. A crise política poderá ainda resultar num aumento de impostos.

Com os problemas que a Itália terá de resolver no curto prazo, Giuseppe Conte afirmou nesta terça que a decisão de Salvini era oportunista e seguia "interesses pessoais", sem levar em consideração os danos que poderá causar ao país.

Com a renúncia do primeiro-ministro apresentada nesta terça, os próximos passos no calendário político serão arbitrados pelo presidente da República, Sergio Mattarella, que tem função decorativa e não participa do governo.
Como ocorre nos regimes parlamentaristas, Mattarella vai consultar os líderes dos partidos no Congresso italiano, de onde poderá sair um governo de unidade nacional, como prega Renzi, ou mesmo a escolha de um governo técnico (se não houver acordo) para lidar com as urgentes questões econômicas até a realização de novas eleições.

Há ainda uma outra opção. Nos últimos dias, especulou-se na imprensa e entre políticos um possível rearranjo entre a Liga e o Movimento 5 Estrelas, com a escolha de um novo primeiro-ministro. Luigi Di Maio, líder do 5 Estrelas e outro vice-premiê do governo que acaba, disse não confiar mais em Salvini, o que leva a crer que essa opção perdeu força.

Mas tratando-se da Itália, não surpreenderia se uma nova aliança entre os recém-separados for anunciada.

De Roma para a BBC News Brasil

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