JR Guzzo
Há um
novo totalitarismo crescendo pelo mundo afora — mais nocivo, talvez, do que foi
na maioria das suas variadas encarnações anteriores. Essa praga antiga se
apresenta, em sua versão moderna, como o contrário daquilo que realmente é.
Engana melhor do que nunca as almas ansiosas em praticar o bem. Acaba tendo
mais chance, no fim das contas, de ser mais eficaz do que jamais foi. Trata-se,
para ir logo ao centro da questão, de impor às pessoas uma coleção de regras de
pensamento e de conduta que devem ser obedecidas como um muçulmano obedece ao
Alcorão; ou o sujeito se submete a isso, ou é excomungado como inapto para
levar uma vida aceitável pelo conjunto da humanidade. E que regras são essas? O
cidadão é bombardeado por elas o dia inteiro. Tem de aceitar como verdades
absolutas, por exemplo, que todos têm o direito de terem tudo, independente do
que façam ou deixem de fazer, que a ciência deve se subordinar “à sociedade”,
ou que existe apenas uma maneira, e nenhuma outra, de pensar sobre democracia,
raça, sexo, natureza, religião, animais, alimentação, agricultura, dinheiro,
mérito individual, liberdade de expressão e mais uns 5.000 outros assuntos.
Alguma
coisa existe? Então é preciso criar uma lei sobre ela, dizendo o que é certo e
o que é errado a seu respeito. É proibido discordar do que foi decidido. Faz
parte das suas obrigações sociais, por exemplo, aceitar que as crianças não
nascem com um sexo definido pelos seus órgãos genitais, masculinos ou
femininos, mas decidem depois se querem ser homem ou mulher. É recomendado,
também, achar que a vida de um animal selvagem tem prioridade em relação à vida
de um ser humano. É preciso concordar com a ideia de que o homem não tem o
direito de alterar a natureza em seu benefício, ou que a vegetação natural não
pode ceder espaço para a produção de alimentos. Deve ser vetado ao mundo pobre,
ou mais pobre, ter qualquer aspiração realista a ser menos pobre — sua função
no planeta é permanecer como está hoje, pois se quiser ficar mais parecido com
o mundo rico vai consumir muita água, emitir carbono, usar fertilizantes e
praticar sabe-se lá quantas desgraças a mais. Agricultura moderna? Trata-se de
algo privativo do Primeiro Mundo — “fazendas aqui, florestas lá”, reza o grande
credo atual dos ambientalistas, agricultores e milionários americanos.
Há leis
cada vez mais autoritárias sobre toda e qualquer questão que envolva a cor da
pele das pessoas — não só a cor, apenas, mas também a tonalidade dessa cor.
Tudo o que é considerado branco, em princípio, é culpado de alguma transgressão,
ou pelo menos suspeito; só à essa porção da humanidade se aplica a ideia do
pecado original, e só a ela se impõe a obrigação de passar a vida purgando suas
culpas de nascença através de uma série crescente de obrigações. Ser
considerado negro, na nova forma totalitária de organizar a vida, é, ao
contrário, uma virtude em si. Além disso, confere-se às pessoas definidas como
negras direitos especiais, não previstos em nenhuma constituição civilizada —
crédito permanente por virtudes não comprovadas, ressarcimento por injustiças
sofridas até 500 anos atrás, vantagens sobre os não-negros decididas pelo poder
público, como as “quotas”, e por aí se vai. Qualquer tentativa de debater o
assunto é considerada automaticamente como racismo.
O novo
totalitarismo, até agora, não resolveu o que se deve pensar sobre as etnias que
não são nem brancas e nem negras — os considerados “índios” desfrutam mais ou
menos do mesmo status conferido aos negros, mas ainda não há definição sobre as
raças orientais, por exemplo, o que deixa num limbo, só na China, Japão e
Coréia, cerca de 1 bilhão e 600 milhões de pessoas. Pecadores ou justos? Há
pontos obscuros, também, quanto aos próprios negros — quando vivem na África
parecem ser considerados inferiores, de alguma forma, aos que não vivem lá.
Como apontado acima, há restrições sérias quanto aos seus direitos de escapar
da miséria, por causa dos possíveis danos que trariam à vegetação nativa — e,
talvez mais grave ainda, aos animais selvagens. Se um leão, por exemplo, sair pelas
ruas de Londres querendo comer gente, será abatido pela polícia. Na África,
porém, pode comer quantos negros quiser. Na visão de praticamente todos os
ambientalistas, o ser humano, ali, ameaça o território do bicho e, portanto,
não tem direito a se defender — que se vire para escapar, é tudo o que lhe
recomendam. Jamais passa pela cabeça de alguém que talvez aconteça o contrário
— é o leão quem ameaça a vida do homem e sua família. Nessas horas a questão
racial muda de qualidade. Ser branco na Europa urbana é muito melhor, e mais
seguro, do que ser negro no meio do mato na África.
Há leis
cada vez mais autoritárias sobre toda e qualquer questão que envolva a cor da
pele das pessoas
Um
episódio recente, aqui no Brasil, serve de maneira exemplar para trazer à luz
do sol outros despropósitos causados pelo novo totalitarismo na “questão
racial”. Uma atriz negra foi proibida, na prática, de receber o papel de uma
espécie de heroína social negra (figura que depois, na vida real, acabaria se
revelando uma fraude), por não ter uma pele considerada suficientemente negra
para representar a personagem. Pior: não só apoiou o veto a si própria, como
pediu desculpas por ter aceito inicialmente o papel sem ter a quantidade de
cromossomos suficiente para tal. Quantos seriam necessários, então? Qual a
porcentagem aceitável de sangue negro que alguém precisa ter para representar o
papel de um negro? Fica-se com a impressão que o próximo passo será a exigência
de testes de laboratório, com cálculos de DNA e o veredito de uma junta de
biólogos. O contrassenso explícito, no caso, é pregar ações contra a
discriminação racial e, ao mesmo tempo, praticar racismo da pior espécie — ou
seja, permitir ou proibir uma pessoa de fazer um trabalho não em função dos
seus méritos, mas pela cor da sua pele, ou do tom da sua pele.
A
agressão às liberdades, nessa nova maneira de ver o mundo, pode ser
particularmente venenosa na área cultural — na verdade, a cultura tem sido uma
das vítimas preferidas dos novos totalitários. Ainda há pouco, em janeiro deste
ano, a universidade católica de Notre Dame, uma das mais prestigiadas dos
Estados Unidos, mandou cobrir (até a sua remoção definitiva) uma coleção de
doze murais, descrevendo cenas de Cristóvão Colombo na América; desde 1880 as
obras enfeitavam a entrada do seu prédio principal. O reitor da universidade,
atendendo a um antigo abaixo-assinado de 300 estudantes (entre os 8.500 que
estudam ali) e funcionários, decidiu que as pinturas significariam a
cumplicidade da escola diante da “exploração e repressão dos americanos
nativos” pelos europeus; esse “lado escuro” da história, disse ele, não poderia
mais ser exibido ao público. Stalin não faria melhor na velha União Soviética.
É em
casos como esse, e em tantos outros, que aparece a semente do mal — a constante
imposição de uma visão do “bem” através da prática de atos que, historicamente,
só são cometidos em tiranias. Há cada vez mais restrições, por exemplo, à
liberdade de premiar. Do Nobel ao Oscar, tornou-se comum dar os prêmios não
mais a aquele que foi considerado o melhor trabalho, mas à pessoa que foi
considerada a mais representativa de alguma virtude — pertencer à “minorias”,
ser “perseguido”, levar este ou aquele estilo de vida etc. É uma espécie de
imposição, em escala mundial, do Prêmio Lenin. A liberdade de palavra, cada vez
mais, vai para o espaço — o ministro brasileiro do Ambiente, Ricardo Salles,
viu-se impedido semanas atrás de falar em diversas cidades da Europa depois que
600 cientistas assinaram um manifesto denunciando o Brasil por crimes
ambientais. Que crimes, especificamente? Algum deles verificou as acusações,
com rigor técnico, antes de assinar a condenação? Nenhum — e isso, tanto quanto
se saiba, é o contrário de ciência, atividade que se obriga a lidar com fatos,
e não com crenças. Trata-se cada vez menos, na verdade, de defender a sua
opinião; o que importa é não permitir que seja ouvida a opinião do outro. Não
apenas estão censuradas as respostas diferentes. Não se admite, sequer, que
sejam feitas as perguntas.
O novo
totalitarismo, naturalmente, reserva para política um contêiner de mandamentos
tão extremos como os aplicados para as questões descritas acima. Sua principal
preocupação, hoje em dia, parece ser aquilo que descreve como o “perigo das
maiorias”. Que raio seria isso? É algo tão simples quanto parece. Deixar que
eleições livres decidam por maioria de votos as questões importantes é um risco
cada vez mais contestado, pois o ponto de vista contrário ao seu pode ganhar —
e aí vai ser preciso aceitar “gente errada” no governo. Jair Bolsonaro, por
exemplo: eis aí, na visão do novo totalitarismo, um caso aberrante de erro
cometido pela maioria.
Donald
Trump, então, é citado praticamente como uma prova científica de que “é preciso
fazer alguma coisa” para que o eleitorado não tenha mais o poder de escolher um
sujeito como ele para a Presidência — e causar, com isso, prejuízos, mudanças e
retrocessos no processo civilizatório mundial, tal como ele é entendido por
quem não aprova a conduta do presidente americano. E se os dois, Bolsonaro e
Trump, forem reeleitos, então? Aonde vai parar este mundo?
É proibido discordar do que foi
decidido
O mesmo
se aplica a Matteo Salvini, hoje o maior líder político da Itália, a Benjamin
Netanyahu, que há 11 anos seguidos ganha todas as eleições em Israel, ou a
Narendra Modi, visto como um pesadelo de direita na Índia — onde acaba de ser
reeleito para a chefia do governo numa eleição em que votaram 600 milhões de
pessoas. Isso mesmo, 600 milhões — um número que ajuda, definitivamente, a entender
por que o universo que chama a si próprio de progressista fica tão incomodado
com o “perigo das maiorias”.
Há
também, no atual time de assombrações, os ingleses que querem sair da
Comunidade Europeia. Há os escândalos mundiais detectados na mera existência do
líder das Filipinas, ou do chefe direitista que comanda a Hungria ganhando
todas as eleições desde 2010 — como se a Hungria pudesse ameaçar alguém num
mundo com 7 bilhões de habitantes. Nenhum deles — realmente nenhum — chegou ao
governo por golpe de Estado; é tudo resultado de eleição livre. Problemaço.
Na falta
de algum projeto coerente para lidar com essas adversidades, o novo
totalitarismo se dedica a tentativas variadas de sabotar os governos eleitos,
ou a expor a relação completa dos delitos que atribui a seus eleitores —
ignorância, despreparo, cegueira política, fascismo, estupidez e por aí afora.
Na melhor das hipóteses, são inocentes úteis que se deixam enganar pela
demagogia ou, como se diz na moda atual, pelo “populismo”. A ferramenta básica
é classificar como autoritária, reacionária ou totalitária toda a opinião que
não seja a sua. Mais que tudo, talvez, se chama de “discurso do ódio” qualquer
posição divergente — algo que, naturalmente, deveria ser proibido por lei. Na
verdade, de maneira aberta ou disfarçada por palavras em favor da moderação e
contra o extremismo, busca-se bloquear, como numa espécie de prisão preventiva,
a manifestação do ponto de vista alheio. Foi o que se viu nas últimas
manifestações de rua em apoio a Bolsonaro e aos seus programas — as pessoas não
deveriam se meter numa coisa dessas, porque era perigoso para “as
instituições”, seria um incentivo ao mal, iria fortalecer o radicalismo e sabe
lá Deus quanta coisa mais. Resumo da ópera: temos de salvar a democracia proibindo
a manifestação das opiniões que achamos antidemocráticas.
Não vai
ser fácil para ninguém sair fora dessa charada.
Fonte: Blog Fatos – Veja Abril
oboletim
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