Percival
Puggina
Existem vários Brasis. Nestes dias de covid-19, um deles está em
confortável prisão domiciliar e acha o ministro Mandetta muito carismático.
Outro mora na Rua da Amargura, num apinhado barracão de zinco, “pendurado no
morro, pedindo socorro à cidade a seus pés”. E tem 600 merréis para viver até
sabe Deus quando, doutor. Outro habita o setor público e sabe tudo de direitos
e cláusulas pétreas arremessadas sobre o setor privado, produtor de todos os
bens e serviços, gerador de quase todos os empregos, exaurido pagador de todos
os custos e garantidor de todas as dívidas.
Em 1215, na Inglaterra, o rei João I, dito João Sem Terra, assinou com
os barões um documento que ficou conhecido como Magna Carta, limitando o poder
da realeza, especialmente seu poder de tributar. Surgia ali o óvulo fecundado,
o zigoto da responsabilidade fiscal, que no Brasil tem sido, historicamente,
fraudada, frustrada e vilipendiada em todos os níveis de governo. É neles,
nesses níveis, que os parlamentos aprovam, minuciosamente, um a um, todos os
privilégios que entornam o caldo da despesa pública. É também neles que
prospera a fabulosa máquina da política e da administração, que em grande parte
funciona para si mesma.
Quantos planos de recomposição de dívidas já testemunhei como cidadão e
pagador de impostos? Quantos serviram apenas para alargar os horizontes de
novos surtos de irresponsabilidade fiscal? Não se pode desprezar o peso desse
fator cultural na operação da política brasileira. De uns anos para cá,
inverteram-se os papéis cumpridos em oito séculos de história da Magna Carta.
Alternam-se e altercam-se. Ora os reis, ora os parlamentos são pródigos,
gastadores, perdulários. É deles o pé de cabra que arromba o erário em plena
luz do dia, sob as vistas da mídia que hoje só tem olhos para escanear e
sacanear o presidente Bolsonaro.
O PLP 149/2019, chamado Plano Mansueto, foi mais um desses planos de
saneamento de estados e municípios, que poderiam refazer suas dívidas,
condicionados a iniciativas de cunho liberal que reduzissem o peso da máquina
pública. Venda de estatais, contenção da despesa de pessoal no limite máximo de
51% da receita, etc. compunham a parte principal das condições exigidas pelo
PLP.
Aí, mais uma vez, o Congresso Nacional, precisamente a Câmara dos
Deputados, mete o pé de cabra legislativo e arromba o Tesouro Nacional,
elaborando um substitutivo que, de carona no “corona”, transforma o projeto num
imenso donativo federal. O projeto permite que governadores e prefeitos joguem,
incondicionalmente, suas dívidas históricas no colo da União, acomodam seu
fluxo de caixa como se não houvesse covid-19, nem recessão, enquanto os
deputados garantem o sorriso agradecido de seus prefeitos e governadores.
E a União? Ora, quem se importa com o Brasil? Mete o pé de cabra,
arromba o Tesouro e bota o estrago na conta do Bolsonaro, porque bons, mesmo,
são o Maia e o Alcolumbre. Não é mesmo, senhores da grande imprensa?
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