MACARENA
VIDAL LIY
Funcionários
de empresas de tecnologia protestam contra jornada das 9h às 21h, seis dias por
semana, defendida por empresas como o Alibaba
“Minha namorada me avisou: aquilo estava mudando meu caráter. Eu já
não ria com os amigos. Estava com pior humor, e sempre cansado”. Lenny Zhang,
de 24 anos, especialista em mídia digital, recorda com horror seu trabalho em
uma startup de
realidade virtual em Pequim.
“No início não era ruim, porque ainda não havia muito para fazer. Mas quando
começamos a ter clientes, isso mudou. Eu tinha de ficar sempre no escritório
trabalhando até tarde e, é claro, sem pagamento extra. Nos fins de semana o
chefe podia ligar para você, se houvesse alguma emergência, e você tinha de ir.
Se você ia embora cedo, mesmo que não tivesse nada para fazer, isso era mal
visto: achavam que você não estava trabalhando duro o suficiente”, relata.
O que Lenny Zhang (nome fictício) descreve é o que se conhece na China como a cultura do
“9.9-6”. Trabalhar todos os dias das nove da manhã às nove da noite, seis dias
por semana. Algo que em outros países pode soar familiar − as críticas às
condições duras de trabalho chegaram
até ao Vale do Silício. Mas na segunda potência mundial, o insólito protesto
dos trabalhadores de empresas de tecnologia surgido nas últimas semanas tem,
como quase tudo neste país, “características chinesas” especiais.
É insólito tanto por ter encontrado um meio para se expressar
publicamente − a plataforma para desenvolvedores de código GitHub − em um país
onde impera a censura, como pelo debate nacional que provocou. Um debate que se
acirrou depois de que magnatas como Jack Ma, fundador do gigante do comércio eletrônico Alibaba,
saíram em defesa desse regime trabalhista.
O descontentamento começou a ser sentido, segundo funcionários do
setor, no ano passado. Não que até então as longas jornadas de trabalho fossem
algo raro. Mas é que em 2018 a intensa competitividade das empresas chinesas de tecnologia teve de
passar a lidar com a desaceleração
generalizada da economia. As empresas começaram a contratar menos. Em
janeiro, a oferta de trabalho no setor tinha caído 15% em relação a 12 meses
antes, segundo a página de anúncios de emprego Zhaopin. Era preciso produzir
mais com menos e pelo mesmo salário, e cada um tinha acumular − ainda mais −
funções. Ou correria o risco de ir para o olho da rua, por demissão ou por
falência da empresa.
É claro que isso nunca foi dito explicitamente, ou em público. A
legislação chinesa prevê 40 horas semanais de trabalho. Se passar disso, o
funcionário deve receber uma compensação, e em nenhum caso o número de horas
extras pode ser superior a 36 por mês.
Um projeto
viral
Em março, um grupo de desenvolvedores anônimos criou no GitHub, uma
plataforma para compartilhar códigos de programação, uma página irônica,
996.ICU. O nome fazia referência a um ditado entre os trabalhadores do setor na
China: “Se você trabalhar 9-9-6, acabará na unidade de terapia intensiva [ICU,
na sigla em inglês]”.
A página inclui recomendações — “vá para casa sem nenhum peso na
consciência às seis” — e uma lista de mais de 150 empresas que adotam esse
regime de trabalho, incluindo gigantes como Alibaba, Huawei e
ByteDance, a empresa responsável pelo aplicativo de vídeos curtos TikTok.
A “licença anti-996”, que já foi adotada por mais de 90 projetos no
GitHub, obriga as empresas que queiram usar o software desses
projetos a respeitar as leis trabalhistas. O golpe de mestre da iniciativa é
que a censura, por muito que queira, não pode bloquear o GitHub: as
tecnológicas chinesas precisam dessa plataforma para compartilhar código.
A 996.ICU viralizou na hora. É o projeto mais compartilhado de toda a
plataforma. Claramente, muita gente se sentiu identificada. Mas isso poderia
não ter passado de um caso pontual sem maiores consequências se presidentes de
grandes não tivessem se pronunciado a respeito do assunto.
Jack Ma e Richard Liu, presidente do outro gigante logístico, JD.com,
resolveram falar na semana passada. E causaram um rebuliço. Em um comentário em
redes sociais, Ma, um dos homens mais ricos da China, opinou que os
trabalhadores deveriam considerar uma bênção poder trabalhar 9-9-6. Sem esse
regime − que possibilitou que sua empresa decolasse −, a economia do país
“muito provavelmente perderia ímpeto e vitalidade”, afirmou. “Se você entra no
Alibaba, tem de estar disposto a trabalhar 12 horas por dia. Se não, para que
vem? Não precisamos de quem trabalha oito horas confortavelmente”, acrescentou.
Liu, por sua vez, considerou que sua empresa se encheu de
“preguiçosos” pelos quais não pode sentir nenhuma simpatia. Suas opiniões
particularmente dolorosas porque a JD.com − que está em situação delicada e,
segundo o site especializado The Information, estuda a possibilidade de
demitir 12.000 pessoas, 8% de seu quadro de funcionários − advertia em uma
mensagem interna vazada que se livrará daqueles que não “lutarem duramente”,
independentemente de suas circunstâncias pessoais.
Comentários como esses provocaram ainda mais indignação. “Nas empresas
de software de
Xangai não se fala de outra coisa atualmente”, aponta um analista de dados. Na
opinião de vários empregados de companhias de tecnologia, se o debate calou tão
fundo é porque, pela primeira vez, as empresas defenderam em público,
abertamente, práticas que até agora ninguém dizia diretamente que era preciso
seguir. “A pressão estava aí, mas funcionava por insinuações, por
subentendidos”, diz um desses funcionários.
Os meios de comunicação oficiais, que refletem a opinião do Governo,
também entraram no debate, concentrado agora em se é adequado ou não o
equilíbrio entre trabalho e vida pessoal oferecido pelas empresas chinesas. O Diário
do Povo, jornal do Partido Comunista, afirmou em tom conciliador, em um
editorial publicado no domingo passado, que “os trabalhadores que criticam o
9-9-6 não podem ser acusados de ser preguiçosos ou pusilânimes. É preciso levar
em conta suas verdadeiras necessidades”.
“O problema é que o mercado chinês é realmente intenso e competitivo”,
opina Lenny. “Para a maioria das pessoas, nem passa pela cabeça a ideia de que
não é necessário trabalhar tantas horas. Incutiram em nós que para ter sucesso
e ganhar dinheiro é preciso trabalhar muito, muito duro.”
“O problema é que o mercado chinês é realmente intenso e competitivo”,
opina Lenny. “Para a maioria das pessoas, nem passa pela cabeça a ideia de que
não é necessário trabalhar tantas horas. Incutiram em nós que para ter sucesso
e ganhar dinheiro é preciso trabalhar muito, muito duro.”
Para o jovem desenvolvedor, a mobilização parece uma boa notícia,
embora ele se mostre cético quanto às possibilidades de êxito. “Isto deveria
ter sido feito há 10 ou 20 anos, quando o setor tecnológico estava começando.
Agora é tarde demais, tudo já está muito consolidado”, afirma. Ele
pretende ir para a Europa
para ampliar seus estudos daqui a dois ou três meses. “Se puder, vou ficar por
lá. Não quero voltar para o 9-9-6.”
Jornal
“El País”
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