(*)
Quem
acompanha política no Brasil está vendo a ponta de um iceberg de um debate que
está na verdade ocorrendo por todo o Ocidente, em sua versão brasileira.
Tentarei explicar o que está realmente em jogo e como isso se encaixa na
situação da democracia ocidental como um todo.
A
primeira coisa a fazer, como sempre recomendaram os sábios, de Confúcio a São
Tomás, é esclarecer os termos. Nada mais enganoso que reduzir, como se vem tentando
na mídia, a disputa a uma briga entre um “grupo militar” e outro “grupo
olavete”. Isto por várias razões. A primeira é que não se trata de grupos, na
verdade, mas de visões de mundo abraçadas por pessoas que podem ou não se
reunir em grupos. De um lado, sim, temos predominantemente militares.
Do outro
há pessoas como a ministra Damares Alves, que nem sei se já teve qualquer
contato com o professor Olavo de Carvalho, ou o deputado Marco Feliciano; se
eles tivessem um grupo, seria a base crente do governo. A segunda é que o que
estamos testemunhando aqui é apenas o reflexo nacional de uma disputa que está
em curso em todos os Estados herdeiros – diretos e indiretos – do Império
Romano.
Ao longo
dos séculos, formou-se – com a união do monoteísmo judaico enriquecido com a
noção teológica do Deus feito homem no Cristo Jesus (comumente representado por
Jerusalém), a lógica e filosofia gregas (comumente associadas a Atenas) e o
legalismo racionalista romano (dito Roma) – uma união a que se acostumou dar o
nome Ocidente, em função de sua situação geográfica e histórica de herdeira
direta do Império Romano do Ocidente. Outro nome, talvez mais justo, seria o de
Civilização Latina, na medida em que é estritamente a sua união com Roma e com
o Rito Latino católico que dá a medida certa de pertencimento de cada uma das
diversas nacionalidades e subculturas que vieram a gerar esta grande cultura, à
qual não pertence, por exemplo, a Rússia (igualmente cristã, quase tão
igualmente influenciada pela Grécia, mas à qual falta justamente o elemento
latino).
Esta
civilização foi varrida, quinhentos anos atrás, por um grande cisma,
originalmente iniciado, inadvertidamente, pelo monge alemão Martinho Lutero. Em
enorme medida ele veio a mandar para escanteio o que era o grande polo de união
de todas as sociedades ocidentais: o monoteísmo cristão. Nasceu a modernidade,
fruto de uma sociedade modelada pelo monoteísmo mas que, num impulso freudiano,
negava pai e mãe e queria-se surgida do nada. A sociedade moderna caracteriza-se
pela preponderância da ideia sobre a realidade, numa versão alucinada do
legalismo romano pagão.
Ao
contrário deste, a nova ordem que chegou apoiava-se ainda sobre o fantasma de
uma ordem social cristocêntrica, nos Dez Mandamentos e em todas as demais heranças
“éticas” da Cristandade, que a modernidade preferia ou bem fingir ter surgido
do nada ou estar ao alcance de uma suposta razão universal desprovida de
premissas. Em outras palavras, era evidente a todos que não se deveria matar,
roubar ou cometer adultério, mas as razões por que se deveria ter este
comportamento não eram examinadas, para que não se encontrasse, por trás do que
parecia “evidente”, a figura odiada da Igreja Católica.
Esta
sociedade, ao mesmo tempo em que negava sua origem e fingia-se “racional” e
“isenta”, continuava o avanço tecnológico e científico iniciado no Medievo e
tornado possível apenas pela visão cristã de um mundo ordenado por um Criador,
Cujas obras podiam e deviam ser examinadas como forma de conhecer mais sobre
seu Autor. Em meados do Século 19, três séculos e meio após a apostasia e cisma
luteranos e o surgimento da modernidade, chegou-se finalmente a um ponto de
ruptura civilizacional mais grave, a que chamamos Revolução industrial. A
técnica havia finalmente criado de fato uma situação objetivamente diferente
para a imensa maioria das pessoas, e a própria sociedade havia sido
tremendamente modificada em função dela.
Trens de
ferro movidos a vapor – as simpáticas “marias-fumaça” que encontramos como
passeio turístico em muitos lugares do interior – haviam tornado possível o
transporte em larga escala de pessoas e mercadorias por terra, e os navios a
vapor haviam eliminado a dependência das estações e dos ventos favoráveis que
tornavam imensamente lento o transporte marítimo anteriormente. A humilde
bicicleta, no nível do indivíduo, permitira ao mais humilde dos cidadãos
deslocar-se sem custo e com velocidade e distância muito maiores que as que
seria capaz de alcançar a pé. Sistemas de iluminação pública e domiciliar a gás
tornaram possível andar pelas ruas ou mesmo ficar em casa acordado à noite. As
tecelagens mecanizadas fizeram com que o preço das roupas despencasse
brutalmente. A teoria de Darwin cortara o laço de criatura e Criador, fazendo
do homem o fruto maior de mutações quase infinitas, que teriam elevado aos
píncaros da dominação sobre o planeta o descendente de símios, peixes e
protozoários. Definitivamente, era ineludível que chegara uma nova era.
Uma
pessoa de qualquer outro momento histórico anterior a essa época, se
magicamente transportada a qualquer outro momento e lugar igualmente anterior,
estranharia sem dúvida as roupas e a língua, mas seria capaz de encaixar-se sem
muito problema na sociedade. Afinal, todas as sociedades humanas até então
haviam cozinhado em braseiros ou fornos de barro ou pedra, tecido suas próprias
roupas, iluminado as noites com o fogo, deslocado-se a pé ou em veículos de
tração animal (quando não montados em cavalos, normalmente privilégio dos
poderosos).
Já uma
pessoa normal nascida daquele momento em diante não saberia mais se encaixar em
nenhum outro momento histórico, tamanha a diferença entre o seu modo de viver e
o de seus pais e avós. Ela jamais teria aprendido a acender uma lâmpada a óleo,
por ter sido acostumada desde criança a luz elétrica ou lampiões a gás. O mesmo
combustível a teria poupado de saber acender uma pilha de lenha ou carvão. A
tecelagem doméstica seria para ela um mistério. E por aí vai. Criara-se, era o
que se pensava, uma nova pessoa, uma nova sociedade, uma nova civilização: a
civilização moderna.
Neste
contexto, o espanto e o orgulho que se tinha em relação às novas descobertas
era tamanho que há uma história segundo a qual um responsável pelo escritório
de patentes do governo inglês – então hegemônico no mundo inteiro, com seu
“Império onde o sol nunca se põe” – teria proposto o fechamento do seu
escritório, porque, afinal, tudo já teria sido inventado. Foi então que na
França, do outro lado do canal da Mancha, surgiram duas pragas extremamente
dependentes desta visão de mundo, pragas estas que, por razões culturais que
não vale a pena explicar aqui, vieram a criar raízes e frutos apenas no Brasil.
São elas o espiritismo kardecista e o positivismo comtiano. Tanto Kardec quanto
Comte nasceram na virada do século 18 para o 19 tendo portanto testemunhado
enquanto cresciam e amadureciam a imensa transformação do modo de viver da
sociedade francesa.
Ambos,
do mesmo modo, tentaram dar algum sentido filosófico ao que viam, àquela
transformação gigantesca, àquela “evolução” acelerada. Kardec escolheu
atribuí-la a espíritos, que creu investigar “cientificamente” e com os quais
cria conversar. Comte, por sua vez – nisso criando a sociologia tal como a
conhecemos hoje – desenvolveu uma teoria segundo a qual a humanidade, na sua
evolução, passaria por três estágios. O primeiro deles, e mais primitivo, seria
o “teológico”, em que o homem atribuiria tudo a um deus. O segundo seria aquele
em que os valores sociais teria passado a prescindir de uma referência à
divindade – como passara a ocorrer na era moderna –, por ele batizado
“metafísico”. O terceiro, e final, seria o estágio “positivo”, de dominação
completa do homem sobre toda a Criação, ops, todo o Universo. Neste o homem,
finalmente livre de entraves e superstições, empregaria as ciências e o método
científico para não apenas dominar a matéria (como nas invenções que haviam
modificado tanto a vida das pessoas), mas para dominar a si mesmo e a
sociedade. Assim, a sociedade seria regida por leis científicas, descobertas
pela experimentação prática, e assim estaria livre de revoluções, motins,
greves, crimes, etc.
O
positivismo é a aplicação prática e teóricas destes princípios comtianos, e
apenas no Brasil veio a criar raízes fortes, mormente nas Forças Armadas. Há
ainda no Brasil – que eu saiba ao menos no Rio de Janeiro e em Porto Alegre –
curiosíssimas “igrejas positivistas”, iguais em quase tudo a igrejas católicas
antigas, mas com as imagens de santos substituídas por imagens de Darwin,
Newton, Galileu, etc. Mas é nas Forças Armadas, especialmente na visão de mundo
que é dada a seus oficiais em sua formação, que o positivismo permanece mais
forte. A própria bandeira da república brasileira – que, não podemos esquecer,
foi fruto de um golpe efetuado por estas mesmas Forças Armadas – traz uma
menção aberta ao dístico comtiano “O amor por princípio, a ordem por base, o
progresso por fim”. Só ficou de fora o amor, afinal a melhor parte.
O
positivismo, todavia, era um fruto de seu tempo, e neste mesmo tempo vivia toda
a sociedade ocidental. Desta mentalidade persistiu na Europa, ainda que não em
estado puro e bruto, como nas nossas Forças Armadas, uma noção permanente de
que a gestão do Estado poderia e deveria ser feita de uma maneira mais
“racional” que as revoluções e motins do populacho. As horrendas guerras que
arrasaram a Europa no século passado, bem como o trauma da descoberta do Mal em
estado quase puro no genocídio nazista e o da perda das colônias e da
preponderância mundial até então desempenhada pela Europa, levaram a um aumento
desta sensação. A administração pública, pensavam, deveria se tornar algo mais
racional e mais “limpo” e organizado que a política. Foi desta escola de pensamento
que vieram a surgir o mercado comum que acabou por gerar o colosso burocrático
que é hoje a União Europeia.
A este
modo de ver a administração pública, fruto do enlevo do final do século
retrasado com a aplicação prática do método científico e amadurecido nas
convulsões genocidas da Europa do século passado, chamamos tecnocracia. O
pensamento tecnocrático presume, como o nome indica, que o governo deva ser
“técnico”. O tecnocrático substitui o povo (demos, em grego) pela técnica
(technos, em grego): a democracia vê-se tecnocracia. Deve ser gerido por
técnicos: engenheiros sociais, por assim dizer. Para o tecnocrata, a ideologia
é, antes de tudo o mais, uma fonte de confusão e desordem, algo que impede a
“ordem e progresso” de tomar forma.
A política,
por sua vez, é tida por uma coisa suja, enquanto o populacho é uma massa
ignorante que deve ser alijada do mando. Tanto é que a própria União Europeia
aparentemente deixou de fazer consultas públicas nos países antes de lançar
novas regulamentações, porque estas consultas, de modo geral, resultavam em
evidenciar a maciça repulsa popular às medidas “técnicas e racionais” que lhes
eram propostas. Os fazendeiros franceses, por exemplo, nunca viram nada
“técnico e racional” nas obrigações europeias de modificar os métodos
artesanais de produção de queijos maravilhosos herdados de seus pais.
Aqui no
Brasil não tivemos União Europeia; tivemos, por outro lado, cerca de duas
décadas de tecnocracia militar positivista. Em grandes linhas, mesmo por já ter
tratado deste assunto em vários outros textos, na prática isso significou que
os governos militares tentaram impedir que a política atrapalhasse o que viam
como uma administração “técnica”. Para isso, cortaram as pernas de todos os
políticos de direita, percebidos por eles como arrivistas meio malucos que se
fossem soltos seriam como macacos numa loja de louças. Afinal, em um governo
teoricamente direitista, faria sentido uma transição ao poder civil efetuada em
prol de um político de direita, o que fazia dos políticos desta linha
ideológica um perigo muito maior que os de esquerda.
Assim,
eles foram substituídos na prática política por políticos fisiológicos, ladrões
e bajuladores que serviam aos governos militares por desejo de poder e de
acesso ao cofre da Viúva. Esta corja não-ideológica acabou dominando a política
brasileira, e até hoje permanece como a maior força no Congresso Nacional, sob
o apelido de “Centrão”. Não se trata de “centro” no sentido clássico de direita
e esquerda, mas de uma massa amorfa de representantes nada ideológicos de
interesses pessoais ou ao menos particulares, que só age se comprada por
alguém.
À
ideologia de esquerda, por outro lado, sempre dentro da mentalidade positivista
dos militares brasileiros, foi dada carta branca no ambiente acadêmico (a tese
do infame Gen. Golbery – chamado por Gláuber Rocha de “gênio da raça” – segundo
a qual a política era uma panela de pressão que precisava de uma válvula
inofensiva, que absurdamente seria para ele a Academia, encarregada da formação
intelectual das futuras gerações. Menos “inofensivo” é difícil, se não
impossível, de achar…). A esquerda política igualmente não foi incomodada, por
não ser percebida como concorrente real ao poder político.
Apenas
quem se meteu a fazer terrorismo ou guerrilha foi incomodado pelos militares.
Aliás, incomodado, não: chacinado. Este era o único “perigo” que os militares
percebiam, por terem sido treinados justamente no ofício das armas. Enquanto os
filhos dos militares, das elites e dos demais brasileiros eram doutrinados por
comunistas nas escolas em que estudavam (com a louvável exceção, curiosamente,
das escolas militares), os generais governantes preocupavam-se em matar muito
bem matado meia-dúzia de jornalistas desempregados brincando de guerrilha no Araguaia,
como se num país de dimensões continentais, como o nosso, fosse possível a
tomada do poder por estes meios.
O
resultado foi o que seria previsível para qualquer um que vivesse no mundo real
e não tivesse sido criado na estufa artificialíssima dos quartéis, com seus
meios-fios pintados de branco e suas casinhas iguais para cada oficial da mesma
patente: as universidades tornaram-se celeiros de esquerdistas, que passaram a
dominar o ensino todo (pois é das universidades que vêm os professores das crianças
e adolescentes), até o ponto em que toda uma geração, educada por esquerdistas
sob o olhar desinteressado dos militares ocupadíssimos em cuidar “técnica e
cientificamente” da administração pública, levantou-se contra os governos
militares, exigindo eleições diretas para Presidente.
Nisto,
claro, havia também o dedo dos políticos de esquerda e, mais ainda, dos
ativistas de extrema-esquerda que haviam sido expulsos do País por envolvimento
em ações armadas de desestabilização do governo, mas que já haviam voltado
graças à Lei de Anistia. Quando aconteceu a transição de poder dos militares
aos civis, por a direita ter sido alijada do campo político, sobraram apenas os
esquerdistas, e a estes foi dado o poder. Uma Constituinte composta quase que
unicamente por eles nos deu a aberração jurídica que hoje nos desgoverna.
Nos anos
seguintes, aqui no Brasil, os militares fizeram a gentileza de recolher-se a
suas casernas e dedicar-se a repintar seus meios-fios, que talvez possam ter
ficado um pouco encardidos enquanto brincavam de “administração científica”.
Enquanto isso a esquerda, cada vez mais tresloucada e poderosa, uniu-se numa
organização continental, em grande medida bancada pelo Brasil, o Foro de São
Paulo. Do socialista fabiano FHC passamos à extrema-esquerda lulopetista, de
que acabamos nos livrando (em termos, na medida em que a ocupação do Estado foi
muito maior que a mera ocupação da Presidência, e a da Academia continua
intocada) apenas com o impeachment de Dilma por incompetência absoluta.
Resumindo,
para traçarmos um paralelo entre o Brasil e a Europa, nós tivemos, de uma certa
forma, uma antevisão do que esperava os europeus hoje submetidos à tecnocracia
da União Europeia, que por sua vez levou a eleições de tecnocratas teoricamente
apolíticos, ou quase, para os governos da maior parte dos países europeus, hoje
reduzidos a províncias da UE. Nosso país tem, inclusive, área semelhante à da
União Europeia, o que aumenta a possibilidade de comparação, ainda que não
tenhamos uma história de separação ou sequer autonomia de unidades
administrativas menores que nossa União.
A
diferença é que a Europa, após a Segunda Guerra, passou por um período de
reconstrução e enriquecimento, seguido de um período de governos relativamente
ideológicos (mais pela sua obrigação de se colocar contra o inimigo soviético,
sempre às portas com milhares de tanques e homens), e depois mergulhou
totalmente na tecnocracia transnacional. Já o Brasil passou quase diretamente
da ideologia (primeiro semi-capitalista, com JK, seguida do breve interlúdio
esquerdista de Jânio e Jango) à tecnocracia desenvolvimentista, substituída no
final do século passado pela ideologia esquerdista cada vez mais extremista.
Ou seja,
entramos e saímos antes da Europa da etapa tecnocrática, e amargamos um retorno
a coisas que já haviam sido esquecidas por lá após o fim da tecnocracia. Isto,
aliás, como já escrevi, aconteceu por culpa única dos tecnocratas positivistas
das Forças Armadas. Foram os militares que entregaram o Brasil à
extrema-esquerda ao eliminar a direita da política pela imbecilíssima razão de
não acharem que política é coisa séria.
Diga-se
de passagem, foi o fato de a Europa estar nas mãos de tecnocratas e da política
não ser levada muito a sério por aquelas bandas que possibilitou a Lula
fazer-se de Nélson Mandela ou Gandhi por lá. A ideia de um governo raivosamente
esquerdista, disposto a tudo para implantar uma ditadura, como foi o caso dos
desgovernos petistas, simplesmente não registrava na mente dos europeus, que
haviam passado a ver a política como uma espécie de teatro de variedades em
última instância inócuo.
A
tecnocracia, contudo, justamente por desprezar a política (e a democracia, e a
opinião popular…) acaba distanciando-se cada vez mais do que a própria
população espera de um governo. É o que se passou aqui, e é o que finalmente
aconteceu na Europa, já neste século. O governo na Europa – tanto o
transnacional quanto os nacionais – passou a ser progressivamente percebido
como um intruso cujos interesses em nada, ou quase nada, coincidem com os dos
cidadãos. A gota d’água no caso da Europa veio a ser o problema das imigrações
em massa. Elas são necessárias e bem-vindas do ponto de vista tecnocrático.
Afinal, para o tecnocrata as pessoas são intercambiáveis; assim, se os europeus
“de raiz” não têm filhos suficientes para pagar as pensões dos aposentados, a
coisa evidente a fazer é importar rapazes para tomar o lugar das inexistentes
novas gerações.
Como os
rapazes disponíveis mais próximos são os árabes e magrebinos, que venham todos.
Já para o cidadão comum, é assustador – como foi maravilhoso o surgimento das
novas tecnologias no século 19 – que subitamente ele seja o único falante
nativo da língua de seus ancestrais num ônibus ou num edifício de apartamentos
na cidade em que sua família sempre viveu. Que o cardápio das merendas das
escolas seja modificado, eliminando os pratos típicos da região, porque a
maioria ou mesmo a totalidade dos alunos é muçulmana e não come aquilo.
Como
reação, surgiu o mais importante fenômeno político já ocorrido neste século: o
populismo. “Populismo” vem de populus, termo latino equivalente ao grego demos
e significando “povo”. Enquanto a democracia é o governo do povo, o populismo é
um “povismo”. Poderíamos dizer, de uma certa maneira, que o populismo é a ânsia
por democracia, é a protodemocracia. A democracia em semente ou broto. O
populismo é um grito contra o que o povo considera os desmandos de uma elite
governante. No caso europeu, esta elite é a que faz parte da burocracia
tecnocrática da União Europeia e dos governos locais, igualmente tecnocráticos
e subordinados em tudo aos ditames da organização maior.
Foi na
França que o primeiro sinal do populismo europeu surgiu – como aliás
frequentemente foi o caso ao longo da História: para metafísicas diferentes,
olhemos para os alemães; para confusões governamentais, para os franceses. Um
senhor francês um tanto ou quanto amalucado, firmemente preso às ideias da
direita francesa do Entre-Guerras e do governo de Vichy (parte da França não
invadida pelos alemães, mas por eles tutelada, durante a Segunda Guerra),
começou a vociferar contra a imigração, em termos abertamente racistas.
Este
senhor chamava-se Jean-Marie Le Pen, e a organização que fundou era chamada
Fronte Nacional. Inicialmente, ele conseguiu atrair a si, além de outros
senhores reacionários como ele, uma pequena massa de comerciantes modestos,
motoristas de táxi, suboficiais… Em suma, pessoas com uma visão de mundo mais
tática que estratégica, que simplesmente queriam uma “França para os franceses”
(definidos em termos basicamente étnicos).
Com o
passar dos anos, todavia, seu discurso alcançou um teto; o partido passou a
dominar as eleições municipais do Sul – área com mais imigrantes – mas não
conseguia aumentar sua representação parlamentar nem avançar para novos
territórios. Sua filha, então, Marine Le Pen, assumiu a frente do partido e
praticamente escondeu o velhinho, que aliás ela expulsou formalmente do partido
que fundou, com medo de suas declarações demasiadamente polêmicas. Hoje ela e
sua sobrinha Marion são as figuras-chave da Reunião Nacional (nome novo do
partido), que por muito pouco não levou a Presidência da França nas últimas
eleições, tendo subido muito além do que havia conseguido durante os tempos de
Jean-Marie.
Enquanto
isto se passava, novos partidos do mesmo gênero, em geral com uma plataforma em
muito semelhante – voltada para o problema da imigração e do que eles costumam
chamar de “substituição étnica” dos europeus “de raiz” por imigrantes negros ou
árabes – foram surgindo por toda a Europa: o AfD na Alemanha, por exemplo, é em
muitos aspectos quase um clone do Fronte Nacional de Jean-Marie Le Pen. Estes
partidos têm algumas características extremamente interessantes:
Em
primeiríssimo lugar, eles são tocados por demandas populares, não por
ideologias. A imprensa – lá como cá predominantemente ideológica e de esquerda
– tende a apelidá-los de “extrema-direita” e mesmo, como aconteceu aqui com
Bolsonaro (calma que a gente chega lá; você já chegou na metade deste textão,
parabéns), a traçar absurdas comparações com o fascismo. Ora, nada mais
distante da realidade. Uma ideologia é basicamente um plano, uma utopia a ser
atingida pela “solução” de um problema que os ideólogos creem ser a origem de
todos os outros (a luta de classes para o marxista, a interferência estatal
para o capitalista, os traços da presença humana para o ambientalista…).
Os
populistas não têm ideologia. Eles não têm uma ideia de como o país deveria
ficar; só são contrários ao que está acontecendo. O populismo é um fenômeno
fundamentalmente reacionário. O populista europeu, por exemplo, vê na imigração
um problema presente e real, e quer que “algo” seja feito. O quê, exatamente,
ele nem mesmo saberia dizer. A expulsão dos imigrados? A mera cessação da
imigração? Ele não sabe. Mas sabe que é desconfortável estar em seu próprio
país e perceber-se o tempo inteiro cercado de estrangeiros.
Aqui no
Brasil, o populismo bolsonarista chegou ao poder apoiado em reações dirigidas
contra as políticas divisivas da extrema-esquerda, que batem de frente com a
cultura pátria e sua prioridade à tolerância, sua resistência ao conflito
aberto, sua preferência pela paz. Para o brasileiro médio, o surgimento súbito
de acusações de “ódio” e a forte divisão incentivada pelos governos
esquerdistas das últimas décadas fazem soar um forte alarme. O travestismo, a
homossexualidade, o uso recreativo de drogas e demais comportamentos
minoritários sempre foram tolerados, sendo no máximo objeto de piadas. Mas eis
que subitamente não basta a tolerância: é preciso apoiar, bater palmas, bradar
aos sete ventos que uma dupla homossexual que conviva na mesma casa é
exatamente o mesmo que um casal casado, com filhos; quem não o fizer, dizem os
esquerdistas, estaria demonstrando “ódio” aos homossexuais.
Ora, o
brasileiro orgulha-se de não odiar ninguém, de “dar-se bem com todo mundo”. Ele
foge de briga e de “confusão”. Mas as acusações se multiplicavam e se sobrepunham,
e eis que subitamente ele se via acusado de homofobia, transfobia, racismo,
gordofobia e o que mais pudesse sair da cabeça de um neomarxista pós-moderno
para fazer as vezes da antiga luta de classes. Ao mesmo tempo, devido à farra
petista com o dinheiro público, a economia só fez piorar. Daí, e bem daí e só
daí, veio o sucesso de Bolsonaro.
Escrevi
aqui mesmo, desde o tempo do delicioso jornal impresso que nos manchava os
dedos, primeiro que Bolsonaro encontrara um nicho ecológico no Congresso colocando-se
como o antipetista por antonomásia. Ao misturar declarações inflamatórias com
outras ainda mais explosivas, ele podia ir muito além dos limites do
politicamente correto sem medo de represálias. Ele podia falar o que quisesse,
pois era percebido pela maioria política esquerdista como meio louco. O caso,
porém, é que o que ele falava ressoava e amplificava a voz do brasileiro médio,
alijada da mídia e do governo. A esquerda não percebia isso, mas ele percebia.
E foi espertamente surfando esta onda de insatisfação com o esquerdismo e suas
políticas divisivas que ele pôde se colocar em situação favorável para
lançar-se candidato. O problema de fazer a sua voz chegar a todos foi
providencialmente resolvido pela tentativa de assassinato (aliás jamais resolvida;
quem foi o mandante?) que forçou os meios de comunicação de massa a dar-lhe
espaço. E assim ele chegou ao poder, ao contrário de seus confrades populistas
europeus.
Nos EUA,
o fenômeno Trump teve, mutatis mutandis, um percurso algo semelhante ao de
Bolsonaro: tornou-se conhecido do público em um reality show em que demitia
incompetentes, e ganhou a chapa republicana movido pela fama de self-made man
que não temia falar o que fosse politicamente incorreto. Lá como aqui, foi o
fato de o candidato negar-se a baixar as orelhas para o discurso politicamente
correto que o catapultou à liderança. Lá como aqui, foi eleito alguém que para
a grande mídia era na melhor das hipóteses um bobo da corte, e na pior um
fascista (a mesma acusação absurda feita na Europa aos populistas de lá, mais
absurda ainda neste caso por Trump ser evidentemente um capitalista de quatro
costados).
O
politicamente correto, o controle orwelliano da linguagem pela elite, é uma das
marcas da pós-modernidade, que veio fraturar o pensamento ideológico e
enfatizar o relativismo individualista. Para o pós-moderno, a palavra cria
realidade, como evangelizam os coaches que tentam convencer suas vítimas, ops,
clientes, que estariam usando energias quânticas ou besteira do gênero quando
ficam repetindo para si mesmos que são belos e ricos.
Assim
como o feioso que se diz lindo no espelho e assim se tornaria lindo, o homem de
vestidinho de chita, ao ser chamado de mulher, tornar-se-ia membro do belo
sexo. E é aí que vem o politicamente correto, como um coach nacional ou
transnacional, a exigir que o chamemos no feminino, sob pena de sermos acusados
de odiar o pobre rapaz. O populismo, então, em toda parte, é em grande medida
uma reação contra o politicamente correto. Ele é simplesmente a voz da maioria
silenciosa, daqueles que a grande mídia recusou-se sempre a ver, dos que
Hillary Clinton chamou de “deploráveis”.
Na
Europa, esta revolta mostrou-se uma ameaça gigantesca ao status quo, na medida
em que o populismo europeu reage contra algumas das bases do pensamento
tecnocrático europeu: ele quer a descentralização da legislação; ele demanda um
fim à ditadura da União Europeia (na Inglaterra o populista Nigel Farage
conseguiu que fosse aprovada a saída da Inglaterra da União Europeia, mas pelo
andar da carruagem parece que, mais uma vez, a voz do povo pode até ser a voz
de Deus, mas certamente não é percebida pelas elites como tendo valor algum);
ele quer que os habitantes tradicionais de cada país sejam os dominantes no
território, se não os únicos habitantes; ele é contra o casamento gay, o aborto
e a adoção por duplas do mesmo sexo; ele quer que as crianças aprendam
patriotismo na escola; ele quer poder andar de carro sem restrições ecológicas;
ele quer, em suma, o contrário do que lhe é imposto pela burocracia da UE em
muita coisa que é importante para os tecnocratas.
Estes,
por sua vez, são incapazes de compreender o fenômeno populista, pelo simples
fato de que este nem é ideológico – e a tecnocracia sempre considera seu
inimigo maior a ideologia, que percebe como a fonte da “desordem que impede a
gestão técnica da administração pública” – nem tem interesses outros que possam
ser saciados pelo Estado, de modo a fazer dele um aliado de ocasião, como os
militares fizeram no Brasil com os políticos corruptos que hoje compõem o
“Centrão”.
O
populismo sequer deseja o poder pelo poder, como sempre foi comum. Os
populistas, quaisquer populistas, aqui como ali ou acolá, deseja simplesmente que
o cidadão comum possa viver e deixar viver, sem que venha alguém – a
administração da União Europeia, o PT… – mandar que cale a boca, que mude sua
maneira ancestral de fazer queijo, que coma isso e deixe de comer aquilo, que
chame homens de saiote de menininhas, o que for. O populista quer basicamente
ser deixado em paz.
Daí, por
exemplo, ter Farage, o populista inglês, deixado a política após a aprovação em
plebiscito da saída da Inglaterra da UE: ele não queria o poder pelo poder, ele
não tinha nem tem uma ideologia a impor para que seu país se torne um paraíso,
ele não tinha interesses particulares outros que não o de tirar da Inglaterra a
cangalha europeia. Assim que conseguiu ganhar o plebiscito saiu de cena e
voltou ao trabalho que tinha antes de entrar para a política.
Agora,
todavia, com a aparente vitória dos tecnocratas em impedir que se consume a
saída, ele resolveu voltar a se candidatar, desta feita ao Parlamento Europeu.
E provavelmente há de sair de cena novamente se conseguir uma vitória final.
Assim são os populistas; e para tanto os tecnocratas quanto os ideólogos, eles
são completamente incompreensíveis, e por isso não apenas vistos como
perigosos, como confundidos com “perigos” com que não têm nada a ver, como o
fascismo.
E é
agora que chegamos à situação no Brasil. Nossos militares estavam fora de cena,
tendo-se dedicado a pintar seus meios-fios nas últimas décadas, enquanto os
desgovernos lulopetistas aproximavam cada vez mais o Brasil do caos completo
(processo mais avançado no Rio de Janeiro e no Ceará), forçavam a aprovação
entusiástica do travestismo pela população brasileira, a que acusavam em massa
de racismo e outras absurdidades. Note-se que os militares simplesmente não dão
importância alguma a este tipo de coisa, por uma razão simples: são
positivistas. Estaríamos, pensam eles, na “era positiva”, em que tudo é
técnica, tudo é ciência. A administração pública não teria segredos, desde que,
claro, seja afastada a “desordem” (que é a política) do campo. Foi exatamente
por pensarem assim que eles entregaram o País à extrema-esquerda ao se retirar
de cena. É exatamente por pensarem assim que não apenas não sabem lidar com a
guerra cultural e com a luta pela preponderância de narrativas – por exemplo, a
esquerda transformou o tempo dos governos militares em algo parecido com uma
Alemanha de Hitler ou um Camboja sob Pol Pot, só que piorado, na cabeça dos
jovens que não viveram aquele tempo. Para os militares, tanto fez como tanto
faz. Isso lhes é indiferente. Nos quartéis, eles continuaram a comemorar o 31
de Março, enquanto do lado de fora as coisas mais absurdas eram ditas em rede
nacional de TV. Quando as ofensas pessoais atingiam alguém e destruíam sua
reputação, como com o Cel. Ustra, eles tampouco se mexiam. O livro em que Ustra
se defende e comprova a falsidade de muito do que foi dito sobre ele foi
lançado por ele mesmo, não pela Biblioteca do Exército.
Pois
Bolsonaro foi eleito como populista, pelo voto populista, por razões
populistas. Em outras palavras, ele foi eleito basicamente para desmontar as
armas predominantemente culturais com que os governos anteriores atacavam a
cultura tradicional brasileira, e para fazer com que o Brasil volte a ter uma
economia em bom estado. Ele decididamente não foi eleito para levar o Brasil de
volta à tecnocracia, sim para retirá-lo da loucura bolivariana dos desgovernos
lulopetistas e reverter o processo de desmanche da sociedade por eles encetado.
Mas os militares não entendem. Mais ainda: eles acreditam firmemente, como
escreveu um coronel em texto publicado pelo Clube Militar, que teriam sido “os
valores militares que ajudaram a eleger o atual governo”. Não entenderam
absolutamente nada. Ouviram o galo cantar e não só não sabem onde como acharam
que se tratava do miado dum gato.
Outro
exemplo claríssimo disso ocorreu recentemente, quando o Banco do Brasil
produziu um comercial que evidentemente valorizava a “diversidade” no sentido
pregado pela esquerda neomarxista: pessoas que seriam consideradas “esquisitas”
na imensa maior parte do país, em praticamente todo ambiente. Pelo modo de agir
tradicional da cultura brasileira, essas pessoas seriam toleradas, e as demais
fingiriam, por educação, que elas não são assim esquisitonas. Mas para o
neomarxista, a esquisitice (sexual, de vestuário, de corte de cabelo, etc.)
deve ser celebrada, e quem não concordar com a celebração da anormalidade
estaria demonstrando “ódio”, racismo e sei-lá-o-quê-fobia.
O
comercial lacrador, assim, esfregava na cara dos espectadores normais a
esquisitice, como que os desafiando a aplaudi-la, ou… Pois bem; o presidente,
assim que assistiu o tal comercial, o vetou. Ora, bolas, foi exatamente para
isso que foi eleito. Contudo, logo depois, o Gen. Santos Cruz veio a público
proclamar que acabara de retirar do presidente este poder. Há alguma leizinha
que lhe permite fazer isso, não duvido. O que o general fez certamente foi
legal, mas politicamente falando foi péssimo. Ele na prática agiu em benefício
da extrema-esquerda e contra os desejos dos eleitores de Bolsonaro.
Como,
todavia, para os militares o político e a guerra de narrativas, bem como a
guerra cultural, são apenas ruído de fundo ao qual por princípio não se deve
prestar atenção para que não se distraia da “administração científica”
positivista, o general, por mais cara de mau que faça, nem se deu conta de
estar desautorizando o presidente e atrapalhando, e muito, o seu trabalho real.
Bolsonaro não foi eleito para fazer “administração científica”. Ele foi eleito
para acabar com a “lacração”, para fazer com que o governo não seja a fonte de
ataques à família, à tradição e à propriedade.
O mesmo
aconteceu várias vezes, em vários lugares. Ações do presidente foram
desautorizadas em público por seus subordinados. O general vice-presidente
trabalhou com tanto afinco contra o presidente, que este teve que despachar de
um leito de hospital para impedir seu vice de fazer besteiras maiores ainda.
Aparentemente o Gen. Mourão considera sua missão evitar que a “bagunça” do
populismo bolsonarista contamine a “administração científica” positivista que
ele considera naturalmente certa, e por isso se compraz em apresentar-se à
imprensa esquerdista como alguém mais “sensato” que Bolsonaro.
Em
recentíssimo tuíte, o Gen. Villas Boas deixou perfeitamente clara a visão de
mundo militar acerca da situação atual. Declarou ele que “substitui[r] uma
ideologia pela outra não contribui para a elaboração de uma base de pensamento
que promova soluções concretas para os problemas brasileiros”. Com isso, o
general indica que percebe tanto o neomarxismo ideológico petista quanto o
populismo não-ideológico bolsonariano (cuja criação teórica ele parece
atribuir, erroneamente, ao Prof. Olavo de Carvalho, a quem dirigiu a investida)
como “ideologias”, o que, no pensamento positivista, significa coisa antiga,
ultrapassada, resquícios da “era metafísica” que já deveria ter sido
substituída pela era positiva da administração científica. Ruído, bagunça.
Obstáculo no caminho da “ordem e progresso”.
Ora, o
populismo não é uma ideologia, como vimos acima. Nem é – como ainda julgam os
militares, com sua mentalidade presa às concepções absurdas do final do século
retrasado – a política uma ciência exata. Na verdade, a administração inexiste
separada da política, na medida em que o que se administra não é um quartel,
com uma quantidade certa de pessoas que comem num refeitório em comum e
subordinam completamente seus objetivos aos da instituição. A política é a arte
do possível, é a arte – não a técnica, jamais a técnica – de dar meios à
população para que ela se desenvolva ao máximo. A população, por sua vez, tem
tantos objetivos quantas são as pessoas, ou ainda mais. É simplesmente
impossível ouvir a um por um; é por isso que se tem eleições, é por isso que é
premente a necessidade de lutar pelo controle das narrativas.
Cada
eleitor é convencido pessoalmente de que aquele candidato, e não este, é o que
melhor representa os seus interesses. E dentre os interesses que a população
brasileira manifestou certamente não está uma volta à mesma tecnocracia
estúpida que levou ao domínio da extrema-esquerda. Muito pelo contrário, aliás.
Durante as duas décadas de controle absoluto da narrativa pela esquerda, em que
era proibido falar dos governos militares senão como “anos de chumbo” ou
“horrenda ditadura”, os militares estavam quietos, mantendo seus meios-fios bem
caiados.
Olavo de
Carvalho era a única voz em toda a mídia a anunciar que o comunismo estava vivo
e continuava perigoso. O processo de dominação da cultura formal do país pela
extrema-esquerda estava quase pronto. Era virtualmente impossível manifestar-se
contra os absurdos esquerdistas. O próprio prof. Olavo perdeu, uma a uma, suas
colunas na grande imprensa. Mas neste momento surgiram as redes sociais. E
nelas cada brasileiro pôde se manifestar livremente, pela primeira vez. E aos
poucos, olhando em volta ressabiados, cada um percebeu que a sensação de
opressão, que o desagrado com as exigências delirantes da ideologia de gênero e
outras fantasias esquerdistas, era algo quase geral.
Foi
então que pôde surgir e crescer o populismo brasileiro encarnado em Bolsonaro,
assim como ocorreu com Trump (cuja vitória foi uma absoluta surpresa para a
grande mídia internacional e americana). Bolsonaro no Congresso era um ninguém,
um bobo da corte ou palhaço aos olhos de seus confrades, divididos entre
ideólogos de extrema-esquerda e fisiologistas sem ideologia. Mas nas redes
sociais ele rapidamente tornou-se o “Mito”, por dizer de sua tribuna o que a
maioria silenciosa pensava. A luta pelo controle da narrativa, que parecia
ganha pela extrema-esquerda, deu uma virada fenomenal aos 47 minutos do segundo
tempo, com a ascensão do Bolsomito, reacionário até a medula, avesso a teoria
de gênero, a bandidolatria, a tudo o que a extrema-esquerda tentava enfiar a
força goela abaixo do brasileiro.
Sua
eleição foi ganha nas redes sociais. Seus eleitores são brasileiros de todo
tipo. Alguns poucos deles – dentre os quais os seus filhos – são em algum grau
ligados a Olavo de Carvalho. Outros vêm de uma base protestante, como
Feliciano. Outros são ligados ao movimento pró-vida, como Damares ou Ângela
Gandra Martins. Outros vêm das polícias, como o Sargento Fahur. Outros, ainda,
vêm da direita católica, como a Chris Tonietto. Mas a imensa maioria, a
imensíssima maioria, não é ligada a ninguém. É gente que foi para as ruas em
2013 mas voltou para casa quando a extrema-esquerda começou a vandalizar os
protestos. É gente que foi de novo para a rua em 2016, que botou uma camisa
amarela e saiu por aí para pedir a remoção de Dilma (e com ela do PT) do poder.
E, principalmente, é gente que transmitiu por WhatsApp ou Facebook sua
insatisfação generalizada e que reagiu contra os absurdos do lulopetismo. Em
suma, é uma massa democrática levantada pelo populismo reacionário encarnado no
nosso atual presidente e interconectada pelas redes sociais.
Esta
massa entende, a seu modo, a importância do controle da narrativa, coisa que
escapa completamente aos militares. Essa massa é reacionária, e quer que acabem
os abusos e que o governo deixe de ser parte do movimento internacional muito
bem financiado que visa desestabilizar a unidade familiar, legalizar as drogas
e proibir o tabaco, equiparar as relações homossexuais ao matrimônio, e por aí
vai.
E, sendo
uma massa populista, ela não tem ideologia. É isso que os militares, na sua
visão trancada em 1850, não conseguem compreender. Não havendo ideologia,
evidentemente não há ideólogo; é por isto que o papel do prof. Olavo escapa
completamente à compreensão dos militares. Ele é um formador de opinião, um
modelador de narrativas, alguém que começou a surgir politicamente como a voz
que clamava no deserto contra o comunismo, voz esta que levou muito tempo para
ser ouvida. É certamente um pensador e um conhecedor profundo da ciência política.
Mas não é um ideólogo, nem de Bolsonaro nem de ninguém. Por ter nas redes
sociais um alcance provavelmente semelhante ao da própria Globo, em seus
melhores dias, sua voz soa mais alto que as outras vozes que apoiam Bolsonaro.
Mas o que ele diz é dele, não de um movimento organizado, nem é – mais uma vez
– um projeto de conformação política da sociedade rumo a uma utopia, como são
as ideologias. Não faz mais sentido chamá-lo de ideólogo do governo que dizer o
mesmo de Chris Tonietto ou mesmo Alexandre Frota. O governo é populista, logo
não-ideológico por definição. Agora vá tentar explicar isto a um positivista!
O
resultado desta complicadíssima ópera é que a crise atual pode ser
perfeitamente compreendida se percebermos que os militares – que na prática expulsaram
Bolsonaro de suas casernas quando era ainda capitão e não têm por ele respeito
algum – estão tentando dominar um presidente que consideram “confuso” por
estar, em sua visão limitada, ligado a “ideologias”, para que possam instaurar
no Brasil outra ditadura positivista, outra “administração científica”, em que
“detalhes” como o controle da narrativa (o politicamente correto, a ideologia
de gênero, etc.) são um ruído irrelevante. Em outras palavras, estão
literalmente trabalhando contra o presidente, que os chamou por crer que o
apoiariam e agora se vê traído pelos antigos companheiros, que acham em sua
cegueira política que ele foi eleito como representante das Forças Armadas.
Tal
golpe branco verde-oliva seria a pior coisa que poderia acontecer com o Brasil
neste momento. A guerra é principalmente cultural. O que importa acima de tudo
ao presidente neste momento é ganhar a guerra pelo controle da narrativa,
fazendo coisas como a que o Gen. Santos Cruz impediu-o de continuar a fazer.
Trata-se de um projeto reacionário, que foi escolhido pela maioria esmagadora
da população: desmontar a máquina de destruição da sociedade montada pela
extrema-esquerda. Retomar um sentido de normalidade no Brasil. Fazer com que a
esquisitice e a bizarria voltem a seu cantinho, em que eram e continuarão
sempre sendo toleradas, pois tal é a nossa cultura, mas sem forçar a população
conservadora a bater palmas para aberrações. É uma guerra cultural, que os
militares não só não sabem como fazer (e por isso entregaram o Brasil à
extrema-esquerda), mas sequer conseguem entender que existe, devido às
limitações intelectuais no pensamento estratégico e social causadas pelo seu
positivismo.
Marx
disse que a História se repete como farsa. E, realmente, o que temos agora no
Planalto é uma versão farsesca do Cerco de Canudos, com o presidente no papel
de Antônio Conselheiro.
Se ele
conseguir retomar o controle; se ele conseguir rebaixar os militares a seu
devido lugar e fazê-los perceber que foi ele, não o projeto tecnocrático idiota
deles, que foi eleito; se ele conseguir, em suma, fazer o que foi eleito para
fazer, sem que o apoio militar se transforme num entrave e sem que a atual
tentativa de golpe branco verde-oliva tenha êxito; aí o Brasil terá jeito. Aí
teremos uma verdadeira democracia, em que o poder pertence ao povo e não apenas
em seu nome, mas também visando os seus interesses reais, é exercido. Será
possível que isto aconteça?".
Carlos Ramalhete é Professor de
Filosofia. Moderador da lista Tradição Católica e Contra Revolução.
Gazeta do Povo
(*)
Comentário do editor do blog-MBF: boa
análise histórica. Quanto à considerar o kardecismo uma praga, só vim entender
a posição do autor ao ler, no final, suas credenciais: “Moderador da lista
Tradição Católica”. Esqueceu da Inquisição. Pena.
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