terça-feira, 14 de maio de 2019

Positivismo ou Populismo – ou um golpe branco verde-oliva

Carlos Ramalhete
(*)

Quem acompanha política no Brasil está vendo a ponta de um iceberg de um debate que está na verdade ocorrendo por todo o Ocidente, em sua versão brasileira. Tentarei explicar o que está realmente em jogo e como isso se encaixa na situação da democracia ocidental como um todo.

A primeira coisa a fazer, como sempre recomendaram os sábios, de Confúcio a São Tomás, é esclarecer os termos. Nada mais enganoso que reduzir, como se vem tentando na mídia, a disputa a uma briga entre um “grupo militar” e outro “grupo olavete”. Isto por várias razões. A primeira é que não se trata de grupos, na verdade, mas de visões de mundo abraçadas por pessoas que podem ou não se reunir em grupos. De um lado, sim, temos predominantemente militares.

Do outro há pessoas como a ministra Damares Alves, que nem sei se já teve qualquer contato com o professor Olavo de Carvalho, ou o deputado Marco Feliciano; se eles tivessem um grupo, seria a base crente do governo. A segunda é que o que estamos testemunhando aqui é apenas o reflexo nacional de uma disputa que está em curso em todos os Estados herdeiros – diretos e indiretos – do Império Romano.

Ao longo dos séculos, formou-se – com a união do monoteísmo judaico enriquecido com a noção teológica do Deus feito homem no Cristo Jesus (comumente representado por Jerusalém), a lógica e filosofia gregas (comumente associadas a Atenas) e o legalismo racionalista romano (dito Roma) – uma união a que se acostumou dar o nome Ocidente, em função de sua situação geográfica e histórica de herdeira direta do Império Romano do Ocidente. Outro nome, talvez mais justo, seria o de Civilização Latina, na medida em que é estritamente a sua união com Roma e com o Rito Latino católico que dá a medida certa de pertencimento de cada uma das diversas nacionalidades e subculturas que vieram a gerar esta grande cultura, à qual não pertence, por exemplo, a Rússia (igualmente cristã, quase tão igualmente influenciada pela Grécia, mas à qual falta justamente o elemento latino).

Esta civilização foi varrida, quinhentos anos atrás, por um grande cisma, originalmente iniciado, inadvertidamente, pelo monge alemão Martinho Lutero. Em enorme medida ele veio a mandar para escanteio o que era o grande polo de união de todas as sociedades ocidentais: o monoteísmo cristão. Nasceu a modernidade, fruto de uma sociedade modelada pelo monoteísmo mas que, num impulso freudiano, negava pai e mãe e queria-se surgida do nada. A sociedade moderna caracteriza-se pela preponderância da ideia sobre a realidade, numa versão alucinada do legalismo romano pagão.

Ao contrário deste, a nova ordem que chegou apoiava-se ainda sobre o fantasma de uma ordem social cristocêntrica, nos Dez Mandamentos e em todas as demais heranças “éticas” da Cristandade, que a modernidade preferia ou bem fingir ter surgido do nada ou estar ao alcance de uma suposta razão universal desprovida de premissas. Em outras palavras, era evidente a todos que não se deveria matar, roubar ou cometer adultério, mas as razões por que se deveria ter este comportamento não eram examinadas, para que não se encontrasse, por trás do que parecia “evidente”, a figura odiada da Igreja Católica.

Esta sociedade, ao mesmo tempo em que negava sua origem e fingia-se “racional” e “isenta”, continuava o avanço tecnológico e científico iniciado no Medievo e tornado possível apenas pela visão cristã de um mundo ordenado por um Criador, Cujas obras podiam e deviam ser examinadas como forma de conhecer mais sobre seu Autor. Em meados do Século 19, três séculos e meio após a apostasia e cisma luteranos e o surgimento da modernidade, chegou-se finalmente a um ponto de ruptura civilizacional mais grave, a que chamamos Revolução industrial. A técnica havia finalmente criado de fato uma situação objetivamente diferente para a imensa maioria das pessoas, e a própria sociedade havia sido tremendamente modificada em função dela.

Trens de ferro movidos a vapor – as simpáticas “marias-fumaça” que encontramos como passeio turístico em muitos lugares do interior – haviam tornado possível o transporte em larga escala de pessoas e mercadorias por terra, e os navios a vapor haviam eliminado a dependência das estações e dos ventos favoráveis que tornavam imensamente lento o transporte marítimo anteriormente. A humilde bicicleta, no nível do indivíduo, permitira ao mais humilde dos cidadãos deslocar-se sem custo e com velocidade e distância muito maiores que as que seria capaz de alcançar a pé. Sistemas de iluminação pública e domiciliar a gás tornaram possível andar pelas ruas ou mesmo ficar em casa acordado à noite. As tecelagens mecanizadas fizeram com que o preço das roupas despencasse brutalmente. A teoria de Darwin cortara o laço de criatura e Criador, fazendo do homem o fruto maior de mutações quase infinitas, que teriam elevado aos píncaros da dominação sobre o planeta o descendente de símios, peixes e protozoários. Definitivamente, era ineludível que chegara uma nova era.

Uma pessoa de qualquer outro momento histórico anterior a essa época, se magicamente transportada a qualquer outro momento e lugar igualmente anterior, estranharia sem dúvida as roupas e a língua, mas seria capaz de encaixar-se sem muito problema na sociedade. Afinal, todas as sociedades humanas até então haviam cozinhado em braseiros ou fornos de barro ou pedra, tecido suas próprias roupas, iluminado as noites com o fogo, deslocado-se a pé ou em veículos de tração animal (quando não montados em cavalos, normalmente privilégio dos poderosos).

Já uma pessoa normal nascida daquele momento em diante não saberia mais se encaixar em nenhum outro momento histórico, tamanha a diferença entre o seu modo de viver e o de seus pais e avós. Ela jamais teria aprendido a acender uma lâmpada a óleo, por ter sido acostumada desde criança a luz elétrica ou lampiões a gás. O mesmo combustível a teria poupado de saber acender uma pilha de lenha ou carvão. A tecelagem doméstica seria para ela um mistério. E por aí vai. Criara-se, era o que se pensava, uma nova pessoa, uma nova sociedade, uma nova civilização: a civilização moderna.

Neste contexto, o espanto e o orgulho que se tinha em relação às novas descobertas era tamanho que há uma história segundo a qual um responsável pelo escritório de patentes do governo inglês – então hegemônico no mundo inteiro, com seu “Império onde o sol nunca se põe” – teria proposto o fechamento do seu escritório, porque, afinal, tudo já teria sido inventado. Foi então que na França, do outro lado do canal da Mancha, surgiram duas pragas extremamente dependentes desta visão de mundo, pragas estas que, por razões culturais que não vale a pena explicar aqui, vieram a criar raízes e frutos apenas no Brasil. São elas o espiritismo kardecista e o positivismo comtiano. Tanto Kardec quanto Comte nasceram na virada do século 18 para o 19 tendo portanto testemunhado enquanto cresciam e amadureciam a imensa transformação do modo de viver da sociedade francesa.

Ambos, do mesmo modo, tentaram dar algum sentido filosófico ao que viam, àquela transformação gigantesca, àquela “evolução” acelerada. Kardec escolheu atribuí-la a espíritos, que creu investigar “cientificamente” e com os quais cria conversar. Comte, por sua vez – nisso criando a sociologia tal como a conhecemos hoje – desenvolveu uma teoria segundo a qual a humanidade, na sua evolução, passaria por três estágios. O primeiro deles, e mais primitivo, seria o “teológico”, em que o homem atribuiria tudo a um deus. O segundo seria aquele em que os valores sociais teria passado a prescindir de uma referência à divindade – como passara a ocorrer na era moderna –, por ele batizado “metafísico”. O terceiro, e final, seria o estágio “positivo”, de dominação completa do homem sobre toda a Criação, ops, todo o Universo. Neste o homem, finalmente livre de entraves e superstições, empregaria as ciências e o método científico para não apenas dominar a matéria (como nas invenções que haviam modificado tanto a vida das pessoas), mas para dominar a si mesmo e a sociedade. Assim, a sociedade seria regida por leis científicas, descobertas pela experimentação prática, e assim estaria livre de revoluções, motins, greves, crimes, etc.

O positivismo é a aplicação prática e teóricas destes princípios comtianos, e apenas no Brasil veio a criar raízes fortes, mormente nas Forças Armadas. Há ainda no Brasil – que eu saiba ao menos no Rio de Janeiro e em Porto Alegre – curiosíssimas “igrejas positivistas”, iguais em quase tudo a igrejas católicas antigas, mas com as imagens de santos substituídas por imagens de Darwin, Newton, Galileu, etc. Mas é nas Forças Armadas, especialmente na visão de mundo que é dada a seus oficiais em sua formação, que o positivismo permanece mais forte. A própria bandeira da república brasileira – que, não podemos esquecer, foi fruto de um golpe efetuado por estas mesmas Forças Armadas – traz uma menção aberta ao dístico comtiano “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. Só ficou de fora o amor, afinal a melhor parte.

O positivismo, todavia, era um fruto de seu tempo, e neste mesmo tempo vivia toda a sociedade ocidental. Desta mentalidade persistiu na Europa, ainda que não em estado puro e bruto, como nas nossas Forças Armadas, uma noção permanente de que a gestão do Estado poderia e deveria ser feita de uma maneira mais “racional” que as revoluções e motins do populacho. As horrendas guerras que arrasaram a Europa no século passado, bem como o trauma da descoberta do Mal em estado quase puro no genocídio nazista e o da perda das colônias e da preponderância mundial até então desempenhada pela Europa, levaram a um aumento desta sensação. A administração pública, pensavam, deveria se tornar algo mais racional e mais “limpo” e organizado que a política. Foi desta escola de pensamento que vieram a surgir o mercado comum que acabou por gerar o colosso burocrático que é hoje a União Europeia.

A este modo de ver a administração pública, fruto do enlevo do final do século retrasado com a aplicação prática do método científico e amadurecido nas convulsões genocidas da Europa do século passado, chamamos tecnocracia. O pensamento tecnocrático presume, como o nome indica, que o governo deva ser “técnico”. O tecnocrático substitui o povo (demos, em grego) pela técnica (technos, em grego): a democracia vê-se tecnocracia. Deve ser gerido por técnicos: engenheiros sociais, por assim dizer. Para o tecnocrata, a ideologia é, antes de tudo o mais, uma fonte de confusão e desordem, algo que impede a “ordem e progresso” de tomar forma.

A política, por sua vez, é tida por uma coisa suja, enquanto o populacho é uma massa ignorante que deve ser alijada do mando. Tanto é que a própria União Europeia aparentemente deixou de fazer consultas públicas nos países antes de lançar novas regulamentações, porque estas consultas, de modo geral, resultavam em evidenciar a maciça repulsa popular às medidas “técnicas e racionais” que lhes eram propostas.  Os fazendeiros franceses, por exemplo, nunca viram nada “técnico e racional” nas obrigações europeias de modificar os métodos artesanais de produção de queijos maravilhosos herdados de seus pais.

Aqui no Brasil não tivemos União Europeia; tivemos, por outro lado, cerca de duas décadas de tecnocracia militar positivista. Em grandes linhas, mesmo por já ter tratado deste assunto em vários outros textos, na prática isso significou que os governos militares tentaram impedir que a política atrapalhasse o que viam como uma administração “técnica”. Para isso, cortaram as pernas de todos os políticos de direita, percebidos por eles como arrivistas meio malucos que se fossem soltos seriam como macacos numa loja de louças. Afinal, em um governo teoricamente direitista, faria sentido uma transição ao poder civil efetuada em prol de um político de direita, o que fazia dos políticos desta linha ideológica um perigo muito maior que os de esquerda.

Assim, eles foram substituídos na prática política por políticos fisiológicos, ladrões e bajuladores que serviam aos governos militares por desejo de poder e de acesso ao cofre da Viúva. Esta corja não-ideológica acabou dominando a política brasileira, e até hoje permanece como a maior força no Congresso Nacional, sob o apelido de “Centrão”. Não se trata de “centro” no sentido clássico de direita e esquerda, mas de uma massa amorfa de representantes nada ideológicos de interesses pessoais ou ao menos particulares, que só age se comprada por alguém.

À ideologia de esquerda, por outro lado, sempre dentro da mentalidade positivista dos militares brasileiros, foi dada carta branca no ambiente acadêmico (a tese do infame Gen. Golbery – chamado por Gláuber Rocha de “gênio da raça” – segundo a qual a política era uma panela de pressão que precisava de uma válvula inofensiva, que absurdamente seria para ele a Academia, encarregada da formação intelectual das futuras gerações. Menos “inofensivo” é difícil, se não impossível, de achar…). A esquerda política igualmente não foi incomodada, por não ser percebida como concorrente real ao poder político.

Apenas quem se meteu a fazer terrorismo ou guerrilha foi incomodado pelos militares. Aliás, incomodado, não: chacinado. Este era o único “perigo” que os militares percebiam, por terem sido treinados justamente no ofício das armas. Enquanto os filhos dos militares, das elites e dos demais brasileiros eram doutrinados por comunistas nas escolas em que estudavam (com a louvável exceção, curiosamente, das escolas militares), os generais governantes preocupavam-se em matar muito bem matado meia-dúzia de jornalistas desempregados brincando de guerrilha no Araguaia, como se num país de dimensões continentais, como o nosso, fosse possível a tomada do poder por estes meios.

O resultado foi o que seria previsível para qualquer um que vivesse no mundo real e não tivesse sido criado na estufa artificialíssima dos quartéis, com seus meios-fios pintados de branco e suas casinhas iguais para cada oficial da mesma patente: as universidades tornaram-se celeiros de esquerdistas, que passaram a dominar o ensino todo (pois é das universidades que vêm os professores das crianças e adolescentes), até o ponto em que toda uma geração, educada por esquerdistas sob o olhar desinteressado dos militares ocupadíssimos em cuidar “técnica e cientificamente” da administração pública, levantou-se contra os governos militares, exigindo eleições diretas para Presidente.

Nisto, claro, havia também o dedo dos políticos de esquerda e, mais ainda, dos ativistas de extrema-esquerda que haviam sido expulsos do País por envolvimento em ações armadas de desestabilização do governo, mas que já haviam voltado graças à Lei de Anistia. Quando aconteceu a transição de poder dos militares aos civis, por a direita ter sido alijada do campo político, sobraram apenas os esquerdistas, e a estes foi dado o poder. Uma Constituinte composta quase que unicamente por eles nos deu a aberração jurídica que hoje nos desgoverna.

Nos anos seguintes, aqui no Brasil, os militares fizeram a gentileza de recolher-se a suas casernas e dedicar-se a repintar seus meios-fios, que talvez possam ter ficado um pouco encardidos enquanto brincavam de “administração científica”. Enquanto isso a esquerda, cada vez mais tresloucada e poderosa, uniu-se numa organização continental, em grande medida bancada pelo Brasil, o Foro de São Paulo. Do socialista fabiano FHC passamos à extrema-esquerda lulopetista, de que acabamos nos livrando (em termos, na medida em que a ocupação do Estado foi muito maior que a mera ocupação da Presidência, e a da Academia continua intocada) apenas com o impeachment de Dilma por incompetência absoluta.

Resumindo, para traçarmos um paralelo entre o Brasil e a Europa, nós tivemos, de uma certa forma, uma antevisão do que esperava os europeus hoje submetidos à tecnocracia da União Europeia, que por sua vez levou a eleições de tecnocratas teoricamente apolíticos, ou quase, para os governos da maior parte dos países europeus, hoje reduzidos a províncias da UE. Nosso país tem, inclusive, área semelhante à da União Europeia, o que aumenta a possibilidade de comparação, ainda que não tenhamos uma história de separação ou sequer autonomia de unidades administrativas menores que nossa União.

A diferença é que a Europa, após a Segunda Guerra, passou por um período de reconstrução e enriquecimento, seguido de um período de governos relativamente ideológicos (mais pela sua obrigação de se colocar contra o inimigo soviético, sempre às portas com milhares de tanques e homens), e depois mergulhou totalmente na tecnocracia transnacional. Já o Brasil passou quase diretamente da ideologia (primeiro semi-capitalista, com JK, seguida do breve interlúdio esquerdista de Jânio e Jango) à tecnocracia desenvolvimentista, substituída no final do século passado pela ideologia esquerdista cada vez mais extremista.

Ou seja, entramos e saímos antes da Europa da etapa tecnocrática, e amargamos um retorno a coisas que já haviam sido esquecidas por lá após o fim da tecnocracia. Isto, aliás, como já escrevi, aconteceu por culpa única dos tecnocratas positivistas das Forças Armadas. Foram os militares que entregaram o Brasil à extrema-esquerda ao eliminar a direita da política pela imbecilíssima razão de não acharem que política é coisa séria.

Diga-se de passagem, foi o fato de a Europa estar nas mãos de tecnocratas e da política não ser levada muito a sério por aquelas bandas que possibilitou a Lula fazer-se de Nélson Mandela ou Gandhi por lá. A ideia de um governo raivosamente esquerdista, disposto a tudo para implantar uma ditadura, como foi o caso dos desgovernos petistas, simplesmente não registrava na mente dos europeus, que haviam passado a ver a política como uma espécie de teatro de variedades em última instância inócuo.

A tecnocracia, contudo, justamente por desprezar a política (e a democracia, e a opinião popular…) acaba distanciando-se cada vez mais do que a própria população espera de um governo. É o que se passou aqui, e é o que finalmente aconteceu na Europa, já neste século. O governo na Europa – tanto o transnacional quanto os nacionais – passou a ser progressivamente percebido como um intruso cujos interesses em nada, ou quase nada, coincidem com os dos cidadãos. A gota d’água no caso da Europa veio a ser o problema das imigrações em massa. Elas são necessárias e bem-vindas do ponto de vista tecnocrático. Afinal, para o tecnocrata as pessoas são intercambiáveis; assim, se os europeus “de raiz” não têm filhos suficientes para pagar as pensões dos aposentados, a coisa evidente a fazer é importar rapazes para tomar o lugar das inexistentes novas gerações.

Como os rapazes disponíveis mais próximos são os árabes e magrebinos, que venham todos. Já para o cidadão comum, é assustador – como foi maravilhoso o surgimento das novas tecnologias no século 19 – que subitamente ele seja o único falante nativo da língua de seus ancestrais num ônibus ou num edifício de apartamentos na cidade em que sua família sempre viveu. Que o cardápio das merendas das escolas seja modificado, eliminando os pratos típicos da região, porque a maioria ou mesmo a totalidade dos alunos é muçulmana e não come aquilo.

Como reação, surgiu o mais importante fenômeno político já ocorrido neste século: o populismo. “Populismo” vem de populus, termo latino equivalente ao grego demos e significando “povo”. Enquanto a democracia é o governo do povo, o populismo é um “povismo”. Poderíamos dizer, de uma certa maneira, que o populismo é a ânsia por democracia, é a protodemocracia. A democracia em semente ou broto. O populismo é um grito contra o que o povo considera os desmandos de uma elite governante. No caso europeu, esta elite é a que faz parte da burocracia tecnocrática da União Europeia e dos governos locais, igualmente tecnocráticos e subordinados em tudo aos ditames da organização maior.

Foi na França que o primeiro sinal do populismo europeu surgiu – como aliás frequentemente foi o caso ao longo da História: para metafísicas diferentes, olhemos para os alemães; para confusões governamentais, para os franceses. Um senhor francês um tanto ou quanto amalucado, firmemente preso às ideias da direita francesa do Entre-Guerras e do governo de Vichy (parte da França não invadida pelos alemães, mas por eles tutelada, durante a Segunda Guerra), começou a vociferar contra a imigração, em termos abertamente racistas.

Este senhor chamava-se Jean-Marie Le Pen, e a organização que fundou era chamada Fronte Nacional. Inicialmente, ele conseguiu atrair a si, além de outros senhores reacionários como ele, uma pequena massa de comerciantes modestos, motoristas de táxi, suboficiais… Em suma, pessoas com uma visão de mundo mais tática que estratégica, que simplesmente queriam uma “França para os franceses” (definidos em termos basicamente étnicos).

Com o passar dos anos, todavia, seu discurso alcançou um teto; o partido passou a dominar as eleições municipais do Sul – área com mais imigrantes – mas não conseguia aumentar sua representação parlamentar nem avançar para novos territórios. Sua filha, então, Marine Le Pen, assumiu a frente do partido e praticamente escondeu o velhinho, que aliás ela expulsou formalmente do partido que fundou, com medo de suas declarações demasiadamente polêmicas. Hoje ela e sua sobrinha Marion são as figuras-chave da Reunião Nacional (nome novo do partido), que por muito pouco não levou a Presidência da França nas últimas eleições, tendo subido muito além do que havia conseguido durante os tempos de Jean-Marie.

Enquanto isto se passava, novos partidos do mesmo gênero, em geral com uma plataforma em muito semelhante – voltada para o problema da imigração e do que eles costumam chamar de “substituição étnica” dos europeus “de raiz” por imigrantes negros ou árabes – foram surgindo por toda a Europa: o AfD na Alemanha, por exemplo, é em muitos aspectos quase um clone do Fronte Nacional de Jean-Marie Le Pen. Estes partidos têm algumas características extremamente interessantes:

Em primeiríssimo lugar, eles são tocados por demandas populares, não por ideologias. A imprensa – lá como cá predominantemente ideológica e de esquerda – tende a apelidá-los de “extrema-direita” e mesmo, como aconteceu aqui com Bolsonaro (calma que a gente chega lá; você já chegou na metade deste textão, parabéns), a traçar absurdas comparações com o fascismo. Ora, nada mais distante da realidade. Uma ideologia é basicamente um plano, uma utopia a ser atingida pela “solução” de um problema que os ideólogos creem ser a origem de todos os outros (a luta de classes para o marxista, a interferência estatal para o capitalista, os traços da presença humana para o ambientalista…).

Os populistas não têm ideologia. Eles não têm uma ideia de como o país deveria ficar; só são contrários ao que está acontecendo. O populismo é um fenômeno fundamentalmente reacionário. O populista europeu, por exemplo, vê na imigração um problema presente e real, e quer que “algo” seja feito. O quê, exatamente, ele nem mesmo saberia dizer. A expulsão dos imigrados? A mera cessação da imigração? Ele não sabe. Mas sabe que é desconfortável estar em seu próprio país e perceber-se o tempo inteiro cercado de estrangeiros.

Aqui no Brasil, o populismo bolsonarista chegou ao poder apoiado em reações dirigidas contra as políticas divisivas da extrema-esquerda, que batem de frente com a cultura pátria e sua prioridade à tolerância, sua resistência ao conflito aberto, sua preferência pela paz. Para o brasileiro médio, o surgimento súbito de acusações de “ódio” e a forte divisão incentivada pelos governos esquerdistas das últimas décadas fazem soar um forte alarme. O travestismo, a homossexualidade, o uso recreativo de drogas e demais comportamentos minoritários sempre foram tolerados, sendo no máximo objeto de piadas. Mas eis que subitamente não basta a tolerância: é preciso apoiar, bater palmas, bradar aos sete ventos que uma dupla homossexual que conviva na mesma casa é exatamente o mesmo que um casal casado, com filhos; quem não o fizer, dizem os esquerdistas, estaria demonstrando “ódio” aos homossexuais.

Ora, o brasileiro orgulha-se de não odiar ninguém, de “dar-se bem com todo mundo”. Ele foge de briga e de “confusão”. Mas as acusações se multiplicavam e se sobrepunham, e eis que subitamente ele se via acusado de homofobia, transfobia, racismo, gordofobia e o que mais pudesse sair da cabeça de um neomarxista pós-moderno para fazer as vezes da antiga luta de classes. Ao mesmo tempo, devido à farra petista com o dinheiro público, a economia só fez piorar. Daí, e bem daí e só daí, veio o sucesso de Bolsonaro.

Escrevi aqui mesmo, desde o tempo do delicioso jornal impresso que nos manchava os dedos, primeiro que Bolsonaro encontrara um nicho ecológico no Congresso colocando-se como o antipetista por antonomásia. Ao misturar declarações inflamatórias com outras ainda mais explosivas, ele podia ir muito além dos limites do politicamente correto sem medo de represálias. Ele podia falar o que quisesse, pois era percebido pela maioria política esquerdista como meio louco. O caso, porém, é que o que ele falava ressoava e amplificava a voz do brasileiro médio, alijada da mídia e do governo. A esquerda não percebia isso, mas ele percebia. E foi espertamente surfando esta onda de insatisfação com o esquerdismo e suas políticas divisivas que ele pôde se colocar em situação favorável para lançar-se candidato. O problema de fazer a sua voz chegar a todos foi providencialmente resolvido pela tentativa de assassinato (aliás jamais resolvida; quem foi o mandante?) que forçou os meios de comunicação de massa a dar-lhe espaço. E assim ele chegou ao poder, ao contrário de seus confrades populistas europeus.

Nos EUA, o fenômeno Trump teve, mutatis mutandis, um percurso algo semelhante ao de Bolsonaro: tornou-se conhecido do público em um reality show em que demitia incompetentes, e ganhou a chapa republicana movido pela fama de self-made man que não temia falar o que fosse politicamente incorreto. Lá como aqui, foi o fato de o candidato negar-se a baixar as orelhas para o discurso politicamente correto que o catapultou à liderança. Lá como aqui, foi eleito alguém que para a grande mídia era na melhor das hipóteses um bobo da corte, e na pior um fascista (a mesma acusação absurda feita na Europa aos populistas de lá, mais absurda ainda neste caso por Trump ser evidentemente um capitalista de quatro costados).

O politicamente correto, o controle orwelliano da linguagem pela elite, é uma das marcas da pós-modernidade, que veio fraturar o pensamento ideológico e enfatizar o relativismo individualista. Para o pós-moderno, a palavra cria realidade, como evangelizam os coaches que tentam convencer suas vítimas, ops, clientes, que estariam usando energias quânticas ou besteira do gênero quando ficam repetindo para si mesmos que são belos e ricos.

Assim como o feioso que se diz lindo no espelho e assim se tornaria lindo, o homem de vestidinho de chita, ao ser chamado de mulher, tornar-se-ia membro do belo sexo. E é aí que vem o politicamente correto, como um coach nacional ou transnacional, a exigir que o chamemos no feminino, sob pena de sermos acusados de odiar o pobre rapaz. O populismo, então, em toda parte, é em grande medida uma reação contra o politicamente correto. Ele é simplesmente a voz da maioria silenciosa, daqueles que a grande mídia recusou-se sempre a ver, dos que Hillary Clinton chamou de “deploráveis”.

Na Europa, esta revolta mostrou-se uma ameaça gigantesca ao status quo, na medida em que o populismo europeu reage contra algumas das bases do pensamento tecnocrático europeu: ele quer a descentralização da legislação; ele demanda um fim à ditadura da União Europeia (na Inglaterra o populista Nigel Farage conseguiu que fosse aprovada a saída da Inglaterra da União Europeia, mas pelo andar da carruagem parece que, mais uma vez, a voz do povo pode até ser a voz de Deus, mas certamente não é percebida pelas elites como tendo valor algum); ele quer que os habitantes tradicionais de cada país sejam os dominantes no território, se não os únicos habitantes; ele é contra o casamento gay, o aborto e a adoção por duplas do mesmo sexo; ele quer que as crianças aprendam patriotismo na escola; ele quer poder andar de carro sem restrições ecológicas; ele quer, em suma, o contrário do que lhe é imposto pela burocracia da UE em muita coisa que é importante para os tecnocratas.

Estes, por sua vez, são incapazes de compreender o fenômeno populista, pelo simples fato de que este nem é ideológico – e a tecnocracia sempre considera seu inimigo maior a ideologia, que percebe como a fonte da “desordem que impede a gestão técnica da administração pública” – nem tem interesses outros que possam ser saciados pelo Estado, de modo a fazer dele um aliado de ocasião, como os militares fizeram no Brasil com os políticos corruptos que hoje compõem o “Centrão”.

O populismo sequer deseja o poder pelo poder, como sempre foi comum. Os populistas, quaisquer populistas, aqui como ali ou acolá, deseja simplesmente que o cidadão comum possa viver e deixar viver, sem que venha alguém – a administração da União Europeia, o PT… – mandar que cale a boca, que mude sua maneira ancestral de fazer queijo, que coma isso e deixe de comer aquilo, que chame homens de saiote de menininhas, o que for. O populista quer basicamente ser deixado em paz.

Daí, por exemplo, ter Farage, o populista inglês, deixado a política após a aprovação em plebiscito da saída da Inglaterra da UE: ele não queria o poder pelo poder, ele não tinha nem tem uma ideologia a impor para que seu país se torne um paraíso, ele não tinha interesses particulares outros que não o de tirar da Inglaterra a cangalha europeia. Assim que conseguiu ganhar o plebiscito saiu de cena e voltou ao trabalho que tinha antes de entrar para a política.

Agora, todavia, com a aparente vitória dos tecnocratas em impedir que se consume a saída, ele resolveu voltar a se candidatar, desta feita ao Parlamento Europeu. E provavelmente há de sair de cena novamente se conseguir uma vitória final. Assim são os populistas; e para tanto os tecnocratas quanto os ideólogos, eles são completamente incompreensíveis, e por isso não apenas vistos como perigosos, como confundidos com “perigos” com que não têm nada a ver, como o fascismo.

E é agora que chegamos à situação no Brasil. Nossos militares estavam fora de cena, tendo-se dedicado a pintar seus meios-fios nas últimas décadas, enquanto os desgovernos lulopetistas aproximavam cada vez mais o Brasil do caos completo (processo mais avançado no Rio de Janeiro e no Ceará), forçavam a aprovação entusiástica do travestismo pela população brasileira, a que acusavam em massa de racismo e outras absurdidades. Note-se que os militares simplesmente não dão importância alguma a este tipo de coisa, por uma razão simples: são positivistas. Estaríamos, pensam eles, na “era positiva”, em que tudo é técnica, tudo é ciência. A administração pública não teria segredos, desde que, claro, seja afastada a “desordem” (que é a política) do campo. Foi exatamente por pensarem assim que eles entregaram o País à extrema-esquerda ao se retirar de cena. É exatamente por pensarem assim que não apenas não sabem lidar com a guerra cultural e com a luta pela preponderância de narrativas – por exemplo, a esquerda transformou o tempo dos governos militares em algo parecido com uma Alemanha de Hitler ou um Camboja sob Pol Pot, só que piorado, na cabeça dos jovens que não viveram aquele tempo. Para os militares, tanto fez como tanto faz. Isso lhes é indiferente. Nos quartéis, eles continuaram a comemorar o 31 de Março, enquanto do lado de fora as coisas mais absurdas eram ditas em rede nacional de TV. Quando as ofensas pessoais atingiam alguém e destruíam sua reputação, como com o Cel. Ustra, eles tampouco se mexiam. O livro em que Ustra se defende e comprova a falsidade de muito do que foi dito sobre ele foi lançado por ele mesmo, não pela Biblioteca do Exército.

Pois Bolsonaro foi eleito como populista, pelo voto populista, por razões populistas. Em outras palavras, ele foi eleito basicamente para desmontar as armas predominantemente culturais com que os governos anteriores atacavam a cultura tradicional brasileira, e para fazer com que o Brasil volte a ter uma economia em bom estado. Ele decididamente não foi eleito para levar o Brasil de volta à tecnocracia, sim para retirá-lo da loucura bolivariana dos desgovernos lulopetistas e reverter o processo de desmanche da sociedade por eles encetado. Mas os militares não entendem. Mais ainda: eles acreditam firmemente, como escreveu um coronel em texto publicado pelo Clube Militar, que teriam sido “os valores militares que ajudaram a eleger o atual governo”. Não entenderam absolutamente nada. Ouviram o galo cantar e não só não sabem onde como acharam que se tratava do miado dum gato.

Outro exemplo claríssimo disso ocorreu recentemente, quando o Banco do Brasil produziu um comercial que evidentemente valorizava a “diversidade” no sentido pregado pela esquerda neomarxista: pessoas que seriam consideradas “esquisitas” na imensa maior parte do país, em praticamente todo ambiente. Pelo modo de agir tradicional da cultura brasileira, essas pessoas seriam toleradas, e as demais fingiriam, por educação, que elas não são assim esquisitonas. Mas para o neomarxista, a esquisitice (sexual, de vestuário, de corte de cabelo, etc.) deve ser celebrada, e quem não concordar com a celebração da anormalidade estaria demonstrando “ódio”, racismo e sei-lá-o-quê-fobia.

O comercial lacrador, assim, esfregava na cara dos espectadores normais a esquisitice, como que os desafiando a aplaudi-la, ou… Pois bem; o presidente, assim que assistiu o tal comercial, o vetou. Ora, bolas, foi exatamente para isso que foi eleito. Contudo, logo depois, o Gen. Santos Cruz veio a público proclamar que acabara de retirar do presidente este poder. Há alguma leizinha que lhe permite fazer isso, não duvido. O que o general fez certamente foi legal, mas politicamente falando foi péssimo. Ele na prática agiu em benefício da extrema-esquerda e contra os desejos dos eleitores de Bolsonaro.

Como, todavia, para os militares o político e a guerra de narrativas, bem como a guerra cultural, são apenas ruído de fundo ao qual por princípio não se deve prestar atenção para que não se distraia da “administração científica” positivista, o general, por mais cara de mau que faça, nem se deu conta de estar desautorizando o presidente e atrapalhando, e muito, o seu trabalho real. Bolsonaro não foi eleito para fazer “administração científica”. Ele foi eleito para acabar com a “lacração”, para fazer com que o governo não seja a fonte de ataques à família, à tradição e à propriedade.

O mesmo aconteceu várias vezes, em vários lugares. Ações do presidente foram desautorizadas em público por seus subordinados. O general vice-presidente trabalhou com tanto afinco contra o presidente, que este teve que despachar de um leito de hospital para impedir seu vice de fazer besteiras maiores ainda. Aparentemente o Gen. Mourão considera sua missão evitar que a “bagunça” do populismo bolsonarista contamine a “administração científica” positivista que ele considera naturalmente certa, e por isso se compraz em apresentar-se à imprensa esquerdista como alguém mais “sensato” que Bolsonaro.

Em recentíssimo tuíte, o Gen. Villas Boas deixou perfeitamente clara a visão de mundo militar acerca da situação atual. Declarou ele que “substitui[r] uma ideologia pela outra não contribui para a elaboração de uma base de pensamento que promova soluções concretas para os problemas brasileiros”. Com isso, o general indica que percebe tanto o neomarxismo ideológico petista quanto o populismo não-ideológico bolsonariano (cuja criação teórica ele parece atribuir, erroneamente, ao Prof. Olavo de Carvalho, a quem dirigiu a investida) como “ideologias”, o que, no pensamento positivista, significa coisa antiga, ultrapassada, resquícios da “era metafísica” que já deveria ter sido substituída pela era positiva da administração científica. Ruído, bagunça. Obstáculo no caminho da “ordem e progresso”.

Ora, o populismo não é uma ideologia, como vimos acima. Nem é – como ainda julgam os militares, com sua mentalidade presa às concepções absurdas do final do século retrasado – a política uma ciência exata. Na verdade, a administração inexiste separada da política, na medida em que o que se administra não é um quartel, com uma quantidade certa de pessoas que comem num refeitório em comum e subordinam completamente seus objetivos aos da instituição. A política é a arte do possível, é a arte – não a técnica, jamais a técnica – de dar meios à população para que ela se desenvolva ao máximo. A população, por sua vez, tem tantos objetivos quantas são as pessoas, ou ainda mais. É simplesmente impossível ouvir a um por um; é por isso que se tem eleições, é por isso que é premente a necessidade de lutar pelo controle das narrativas.

Cada eleitor é convencido pessoalmente de que aquele candidato, e não este, é o que melhor representa os seus interesses. E dentre os interesses que a população brasileira manifestou certamente não está uma volta à mesma tecnocracia estúpida que levou ao domínio da extrema-esquerda. Muito pelo contrário, aliás. Durante as duas décadas de controle absoluto da narrativa pela esquerda, em que era proibido falar dos governos militares senão como “anos de chumbo” ou “horrenda ditadura”, os militares estavam quietos, mantendo seus meios-fios bem caiados.

Olavo de Carvalho era a única voz em toda a mídia a anunciar que o comunismo estava vivo e continuava perigoso. O processo de dominação da cultura formal do país pela extrema-esquerda estava quase pronto. Era virtualmente impossível manifestar-se contra os absurdos esquerdistas. O próprio prof. Olavo perdeu, uma a uma, suas colunas na grande imprensa. Mas neste momento surgiram as redes sociais. E nelas cada brasileiro pôde se manifestar livremente, pela primeira vez. E aos poucos, olhando em volta ressabiados, cada um percebeu que a sensação de opressão, que o desagrado com as exigências delirantes da ideologia de gênero e outras fantasias esquerdistas, era algo quase geral.

Foi então que pôde surgir e crescer o populismo brasileiro encarnado em Bolsonaro, assim como ocorreu com Trump (cuja vitória foi uma absoluta surpresa para a grande mídia internacional e americana). Bolsonaro no Congresso era um ninguém, um bobo da corte ou palhaço aos olhos de seus confrades, divididos entre ideólogos de extrema-esquerda e fisiologistas sem ideologia. Mas nas redes sociais ele rapidamente tornou-se o “Mito”, por dizer de sua tribuna o que a maioria silenciosa pensava. A luta pelo controle da narrativa, que parecia ganha pela extrema-esquerda, deu uma virada fenomenal aos 47 minutos do segundo tempo, com a ascensão do Bolsomito, reacionário até a medula, avesso a teoria de gênero, a bandidolatria, a tudo o que a extrema-esquerda tentava enfiar a força goela abaixo do brasileiro.

Sua eleição foi ganha nas redes sociais. Seus eleitores são brasileiros de todo tipo. Alguns poucos deles – dentre os quais os seus filhos – são em algum grau ligados a Olavo de Carvalho. Outros vêm de uma base protestante, como Feliciano. Outros são ligados ao movimento pró-vida, como Damares ou Ângela Gandra Martins. Outros vêm das polícias, como o Sargento Fahur. Outros, ainda, vêm da direita católica, como a Chris Tonietto. Mas a imensa maioria, a imensíssima maioria, não é ligada a ninguém. É gente que foi para as ruas em 2013 mas voltou para casa quando a extrema-esquerda começou a vandalizar os protestos. É gente que foi de novo para a rua em 2016, que botou uma camisa amarela e saiu por aí para pedir a remoção de Dilma (e com ela do PT) do poder. E, principalmente, é gente que transmitiu por WhatsApp ou Facebook sua insatisfação generalizada e que reagiu contra os absurdos do lulopetismo. Em suma, é uma massa democrática levantada pelo populismo reacionário encarnado no nosso atual presidente e interconectada pelas redes sociais.

Esta massa entende, a seu modo, a importância do controle da narrativa, coisa que escapa completamente aos militares. Essa massa é reacionária, e quer que acabem os abusos e que o governo deixe de ser parte do movimento internacional muito bem financiado que visa desestabilizar a unidade familiar, legalizar as drogas e proibir o tabaco, equiparar as relações homossexuais ao matrimônio, e por aí vai.

E, sendo uma massa populista, ela não tem ideologia. É isso que os militares, na sua visão trancada em 1850, não conseguem compreender. Não havendo ideologia, evidentemente não há ideólogo; é por isto que o papel do prof. Olavo escapa completamente à compreensão dos militares. Ele é um formador de opinião, um modelador de narrativas, alguém que começou a surgir politicamente como a voz que clamava no deserto contra o comunismo, voz esta que levou muito tempo para ser ouvida. É certamente um pensador e um conhecedor profundo da ciência política. Mas não é um ideólogo, nem de Bolsonaro nem de ninguém. Por ter nas redes sociais um alcance provavelmente semelhante ao da própria Globo, em seus melhores dias, sua voz soa mais alto que as outras vozes que apoiam Bolsonaro. Mas o que ele diz é dele, não de um movimento organizado, nem é – mais uma vez – um projeto de conformação política da sociedade rumo a uma utopia, como são as ideologias. Não faz mais sentido chamá-lo de ideólogo do governo que dizer o mesmo de Chris Tonietto ou mesmo Alexandre Frota. O governo é populista, logo não-ideológico por definição. Agora vá tentar explicar isto a um positivista!

O resultado desta complicadíssima ópera é que a crise atual pode ser perfeitamente compreendida se percebermos que os militares – que na prática expulsaram Bolsonaro de suas casernas quando era ainda capitão e não têm por ele respeito algum – estão tentando dominar um presidente que consideram “confuso” por estar, em sua visão limitada, ligado a “ideologias”, para que possam instaurar no Brasil outra ditadura positivista, outra “administração científica”, em que “detalhes” como o controle da narrativa (o politicamente correto, a ideologia de gênero, etc.) são um ruído irrelevante. Em outras palavras, estão literalmente trabalhando contra o presidente, que os chamou por crer que o apoiariam e agora se vê traído pelos antigos companheiros, que acham em sua cegueira política que ele foi eleito como representante das Forças Armadas.

Tal golpe branco verde-oliva seria a pior coisa que poderia acontecer com o Brasil neste momento. A guerra é principalmente cultural. O que importa acima de tudo ao presidente neste momento é ganhar a guerra pelo controle da narrativa, fazendo coisas como a que o Gen. Santos Cruz impediu-o de continuar a fazer. Trata-se de um projeto reacionário, que foi escolhido pela maioria esmagadora da população: desmontar a máquina de destruição da sociedade montada pela extrema-esquerda. Retomar um sentido de normalidade no Brasil. Fazer com que a esquisitice e a bizarria voltem a seu cantinho, em que eram e continuarão sempre sendo toleradas, pois tal é a nossa cultura, mas sem forçar a população conservadora a bater palmas para aberrações. É uma guerra cultural, que os militares não só não sabem como fazer (e por isso entregaram o Brasil à extrema-esquerda), mas sequer conseguem entender que existe, devido às limitações intelectuais no pensamento estratégico e social causadas pelo seu positivismo.

Marx disse que a História se repete como farsa. E, realmente, o que temos agora no Planalto é uma versão farsesca do Cerco de Canudos, com o presidente no papel de Antônio Conselheiro.

Se ele conseguir retomar o controle; se ele conseguir rebaixar os militares a seu devido lugar e fazê-los perceber que foi ele, não o projeto tecnocrático idiota deles, que foi eleito; se ele conseguir, em suma, fazer o que foi eleito para fazer, sem que o apoio militar se transforme num entrave e sem que a atual tentativa de golpe branco verde-oliva tenha êxito; aí o Brasil terá jeito. Aí teremos uma verdadeira democracia, em que o poder pertence ao povo e não apenas em seu nome, mas também visando os seus interesses reais, é exercido. Será possível que isto aconteça?".

Carlos Ramalhete é Professor de Filosofia. Moderador da lista Tradição Católica e Contra Revolução.

Gazeta do Povo

(*) Comentário do editor do blog-MBF:  boa análise histórica. Quanto à considerar o kardecismo uma praga, só vim entender a posição do autor ao ler, no final, suas credenciais: “Moderador da lista Tradição Católica”. Esqueceu da Inquisição. Pena.

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