quinta-feira, 25 de junho de 2015

Como sair desse buraco

Fernão Lara Mesquita

O que assusta mais é a desproporção entre a quantidade e a qualidade do alarme e o tamanho do desastre. A unanimidade dessa alienação é inquietante. A fronteira hoje é o mundo e já passamos longe o limite a partir do qual não se cabe mais no mercado global. Os tempos dos verbos em uso em Brasília estão defasados. Não é que a conta vai estourar. A conta já estourou. A indústria nacional já está cataléptica.

Ninguém – fora os barões do BNDES – consegue andar com as próprias pernas. Os empregos estão sumindo em velocidade vertiginosa. A inflação que se vê é só a primeira onda do tsunami que vem vindo.
O estado tende geneticamente ao absolutismo e democracia é a única barreira capaz de impedi-lo de ocupar todos os espaços. Nos períodos de imunodepressão institucional — quando a “razão de estado” impõe-se sobre os direitos individuais e os demais poderes são avassalados pelo Executivo – o estado incha, a segurança jurídica acaba, a produção e o emprego minguam e a inflação dispara.

Já vimos esse filme. O estado brasileiro saiu do regime militar maior que nunca e, como consequência, a desorganização da economia foi ao paroxismo, passando dos 80% de inflação ao mês. Mas havia, então – ao menos na imprensa – a consciência de que era disso que se tratava e nenhuma barreira auto-imposta à crítica do regime. Graças a isso, apesar da feroz oposição do PT à desmontagem da obra econômica da ditadura com as 540 estatais que o partido tratava de colonizar, foi possível fazer a estatização recuar até o ponto a que a trouxe o governo FHC.

Trinta anos de progressiva ocupação do sistema educacional e dos “meios de difusão ideológica da burguesia” por um discurso único eficiente o bastante para, na contramão do mundo, “criar mercado” para 30 e tantos partidos políticos, todos “de esquerda”, e ao fim de outros 12 de ódio ao mérito, truculência regulatória, agressões à aritmética e aparelhamento do estado e até da economia “privada” para “um projeto de poder hegemônico“, o fosso que se havia estreitado ganha as proporções de uma falha tectônica.

O efeito prático é essa combinação aberrante: apesar da renda per capita de Brasília, onde nada é produzido, ter passado a ser o dobro da do Brasil e 1/3 maior que a de São Paulo, síntese precisa do sistema de castas em que nos transformamos, os temas do tamanho do estado, da privatização, do privilégio e da desigualdade perante a lei estão quase completamente ausentes do debate; tudo que se discute é como o “ajuste” vai tomar mais do país para dar mais ao estado.

Para que a trajetória volte a ser ascendente é o contrário que tem de acontecer. Será preciso recuar até o ponto anterior àquele em que a economia parasitária passou a consumir mais do que a economia produtiva é capaz de repor. A questão é que o PT não é hoje muito mais que a representação política dos “servidores” do estado de modo que reduzir o tamanho do estado significa reduzir o tamanho do PT (e de todos os “caronas” que, até segunda ordem, ele admite carregar na boléia da “governabilidade”). O tema oficial do 5º Congresso Nacional do PT – “Um partido para tempos de guerra” – nos dizia do grau de mobilização dessa casta na defesa dos seus privilégios. O tom só abrandou porque ninguém está desafiando o status quo. Mas a impossibilidade matemática de mantê-lo e ao mesmo tempo evitar o desastre econômico e a conflagração social que vem com ele não é um bom presságio para a democracia no Brasil.

Mesmo assim, nem imprensa, nem “oposição” parecem se dar conta disso.
Nas votações da única parte do “ajuste” em que as propostas reuniam o legalmente possível ao justo e ao desejável, com ligeiro constrangimento do desperdício no setor público, o PSDB, fiel depositário de metade das esperanças da nação, simplesmente oficializou a sua condição de não existência. Renegou bandeiras históricas para assumir-se como nada mais que a imagem invertida do PT. Tudo que tem a propor como alternativa ao que está aí é que seja ele a presidir a festa.

A reforma política, sem a qual não há esperança de romper a blindagem que veda qualquer forma de redução do peso do estado, é outro atoleiro. Sempre que pressionados os políticos sentem-se confortáveis para jogar na arena as surradas “propostas do costume” pela simples razão de que nem os mais agressivos “cães bravios” do nosso “jornalismo watchdog” resistem a esses “biscoitinhos”. “Fim da reeleição” em pleno início de um quarto mandato por interposte pessoa? “Financiamento de campanha” em face de uma economia nacional inteira destruída para comprar votos? Mais leis anti-corrupção no país dos foros especiais? Enquanto os eruditos da irrelevância se distraem debatendo infindavelmente o que quer que se lhes atire, os “jabutis” que aumentam o tamanho do problema passam ao largo gargalhando.

Ao fim de cinco séculos levando com a porta das reformas na cara sem conseguir iniciar uma que fosse, já era tempo de aprendermos que pouco importam as firulas e as beiradinhas conceituais desses preciosismos em que adoramos nos dividir e nos perder, o que é imprescindível é abrir finalmente essa porta e mantê-la aberta daí por diante.

É do mais elementar bom senso e da experiência pessoal de todos nós a noção de que, em qualquer estrutura hierárquica, manda quem tem o poder de contratar e demitir; manda quem tem a prerrogativa da última palavra nas discussões.

O Brasil terá de se reconstruir de alto a baixo para voltar a caber na arena global. E não há “pacote” de reformas que possa incluir tudo que é necessário para tanto. As mudanças terão de se dar num processo, ou seja, num movimento que começa e não se detém mais.
É exatamente isso que proporciona o sistema de voto distrital com recall, a reforma em que são os eleitores que mandam, que começa e não acaba nunca e que, sendo assim, inclui todas as outras.

Do blog Vespeiro

Artigo para O Estado de S. Paulo de 17/06/2015


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