Fernão Lara
Mesquita
O que
assusta mais é a desproporção entre a quantidade e a qualidade do alarme e o
tamanho do desastre. A unanimidade dessa alienação é inquietante. A fronteira
hoje é o mundo e já passamos longe o limite a partir do qual não se cabe mais
no mercado global. Os tempos dos verbos em uso em Brasília estão defasados. Não
é que a conta vai estourar. A conta já estourou. A indústria nacional já está
cataléptica.
Ninguém
– fora os barões do BNDES – consegue andar com as próprias pernas. Os empregos
estão sumindo em velocidade vertiginosa. A inflação que se vê é só a primeira
onda do tsunami que vem vindo.
O estado
tende geneticamente ao absolutismo e democracia é a única barreira capaz de
impedi-lo de ocupar todos os espaços. Nos períodos de imunodepressão
institucional — quando a “razão de estado” impõe-se sobre os direitos
individuais e os demais poderes são avassalados pelo Executivo – o estado
incha, a segurança jurídica acaba, a produção e o emprego minguam e a inflação
dispara.
Já vimos
esse filme. O estado brasileiro saiu do regime militar maior que nunca e, como
consequência, a desorganização da economia foi ao paroxismo, passando dos 80%
de inflação ao mês. Mas havia, então – ao menos na imprensa – a consciência de
que era disso que se tratava e nenhuma barreira auto-imposta à crítica do
regime. Graças a isso, apesar da feroz oposição do PT à desmontagem da obra
econômica da ditadura com as 540 estatais que o partido tratava de colonizar,
foi possível fazer a estatização recuar até o ponto a que a trouxe o governo
FHC.
Trinta
anos de progressiva ocupação do sistema educacional e dos “meios de difusão
ideológica da burguesia” por um discurso único eficiente o bastante para,
na contramão do mundo, “criar mercado” para 30 e tantos partidos
políticos, todos “de esquerda”, e ao fim de outros 12 de ódio ao mérito,
truculência regulatória, agressões à aritmética e aparelhamento do estado e até
da economia “privada” para “um projeto de poder hegemônico“, o
fosso que se havia estreitado ganha as proporções de uma falha tectônica.
O efeito
prático é essa combinação aberrante: apesar da renda per capita de Brasília,
onde nada é produzido, ter passado a ser o dobro da do Brasil e 1/3 maior que a
de São Paulo, síntese precisa do sistema de castas em que nos transformamos, os
temas do tamanho do estado, da privatização, do privilégio e da desigualdade
perante a lei estão quase completamente ausentes do debate; tudo que se discute
é como o “ajuste” vai tomar mais do país para dar mais ao estado.
Para que
a trajetória volte a ser ascendente é o contrário que tem de acontecer. Será
preciso recuar até o ponto anterior àquele em que a economia parasitária passou
a consumir mais do que a economia produtiva é capaz de repor. A questão é que o
PT não é hoje muito mais que a representação política dos “servidores”
do estado de modo que reduzir o tamanho do estado significa reduzir o tamanho
do PT (e de todos os “caronas” que, até segunda ordem, ele admite
carregar na boléia da “governabilidade”). O tema oficial do 5º Congresso
Nacional do PT – “Um partido para tempos de guerra” – nos dizia
do grau de mobilização dessa casta na defesa dos seus privilégios. O tom só
abrandou porque ninguém está desafiando o status quo. Mas a
impossibilidade matemática de mantê-lo e ao mesmo tempo evitar o desastre
econômico e a conflagração social que vem com ele não é um bom presságio para a
democracia no Brasil.
Mesmo
assim, nem imprensa, nem “oposição” parecem se dar conta disso.
Nas votações
da única parte do “ajuste” em que as propostas reuniam o legalmente
possível ao justo e ao desejável, com ligeiro constrangimento do desperdício no
setor público, o PSDB, fiel depositário de metade das esperanças da nação,
simplesmente oficializou a sua condição de não existência. Renegou bandeiras
históricas para assumir-se como nada mais que a imagem invertida do PT. Tudo
que tem a propor como alternativa ao que está aí é que seja ele a presidir a
festa.
A
reforma política, sem a qual não há esperança de romper a blindagem que veda
qualquer forma de redução do peso do estado, é outro atoleiro. Sempre que
pressionados os políticos sentem-se confortáveis para jogar na arena as
surradas “propostas do costume” pela simples razão de que nem os
mais agressivos “cães bravios” do nosso “jornalismo watchdog” resistem
a esses “biscoitinhos”. “Fim da reeleição” em pleno início de um
quarto mandato por interposte pessoa? “Financiamento de campanha”
em face de uma economia nacional inteira destruída para comprar votos? Mais
leis anti-corrupção no país dos foros especiais? Enquanto os eruditos da
irrelevância se distraem debatendo infindavelmente o que quer que se lhes
atire, os “jabutis” que aumentam o tamanho do problema passam ao largo
gargalhando.
Ao fim
de cinco séculos levando com a porta das reformas na cara sem conseguir iniciar
uma que fosse, já era tempo de aprendermos que pouco importam as firulas e as
beiradinhas conceituais desses preciosismos em que adoramos nos dividir e nos
perder, o que é
imprescindível é abrir finalmente essa porta e mantê-la aberta daí por diante.
É do
mais elementar bom senso e da experiência pessoal de todos nós a noção de que,
em qualquer estrutura hierárquica, manda quem tem o poder de contratar e
demitir; manda quem tem a prerrogativa da última palavra nas discussões.
O Brasil
terá de se reconstruir de alto a baixo para voltar a caber na arena global. E
não há “pacote” de reformas que possa incluir tudo que é necessário para
tanto. As mudanças terão de se dar num processo, ou seja, num movimento que
começa e não se detém mais.
É
exatamente isso que proporciona o sistema de voto distrital com recall,
a reforma em que
são os eleitores que mandam, que começa e não acaba nunca e que,
sendo assim, inclui todas as outras.
Do
blog Vespeiro
Artigo para O Estado de S. Paulo de 17/06/2015
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