sexta-feira, 19 de junho de 2015

A teoria do presunto

Fernão Lara Mesquita

Toda semana leio nos jornais e assisto na TV meia dúzia de entrevistas ou debates com “especialistas” sobre o que fazer para reduzir a corrupção. São de uma falta de imaginação que, ora me põe pronto para dormir, ora me empurra para fora do limite das regras da civilidade.

A única exceção que tenho visto em todas essas entrevistas é o professor Modesto Carvalhosa, advogado de São Paulo que estudou profundamente o assunto em vários países diferentes e recomenda a medida óbvia do “performance bond”, já abordada várias vezes aqui no Vespeiro. Adotada ha mais de 100 anos nos países civilizados, ela é de tão comprovada eficácia para impôr um distanciamento higiênico e profilático entre o governante que contrata obras e o empreiteiro que as executa que não adotar esse expediente até hoje já é uma confissão de má intenção e um convite ao crime.

Agora, a legião de “especialistas” que junto com os políticos e outros diletantes – aí incluídos os bem intencionados – repetem infindavelmente que é preciso “aumentar a fiscalização”, esses despertam em mim os mais primitivos sentimentos adormecidos.
Aumentar a fiscalização é aumentar a doença. Aumentar o número de fiscais é aumentar o número de achaques. Renan Calheiros — veja lá! — e Eduardo Cunha estão propondo agora uma Lei de Responsabilidade das Estatais, com requisitos mínimos para se nomear seus diretores, coisa que passaria a ser atribuição deles próprios (Câmara e Senado) e outras perfumarias destinadas a transferir para as mãos das “excelências” as prerrogativas que são hoje do Poder Executivo nesse campo.

O que a História do Brasil nos diz — e não só a do Brasil — é que criar mais um departamento no estado para fiscalizar empresas estatais não é uma cura, é uma metástese. Se insistirem em manter o presunto pendurado na janela – isto é, as estatais – deve-se contar como certa a permanente convivência com o enxame de moscas. Se colocarem o Exército Brasileiro inteiro em volta daquela carne gordurosa e fedorenta com a missão precípua de espantar as moscas, o que vai acabar não são as moscas mas o Exército Brasileiro; uma parte (a menor) por cansaço, outra parte (a maior) porque será corrompida por elas.

Tudo que se vai conseguir é um novo departamento recheado de funcionários indemissíveis promovidos por tempo de serviço com sua descendência “pensionável” até a terceira geração; na sequência virão comissões de fiscalização do ente fiscalizador na Câmara e no Senado; mais além surgirá um Tribunal Especial de Fiscalizações e adiante a comissão especial da CPI da Fiscalização e a comissão especial de reforma do sistema de fiscalização…

E, no entanto, é tudo tão simples. Não querem as moscas? Tirem o presunto da janela!
Acabe-se com as estatais, primeiro porque dinheiro com dono já nasce blindado. Ninguém jamais estará mais incentivado a impedir que seja roubado que quem suou para ganhá-lo. E, segundo, porque já é tarefa grande o suficiente para o Estado tratar de impedir o poder econômico de abusar do resto dos mortais. Pôr um contra o outro, sem misturar papéis nem de um lado nem do outro, é o resumo do que o mundo veio a conhecer como a revolução democrática, aquela, do século 18 que o Brasil pulou.

Haverá corrupção ainda, depois de feita essa separação de papeis? Haverá. Corrupção – o impulso de colher sem ter plantado – é uma força da natureza. Mas tendo, primeiro, sido suprimida 90% da “ocasião”, algo próximo disso será deduzido do número de ladrões.
Para os que sobrarem há sempre o resto dos mecanismos de desincentivo à corrupção “a posteriori”. Fazer seguir ao crime infalivelmente o castigo é coisa que todo hominídeo sabe que funciona desde o tempo das cavernas. Só os mentecaptos e os mal intencionados ainda insistem que o melhor remédio para reduzir a criminalidade é deixar os bandidos na rua caçando vítimas.

A China, por exemplo, pega o corrupto e o executa com um único tiro de pistola na nuca num estádio lotado, mandando a conta dessa única bala para a família do executado. É um modo talvez exagerado de enfatizar que com dinheiro público nem se brinca, nem se desperdiça. Não é preciso tanto. Basta trancar o ladrão numa jaula e jogar a chave fora, como se faz nas democracias mais avançadas.

Um zé dirceu pronto para ser exibido na TV a qualquer momento na sua devida jaula ano após ano, década após década, vale por 500 mil discursos contra a corrupção e uma legião inteira de fiscais. Inversamente, um único deles solto após seis meses é o bastante para anular de uma vez só todas as leis anticorrupção de um país e condená-lo à danação eterna. Como dizia Theodore Roosevelt, nada pode ser mais subversivo do que um corrupto exibindo impunemente o seu sucesso. Que argumento terá uma mãe da favela para convencer seu flho a pegar em livros e não em fuzis se os corruptos seguirem sendo ovacionados pelo governo e brilhando nas colunas sociais e os trabalhadores honestos continuarem pobres, humilhados e ofendidos, trancados em seus casebres porque as ruas estão ocupadas pela bandidagem?

Para juízes que, pelo mesmo crime, sentenciam os zés dirceus a seis meses e os Marcos Valérios a 40 anos de prisão, os Estados Unidos, por exemplo, têm o remédio das “retention elections”. Em toda eleição majoritária a cada quatro anos, aparece na sua cédula, conforme o distrito em que você vota, o nome do juíz encarregado daquela circunscrição por baixo da pergunta: “Deve o meritísissimo Fulano de Tal permanecer intocável em suas prerrogativas de juiz por mais quatro anos”? “Sim”, ou “Não”. Em caso de “Não”, o sistema porá outro juiz intocável enquanto se comportar bem no lugar dele (aqui). Junto com o recall, que permite a quem votou nele cassar a qualquer momento qualquer político que desrespeitar o mandato recebido — vereador, deputado, senador — , isso é quanto basta para que ninguém que não presta vá longe, seja no Legislativo, seja no Judiciário, que dirá chegar a um tribunal superior.

Os remédios estão, portanto, todos ao alcance da mão e não passam de uma meia dúzia. O resto é tapeação. De modo que o que precisa crescer e se tronar radical é só a intolerância dos eleitores, leitores e telespectadores para com os políticos e os jornalistas e seus especialistas amestrados que insistem em tratá-los como idiotas toda vez que esse assunto ressurge.

Vespeiro, blog




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