Mario Guerreiro
De
acordo com o Materialismo Histórico de Marx, a História passa inexoravelmente
por seis etapas: (1) comunismo primitivo, (2) sociedade antiga, (3) feudalismo,
(4) capitalismo, (5) socialismo e (6) comunismo pós-socialista.
Como vemos, estamos diante de uma visão
determinista e utópica da História. Determinista, porque essas etapas estão
pré-determinadas antes do desenrolar da própria História, e sendo assim tanto o
passado foi o que tinha que ser, como o futuro será o que terá que ser.
Não há nenhum lugar para a contingência no
pensamento histórico de Marx, porque os homens fazem a História, mas não a
fazem como gostariam de fazer, porém de
acordo com o que tem que ser.
Marx viveu no século XIX, numa sociedade
capitalista, como ele mesmo chamou, mas que devia ser corretamente chamada de
uma sociedade de mercado aberto.
O comunismo primitivo, a sociedade antiga e
o feudalismo foram, para ele, formas de sociedade passadas, o capitalismo era a
forma presente, e socialismo e comunismo simplesmente não existiam ainda, mas
teriam que existir necessariamente, de acordo com seu pensamento.
Por isso mesmo, dizemos que ela tinha uma
visão determinista em que o passado, o presente e o futuro seriam como tinham
que ser o que são, de acordo com o Materialismo Histórico.
De acordo ainda com Marx, cada forma de
sociedade abrigaria dentro de si mesma os germes da sua destruição. Desse modo,
o comunismo primitivo, em que todos eram livres, gerou a sociedade antiga que
era escravista com uma minoria de homens livres. A sociedade ateniense clássica
é um exemplo.
Esta gerou o feudalismo, uma forma de
sociedade em que apenas alguns eram livres, mas a maioria formada de camponeses
vivia sob um regime de servidão. E do feudalismo surgiu o capitalismo pela
grande acumulação de capital.
A visão marxista voltada para o passado é
determinista, mas não utópica. Mas a que está voltada para futuro além de ser
determinista é também utópica.
A sociedade socialista existiu de fato –
embora fosse na realidade um capitalismo de Estado — mas a comunista nunca existiu, ao menos
até hoje. Por mais que desejemos, não podemos dizer que nunca existirá, porque
não dispomos de uma bola de cristal.
Para Marx, quando a sociedade socialista
estivesse consolidada, ela se transformaria numa sociedade comunista, uma
espécie de paraíso na terra em que todos viveriam bem e gozariam de mais tempo
de lazer e para se dedicar ao conhecimento.
Mas como ela se transformaria a partir da ditadura
do proletariado –
que Bakunin chamou sarcasticamente de ditadura sobre o proletariado – em uma forma de governo que daria
início à sociedade socialista?
E como ela se transformaria numa sociedade
comunista? Seus governantes abririam mão graciosamente do poder por ter
consciência de que se tratava de um mundo melhor? M’engana qu’eu gosto!
Seria possível esse anarquismo, uma
sociedade sem classes e sem Estado, em plena Era Industrial decorrente da
Revolução Industrial?! Ou tal coisa só se mostraria possível no comunismo
primitivo?
Na realidade, estamos aventando uma
hipótese, porque esta é uma das lacunas do pensamento de Marx, que falou muito
sobre as sociedades anteriores a que ele viveu, mas muito pouco sobre as que
viriam depois: a sociedade socialista e a comunista.
O comunismo primitivo caracterizava
sociedades pré-históricas em que o homem vivia da caça e da pesca, depois da
agricultura e da pecuária, mas não existiam Estado nem classes sociais.
Esta é uma visão hipotética, porque até
hoje contamos com escassos dados sobre a vida no mundo pré-histórico, mas é
bastante plausível, tanto que muitos historiadores não-marxistas concordam com
ela.
Mas que dizer da sociedade comunista
pós-socialista? Marx disse muito pouco sobre ela. Limitou-se a dizer que era
uma sociedade sem Estado e sem classes sociais. Mas o comunismo
primitivo e o pós-socialista, apesar de se identificarem nesses dois aspectos,
não eram a mesma coisa.
Para entender isso, temos que retroceder ao
grande mestre de Marx: Hegel. De acordo com a visão hegueliana, o Espírito
Absoluto – não me perguntem
quem é este ser, porque eu não saberia dizer – aliena-se no mundo, mas através
de várias etapas, dá-se o autorreconhecimento do Espírito Absoluto. É como um
novelo de lã que tivesse se desfiado e que depois tivesse voltado à sua forma
original.
Tudo começa e termina no Espírito Absoluto.
Ele é o verdadeiro agente da História. Os homens fazem a história, mas não a
fazem como gostariam, porém de acordo com os desígnios do Espírito Absoluto.
A isto Hegel chamou de astúcia
da História, algo
lamentavelmente confundido com a famosa metáfora de Adam Smith: a mão
invisível.
Infelizmente, não podemos desfazer esta confusão sem entrar numa grande
digressão.
Marx substituiu a visão determinista e
circular da História sustentada por Hegel, por sua visão igualmente
determinista e circular, com a diferença de que o agente da História não é o
inefável Espírito Absoluto, porém as classes sociais. “A História é a História
das lutas de classe”, disse Marx.
Mas as classes sociais não fazem a História
como gostariam, mas sim conforme determinado pelo Materialismo Histórico na
etapa em questão.
O fim do capitalismo, para Marx, ocorreria
por causa das suas “contradições” internas, mas seria necessário que tal coisa
ocorresse numa sociedade de capitalismo avançado, como eram na época de Marx a
Inglaterra e/ou a Alemanha.
No entanto, a revolução comunista só
ocorreu num país semiagrário, como a Rússia czarista de 1917 e as outras que se
seguiram: a revolução chinesa, a da Coréia do Norte, a cubana, ocorreram todas
em países semiagrários, só para contrariar o Materialismo Histórico de Marx.
Na realidade, há uma grande incongruência
no pensamento de Marx: de um lado, nada podemos fazer para modificar as etapas
da História, segundo o materialismo histórico. Mas de outro lado, Marx sempre
incentivou o caráter modernizante da práxis revolucionária. Se o materialismo histórico
está correto, de nada adianta o ativismo político.
Nunca houve revolução comunista num país de
capitalismo avançado, o que mostra que Proudhon estava mesmo certo quando disse
que o marxismo era a filosofia da miséria.
Para Hegel, a História começa e termina no
Espírito Absoluto, mas para Marx ela começa e termina no comunismo.
Para ambos, a História se desenrola
mediante um mecanismo trifásico: a tese, a antítese e a síntese. A tese é uma
afirmação, a antítese uma negação e a síntese uma negação da negação, como um
enriquecimento da afirmação inicial.
De acordo com a lógica matemática ou
simbólica, a negação da negação equivale à afirmação, em símbolos: ~~p=p. Por
exemplo: dizer que “não é verdade que não é verdade que a Lua é o satélite
natural da Terra” é o mesmo que dizer: “A lua é o satélite natural da Terra”.
Trata-se de maneiras diferentes de dizer o mesmo.
Mas para a “lógica” dialética de Hegel e
Marx, a síntese, ou a negação da negação, não é o mesmo que a afirmação. Hegel
serviu-se de uma ambiguidade da língua alemã. O substantivo abstrato Aufhebung,derivado do verbo aufheben quer
dizer: transformação, superação e manutenção.
Desse modo, a negação da negação é uma Aufhebung em relação a tese. Ao mesmo tempo em
que ela a transforma, ela a supera e a mantém. Desse modo, o comunismo
pós-socialista, embora mantenha dois traços do comunismo primitivo, a saber:
uma sociedade sem classes e sem Estado, ele o transforma e o supera.
Mas como? Esta é outra lacuna do pensamento
de Marx. É demasiadamente óbvio dizer que no comunismo pós-socialista o homem
não viverá da caça e da pesca. Mas como ele viverá sem Estado e classes
sociais?
Robert Nozick, em Anarquia,
Estado e Utopia,
fez um brilhante exercício hipotético: Primeiro, ele imagina o que aconteceria
se o Estado fosse suprimido.
Depois, ele mostra consequências muito
semelhantes às horríveis características do estado natural de Hobbes. E conclui
que se o Estado fosse suprimido, ele teria que ser reinventado, dando a
entender que o Estado é um mal, mas um mal necessário.
Concordamos inteiramente com Nozick e
discordamos totalmente de Hegel e Marx. A sociedade comunista é uma utopia como
a mítica Idade do Ouro.
Por sua vez, a sociedade socialista não é
uma utopia. Ela existiu de fato, ainda que sob a forma de capitalismo de Estado, e ainda existe sob a forma totalitária em
Cuba e na Coréia do Norte, o Museu Ocidental e o Museu Oriental do socialismo
marxista.
Marx era no fundo um anarquista
hebraico-cristão, apesar de sua afirmação de que “a religião é o ópio do povo”
[entenda-se “do povão”].
Se sua concepção trifásica da História,
continha uma tese, uma antítese e uma síntese, a concepção bíblica da História
também é trifásica: o Paraíso, o Paraíso Perdido e o Paraíso Reconquistado –
como mostram os dois grandes poemas épicos de John Milton: Paradise
Lost e Paradise
Regained.
Tudo começa no melhor dos mundos possíveis e
termina no melhor dos mundos possíveis, apesar das contrariedades das etapas
intermediárias.
Se a religião era o ópio do povo, Marx era
um viciado irrecuperável e não sabia.
Isso não é algo excepcional na História das
Ideias. Vejam o caso de Augusto Comte. Não havia nenhum lugar para Deus e para
a religião no pensamento positivista de Comte. Os estágios religioso e
metafísico tinham sido superados pelo estágio positivo em que a ciência era
dominante.
De repente, Comte tem uma crise mística e
cria a Religião da Humanidade, com o Templo da Humanidade e os dias dos santos
substituídos pelos dias dos benfeitores da humanidade: Darwin, Laplace,
Pasteur, etc.
Antes dele, Robespierre também abolira
a crença em Deus e a substituíra pela crença no “Ser Supremo”. Qual a
diferença? Seus templos eram a natureza pura e sábia, e seu sumo
sacerdote o próprio líder dos jacobinos.
A sub-reptícia influência da religião
mostra-se claramente nos pensamentos de Hegel, Marx e Comte. Freud diria que
são claramente detectáveis neles mecanismos de substituição, mediante os quais
noções de caráter religioso mantêm uma forma religiosa, mas adquirem um
conteúdo profano.
Quando, por curiosidade, visitei o Templo
da Humanidade, situado na Rua Benjamin Constant (Rio de Janeiro, RJ) deparei à
porta com uma estátua de uma mulher amamentando uma criança. A Virgem Maria
amamentando o menino Jesus? Não, a Humanidade amamentando seus filhos…
Hoje existem três Templos da Humanidade: um
em Paris, outro no Rio e outro ainda em Porto Alegre. Só não sei se ainda
existem sacerdotes e crentes. Em compensação. Há milhares de acólitos
fervorosos da utopia marxista.
Mario
Guerreiro é Doutor em Filosofia pela UFRJ.
A
Voz do Cidadão - 24.06.2015