sábado, 17 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo: as lições que ficam

Escritor compara islamofobia no Ocidente à “evangelicofobia” no Brasil e chama atenção para outros aspectos que têm sido ignorados nas análises sobre o atentado contra a publicação francesa.

por Jason Tércio

Após o repúdio mundial à chacina terrorista que vitimou os jornalistas do irreverente Charlie Hebdo, é hora de refletirmos: quais lições podemos extrair desse episódio?

A maioria dos comentários tem refletido basicamente uma visão etnocêntrica, focando o “fanatismo” selvagem dos terroristas, o fundamentalismo religioso irracional, culturalmente atrasado e defasado
valores do mundo contemporâneo ocidental.

E a atitude dos países ricos, que são as principais vítimas, se resume a reforçar o aparato repressivo, diminuindo assim as liberdades democráticas dos cidadãos e trazendo mais paranoia. Quem mais aplaude essas decisões são os donos da indústria de armamentos, que lucra uma fortuna com a “guerra ao terror”. Seu lobby é poderosíssimo nos governos das potências ocidentais.

Mas, por esse e outros motivos, ninguém discute a sério a natureza do terrorismo árabe, as razões de sua existência, as motivações reais de seus militantes. Os muçulmanos (e os cristãos) sempre se envolveram em guerras no passado, mas esse tipo de violência que vemos hoje é um fenômeno recente na história. Começou basicamente na década de 1970 com a revolução no Irã que derrubou, em 1979, o Xá Reza Pahlevi.

Ironicamente, as organizações terroristas islâmicas foram estimuladas e armadas no Oriente Médio por Estados Unidos e Inglaterra, durante a guerra fria, para reforçarem a defesa contra a influência comunista da União Soviética na região. O feitiço virou contra o feiticeiro.

Marx, que tanto seduziu os radicais sul-americanos e europeus dos anos 60 e 70, foi substituído por Maomé, uma inspiração muito mais forte, porque originária de crenças espirituais ancestrais, não de teorias acadêmicas.
Mas não se trata de um problema apenas religioso. Na verdade, o terrorismo islâmico é um problema sobretudo político-ideológico, e só será erradicado quando esse aspecto receber a devida atenção dos líderes mundiais. A comunidade internacional não entra nessa discussão porque teria que rever sua própria estratégia econômica e geopolítica no Golfo, Oriente Médio e norte da África. Uma estratégia que tem funcionado à custa de bases militares, guerras ilegais, torturas, bombardeio de civis e exploração de petróleo sem redução da pobreza local. Esses são os motivos fundamentais do crescimento do terrorismo árabe.

Prova disso é que os países onde as organizações terroristas têm suas bases são os mais pobres da região. A renda per capita do Iêmen é de US$ 1,5 mil; Afeganistão, US$ 2 mil; Paquistão, US$ 1,3 mil; Síria, US$ 5 mil; Iraque, US$ 6,5 mil. Para comparação, a renda per capita brasileira está em torno de US$ 11 mil.

Se os países ricos, em vez de tratar esses países apenas como fonte de lucrativos recursos naturais, lançassem na região uma espécie de Plano Marshall, teriam chance concreta de reduzir o terrorismo no mundo a longo prazo. O Plano Marshall, como se sabe, foi uma ajuda econômica que os Estados Unidos forneceram aos países europeus após o fim da Segunda Guerra Mundial, para ajudar na recuperação e também para interromper a crescente influência dos partidos comunistas.

Iniciativa semelhante no Oriente Médio e norte da África (com o dinheiro sob controle de instituições internacionais, não a cargo dos governos corruptos da região) levaria desenvolvimento econômico e social, tornando as populações menos vulneráveis ao aliciamento por organizações terroristas. E financeiramente custaria menos do que os enormes gastos com armas e bombas.

A França deveria adotar a mesma atitude, lançando programas sociais específicos para sua população muçulmana, formada por imigrantes e descendentes, originários da Argélia, Marrocos, Tunísia e da África subsaariana. É uma minoria étnica pobre, marginalizada, sem perspectiva de inserção e ascensão social, portanto com um potencial explosivo de radicalização.

No Brasil não temos conflito político-religioso, mas nota-se nos últimos anos o surgimento, na grande imprensa e nas redes sociais, de uma preocupante evangelicofobia. O discurso é o mesmo da islamofobia: colocam-se todos os evangélicos num mesmo saco, ignorando-se suas diferenças éticas e doutrinárias, para discriminá-los como ignorantes, supersticiosos, desonestos e, no Congresso Nacional, responsáveis por decisões conservadoras, como se os políticos católicos e os sem religião também conservadores não fossem muito mais numerosos.

A evangelicofobia ficou bem evidente durante a campanha presidencial de Marina Silva. Diversas notícias na grande mídia e nas redes sociais – por razões políticas e preconceito – fizeram insistentes críticas diretas e indiretas à sua condição de evangélica. Chegou-se a insinuar que, se eleita, ela poderia transformar o protestantismo em religião oficial do Estado. Uma insensatez tão absurda quanto o fanatismo.

Após a chacina no Charlie Hebdo a evangelicofobia teve novo surto. O cronista Gregório Duvivier escreveu, na Folha de S. Paulo (11.1.2015): “No Brasil, o fundamentalista prefere os meios oficiais: não usa metralhadoras, mas tem bancada no Congresso e milhões no exterior”. Arnaldo Bloch, em O Globo, comparou as igrejas evangélicas ao islamismo radical: “Neste mundo, o fundamentalismo religioso ataca em duas frentes. Uma, o Islã radical. (…) A outra frente são as chamadas igrejas neopentecostais, ou evangélicas, numa simplificação. (…) Núcleos radicais (alguns ligados a pastores importantes) que pregam o ódio aos praticantes de religiões africanas. Não será surpresa se, daqui a 20 anos, o Brasil for presidido por um pastor racista, ou pelo exército do Capitão Bolsonaro, armado até os dentes.”

É assim que se introduz o discurso do ódio, com incompreensão, ignorância, intolerância e preconceito em relação a comunidades diferentes nas crenças e valores. Devemos prestar mais atenção a essa perigosa tendência que ocorre no país.

Outra lição trazida pelo caso Charlie Hebdo envolve a liberdade de expressão. Na enxurrada de solidariedade e pesar pela morte dos cartunistas, foi unânime também entre nós a defesa (não raro hipócrita) da liberdade de expressão absoluta. É um ideal irrealizável.

Não existe e nunca existiu liberdade absoluta de expressão em nenhum país do mundo, nem na França (que no ano passado proibiu, como em ditaduras, manifestações de protesto contra o massacre israelense na Faixa de Gaza), nem no Charlie Hebdo, ao contrário do que se divulgou.

O jornal não era tão iconoclasta ao tratar de temas judaicos, até porque a França tem leis contra o antissemitismo bastante rigorosas. Em 2008, um de seus melhores cartunistas, Siné, foi demitido por ter publicado uma nota dizendo que o jovem Jean Sarkozy (filho do então presidente) “afirmou que pretende se converter ao judaísmo antes de se casar com sua noiva, uma judia e herdeira dos fundadores da Darty. Esse rapaz vai longe!”.

Só isso bastou para que Siné fosse acusado de antissemitismo pela Ligue Internationale Contre le Racisme et l’Antisémitisme. O editor do Charlie pediu uma retratação por escrito, Siné se recusou e foi demitido.
Devemos lutar, sim, pela liberdade de expressão ilimitada quando tratamos de fatos objetivos e de interesse público. Mas deve haver critério, respeito e limites quando for opinião pessoal sobre valores, símbolos e crenças.

Charlie Hebdo ultrapassou todos os limites éticos e, como um enfartado que insiste em comer feijoada e continuar fumando, acabou cometendo um hara-kiri, que aliás era o nome da primeira revista que o grupo fundou.
Com certeza, se o jornal continuar sendo editado, será mais moderado nas charges sobre temas polêmicos, inclusive porque o estilo sensacionalista anterior era próprio do grupo que morreu. Se o jornal insistir na mesma linha, correrá o risco de sofrer outro atentado futuramente.

No Brasil, os mesmos que incensaram a liberdade de expressão do jornal francês esquecem que aqui as biografias são recolhidas ou censuradas por motivos estapafúrdios. Há muito tempo ninguém protesta contra a lentidão do Supremo Tribunal Federal e da Câmara dos Deputados em decidir a alteração da lei que permite essa situação prejudicial à cultura do país.
Portanto, não basta vestir uma camiseta “Eu sou Charlie” e sair por aí, imaginando-se um arauto da liberdade de expressão, quando na verdade está apenas aderindo a um modismo pop, fugaz e inconsequente.

Jason Tércio

Jornalista, trabalhou na BBC de Londres e é autor de sete livros. Entre eles, Segredo de Estado – o desaparecimento de Rubens Paiva (Ed. Objetiva).




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