terça-feira, 25 de novembro de 2014

A classe operária no socialismo real


por Carlos I. S. Azambuja


É compreensível que os regimes totalitários etiquetados de socialistas tenham um empenho especial em impedir que a classe operária possa dar uma expressão política ou sindical aos seus possíveis conflitos com o Poder. Todo fato desse gênero comprometeria, muito mais gravemente do que qualquer declaração dos intelectuais, seu principal título de legitimidade: representar os interesses da classe operária. E constitui o desmentido prático mais eloqüente ao suposto caráter socialista desses regimes.

Invocando esses títulos, os regimes ditos socialistas puseram fora da lei o recurso à greve, à manifestação ou a qualquer outra forma de ação de massas, assim como toda e qualquer tentativa política e sindical fora da oficial, com o argumento simplista de que a classe operária não pode fazer greve ou organizar-se contra si mesma. Afinal, não é ela que está no Poder?

Paralelamente, a ausência de greves ou outros conflitos coletivos são apontados pelo aparelho propagandístico oficial como prova definitiva da identificação existente entre o regime e a classe operária. E, para assegurar que os fatos não desmintam essa circularidade legitimadora, as ditaduras totalitárias contam, como mola principal, com o medo da repressão face à imensa rede policial presente em cada empresa, em cada fábrica, ou em qualquer lugar de concentração operária.
Todavia, a ação policial não seria suficientemente eficaz sem a estrutura político-sindical-administrativa controlada pelos pelegos em cada centro de trabalho, que não somente vigiam e controlam o comportamento de cada operário, no trabalho e em seu local de moradia, como também que lhes permite, apenas na aparência – e mais ainda, os obriga – a “participar voluntariamente” nas marchas de “sua” empresa, e oferece um canal, à única via legal que o regime deixa aberta para os possíveis conflitos trabalhistas: a reivindicação individual, atomizada, à qual ninguém se habilita por receio da demissão por parte de seu único patrão: o Estado.

Os agentes dessa estrutura provêm, em parte, de uma camada da classe operária que, em troca do cumprimento desse papel, recebem um tratamento preferencial no que diz respeito ao salário, moradia, férias em datchas, etc.
De acordo com a linha oficial, essa estrutura, e em especial seu comportamento sindical, tem a obrigação de satisfazer no possível as reivindicações individuais, sempre que não contradigam, é verdade, as normas e os objetivos do sistema sócio-político. É freqüente que os agentes dessa estrutura, fundamental para a conservação e reprodução do sistema, sejam objeto de críticas e sanções pelas instâncias superiores – os chamados assistentes políticos ou, na gíria codificada do partido, simplesmente assis – por não cumprirem satisfatoriamente essa difícil função.

Outros mecanismos, entretanto, também contribuem eficazmente para o conformismo ou relativa passividade da classe operária nos países onde ainda vige o socialismo real. Entre o mais importante figura o relacionado com a segurança no emprego, pois ao existir um único patrão, sobre o qual os trabalhadores e o povo não têm qualquer controle, a efetividade dessa segurança está totalmente subordinada ao grau de acatamento ao Estado manifestado por cada um.

Todo e qualquer conflito com os comissários políticos ou qualquer atitude conflitiva – sem falar de oposição política aberta – converte em extremamente insegura essa segurança tão propalada pelos regimes socialistas. O afetado não tem possibilidade de encontrar um novo patrão – que em todos os lugares é o mesmo -, pois a rede policial presente em cada unidade de produção ou de serviços, e centralizada no topo da empresa, se encarrega de que ninguém o admita em novoemprego.

E, ao não poder trabalhar, o indivíduo torna-se um fora da lei, passível de ser acusado de “parasitismo”, um “parasita social”, que deve ser punido. Fica, então frente ao dilema de sofrer a condenação correspondente (cárcere, campo de concentração ou asilo psiquiátrico) ou autocriticar-se de sua conduta. E, ao autocriticar-se, com freqüência o sistema lhe exigirá, como pagamento pelo perdão, que engrosse a rede de colaboração com a KGB, DGI ou seja lá a denominação que tenha a polícia política do país.

A relação estrutural básica que determina todas as demais relações – de produção, sociais, políticas – nos sistemas ainda dominados pelo socialismo real, como em Cuba e Coréia do Norte, é a relação entre um grupo social dominante (classe, camada ou elite) que através do Estado, do qual se apossou, usufrui os meios de produção fundamentais, cujo proprietário jurídico é o próprio Estado, por um lado, e por outro, nominalmente, os trabalhadores, que só possuem a sua força de trabalho.

Essa relação estrutural é, ao mesmo tempo, a principal relação de produção e a principal relação político-social. É isso que torna necessária, e ao mesmo tempo possível, a supressão de qualquer forma relevante de autonomia social e política e, por conseguinte, de qualquer tipo de liberdade e democracia. Essa relação é que exige e facilita o monopólio estatal absoluto de todos os aparelhos culturais, políticos e informativos, além dos econômicos. Em outros termos: as relações de produção que caracterizam esse sistema totalitário são incompatíveis com a democracia e só se tornam possíveis, objetivamente, com a ditadura total. E, por sua vez, uma ditadura política não pode ser total senão quando o é também no sentido econômico, quando o Estado é proprietário único e efetivo dos meios de produção.

Atendendo ao que foi escrito, é pertinente a expressão ditadura totalitária para designar esse tipo de regime. Em virtude dessas características, todas as plataformas das minguadas oposições partem de um ponto essencial comum, como ora se vê em Cuba: colocar em primeiro plano, como objetivo prioritário sobre qualquer outro, a exigência de direitos humanos, liberdade e democracia. Em uma expressão: restaurar a sociedade civil – essa parece ser a fórmula-chave – que a ditadura totalitária atomizou e desagregou.

Mas, conquistar os meios legais para isso – meios legais de informação, organização, comunicação, reunião, etc., – é praticamente impossível


Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
 

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