Zeina Latif
A
deterioração das contas públicas nos últimos anos é alarmante. Os resultados
fiscais primários (excluem pagamento de juros da dívida) caminharam rapidamente
para o território negativo, mesmo antes do colapso da arrecadação por conta da
recessão. Os resultados só não foram piores porque houve a chamada
“contabilidade criativa” maquiando a real tragédia. Ainda que já
suficientemente ruins, os resultados fiscais, no entanto, não dão a dimensão
plena dos riscos fiscais do país.
Os
chamados passivos contingentes também trazem preocupação crescente aos agentes
econômicos. Referem-se a possíveis obrigações que resultam de eventos passados
e cuja existência será confirmada a depender da ocorrência de eventos futuros
que são prováveis. Vários passivos contingentes poderão afetar de forma
significativa as contas públicas nos próximos anos e décadas. Os déficits
primários não relevam o tamanho do risco fiscal. São apenas a ponta, ainda que
avantajada, do iceberg.
Não há
estimativas dos passivos contingentes. Será uma missão importante para o
próximo ministro da Fazenda, qualquer que seja o cenário político, estimar este
passivo e divulgá-lo à sociedade. Dar transparência quanto ao tamanho do rombo
e, certamente, propor estratégias para enfrentá-lo.
A
sociedade e a classe política não parecem, nem de longe, compreender o tamanho
do desastre fiscal e suas consequências. Há quem acredite que a crise fiscal é
consequência da crise política e da Lava Jato, que teriam afetado a arrecadação
tributária. Não há plena compreensão que a crise fiscal é a causa principal da
crise econômica, e que estes eventos são agravantes. Muito menos se compreende
que o nó fiscal reduz o potencial de crescimento do país e dificulta, ou até
impede, o avanço na redução da desigualdade social.
Um
exemplo de passivo contingente é a previdência social. O país tem uma
previdência muito generosa vis-à-vis a experiência mundial e a capacidade de
financiamento do país. O envelhecimento da população agrava bastante o quadro,
pois até 2030 a razão entre idosos e pessoas em idade ativa poderá praticamente
dobrar atingindo quase 20% dos atuais 11%, segundo o Ministério da Fazenda. Não
há estimativas atualizadas para o passivo contingente da previdência social.
Estimativa do professor Hélio Zylberstajn em 2005 indicava algo equivalente a
2,5% do PIB para ser pago em 50 anos. É possível que este valor tenha subido à
luz do rápido envelhecimento da população e de benefícios criados nos últimos
anos, como o regime especial para o microempreendedor individual.
O rombo
nas estatais também poderá exigir socorro do Tesouro. Recentemente a União
injetou R$ 1 bilhão na Eletrobrás, via adiantamento para futuro aumento de
capital. Há previsão para mais R$ 6 bilhões para aumento de capital nas
distribuidoras do grupo. A empresa que foi particularmente prejudicada pela MP
579, que reduziu tarifas de energia, e perdeu o grau de investimento, sofre com
problemas de caixa. Analistas falam em necessidade de capitalização na casa de
R$ 10 bilhões.
A
Petrobras não fica atrás. Pelo contrário. A dívida líquida da empresa hoje está
em 5,3 vezes o Ebitda. Para trazer para um nível mais razoável, de 3,5, seria
necessário uma capitalização de R$ 140 bilhões, sendo que algo entre R$ 60 e 80
bilhões seriam de recursos do Tesouro, segundo analistas.
Existe incerteza
sobre a extensão de futuras perdas de crédito dos bancos públicos. Houve
incremento excessivo do crédito nos últimos anos, a ponto de a participação dos
bancos públicos no crédito total ser maior que dos bancos privados. O estoque
de crédito que era de 19% do PIB no início de 2011, agora está acima de 30% do
PIB. Além disso, a redução forçada de juros (taxas prefixadas) e a posterior
alta das taxas de captação por conta da elevação da Selic geraram redução de
margens. A conta chegou, e em má hora. A inadimplência não é elevada, mas é
crescente, bem como a pré-inadimplência (atraso entre 15 e 90 dias). Somadas
estão em quase 7% da carteira, ante 4,9% no início de 2014. As taxas não são
maiores porque tem ocorrido aumento da renegociação de dívida, em proporção
mais elevada do que de bancos privados, segundo o BC. Como agravante, os bancos
públicos estão mais expostos ao crédito a entes estatais.
É
verdade que as provisões dos bancos públicos crescem, mas não no mesmo ritmo da
inadimplência. O índice de cobertura de inadimplência está em queda. Vale notar
que no setor público a provisão estava, ao final de 2015, 56% maior do que a
inadimplência, contra 81% do setor privado.
Não há
problemas de solvência por ora. Os índices de capitalização e exigência regulatória
estão em níveis adequados. Mas há analistas que questionam o impacto do
cronograma de Basileia III, que se estende até 2019. Analistas falam em
necessidade de capitalização de R$ 30 bilhões para Caixa e de até R $20 bi para
o Banco do Brasil.
No caso
do BNDES, há um elemento extra de preocupação. Os empréstimos do Tesouro
equivalem a 8,8% do PIB (R$ 524 bi em dezembro de 2015) e os subsídios ao banco
vão custar ainda R$ 200 bilhões (a valor presente) ao erário até 2060 (entre
2008 e 2015, o custo foi de R$123 bilhões), quando programa vence, de acordo
com a STN.
A
renegociação de dívida dos Estados poderá gerar redução de pagamentos ao
Tesouro de R$ 45 bilhões entre 2016-18, sendo que algo como R$ 150 bilhões é o
valor dos empréstimos feitos por entes subnacionais com aval do TN.
A conta
parece não ter fim. Tem o rombo de R$ 16 bilhões do FAT, que poderá pressionar
o Orçamento de 2016; tem as medidas anunciadas recentemente pelo governo que
podem comprometer cerca de R$ 60 bilhões da liquidez do FGTS; tem as perdas
patrimoniais dos fundos de pensão das estatais em função de gestão equivocada;
e tem o uso de depósitos judiciais para pagar despesas de Estados.
Há ainda
decisões polêmicas do Judiciário, que inserem mais incerteza ao quadro fiscal.
Exemplo recente disso foi a liminar do STF ao governo de Santa Catarina que
permite que o estoque de sua dívida seja calculado por juros simples e não
juros compostos. Sendo a mudança estendida às dívidas de todos os Estados, o
custo poderá atingir R$ 313 bilhões, segundo o governo.
Na lista
de matérias que aguardam decisão no STF há o julgamento dos planos econômicos
(correção monetária nos depósitos de poupança nos planos de estabilização), que
impacta particularmente os bancos públicos, e o julgamento do uso de depósitos
judiciais para custeio de despesas públicas. São ao menos quatro leis sendo
questionadas. Algumas leis estaduais preveem a utilização desses recursos pelos
governos estaduais, incluindo depósitos de partes privadas.
Enfim, é
de suma importância a apuração desses custos. Os passivos contingentes são
elevados e podem comprometer gerações, enquanto isso, muito pouco sabemos sobre
a extensão desse risco fiscal. Algo já avançou nos últimos anos, com o TCU
determinando o cálculo dos subsídios ao BNDES. Mas há muito mais a ser feito
para resgatar a transparência e a disciplina fiscal.
Zeina Latif
Doutora
em economia pela Universidade de São Paulo (USP) e economista-chefe da XP
Investimentos. Trabalhou no Royal Bank of Scotland (RBS), ING, ABN-Amro Real e
HSBC. Escreve colunas semanais para o Broadcast da Agência Estado.
Instituto Millenium
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