segunda-feira, 27 de junho de 2016

Fora foro privilegiado

Mary Zaidan 

Com 105 condenações que somam mais de 1.140 anos de prisão, a Lava-Jato faz o Brasil acreditar que é possível trancafiar endinheirados e poderosos. Nas celas de Curitiba estão ex-ministros e tesoureiros do PT, empreiteiros, doleiros. Mas não consegue pegar políticos com mandato, detentores de foro especial por prerrogativa de função, vulgo foro privilegiado. Uma excrecência que beneficia mais de 22 mil pessoas – do presidente da República e seus ministros a governadores e prefeitos, além de senadores e deputados, magistrados – algo em torno de 16 mil. E até vereadores e delegados, em alguns tipos de crimes.

O foro especial não é uma invenção tupiniquim. Existe em vários lugares do mundo. Mas quase sempre limitado a um tipo de processo – normalmente correlato à função exercida pelo beneficiado, portanto administrativo. “O Brasil é um dos países que mais tem pessoas com prerrogativa de foro, só se compara à Venezuela e à Espanha, mas lá o foro é apenas para os crimes funcionais”, assegura o procurador da Lava-Jato Diogo Castor de Mattos.

Por aqui, o privilégio vale para tudo: do estelionato aos maus tratos, da roubalheira ao homicídio. A única exceção expressa no parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição de 1988 é ser pego com a boca na botija, em “flagrante de crime inafiançável”.

Sendo assim, ainda que o Supremo Tribunal Federal tivesse disposição e dias de 80 horas, seria preciso muito fôlego dos 11 ministros para dar conta de um contingente desse tamanho. Só pela agenda sufocada dos ministros, o réu ou investigado ganha tempo – muito tempo - quando o processo fica no âmbito do STF, desejo máximo da unanimidade dos advogados de defesa.

No caso da Lava-Jato, a quantidade de procedimentos do Supremo impressiona. De acordo com o hotsite criado pelo Ministério Público Federal para informar sobre a operação, em pouco mais de dois anos o STF já autorizou 139 investigações, instaurou 59 inquéritos, com 38 investigados.

Mas o fato é que, à exceção do ex-senador Delcídio do Amaral – preso em flagrante não por roubar, mas por interferir nas investigações –, nem julgamento nem punição chegaram aos políticos que detêm mandato.

Em 2007, ano em que o STF acatou a denúncia dos 40 envolvidos no Mensalão, o ministro Celso de Mello fez defesa contundente do fim do foro de elite. “Minha proposta é um pouco radical: a supressão pura e simples de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em matéria criminal”, disse ao jornal Folha de S. Paulo. Como a suspensão do privilégio depende de aprovação congressual, sugeriu que a Corte avançasse, pelo menos, em limitar a abrangência dos crimes.

Nada aconteceu. Nem no STF, nem no Congresso, onde dezenas de propostas sobre o tema tramitam, algumas delas há mais de uma década. Duas semanas atrás, no bojo da cobrança do MPF em torno da emenda popular sobre as 10 medidas contra a corrupção, uma delas, a PEC 470, de 2005, ameaçou sair da gaveta. Ficou só na ameaça.

Disse a ministra Cármen Lúcia: “No Brasil, a gente engole o elefante, mas engasga com a formiga, consegue fazer o impeachment (da presidente da República), mas não consegue tirar o vereador da cidade pequena que todo mundo sabe que roubou ou fez coisa errada”.

Isso é gravíssimo. Mas o problema é maior e ainda pior do que o expresso pela figura de linguagem da magistrada que assume a presidência do STF em setembro.

O Brasil não consegue desratizar nem dedetizar. Ao contrário, mantem privilégios que perpetuam a multiplicação de roedores e insetos, predadores que não só o engasgam, mas o intoxicam. Perto disso, engolir elefantes é fácil.

O Globo/Brasil Soberano e Livre


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