Um capitalismo mais humano?
As tentativas de
“humanizar” o modo de produção capitalista não são novas. Desde os socialistas
utópicos que, diante do aumento do desemprego e da miséria gerado com o avanço
da Revolução Industrial no século XIX, foram muitos os pensadores e ativistas sociais
que imaginavam uma possibilidade de sensibilizar os capitalistas com relação
aos problemas sociais causados pelo capitalismo. Na Alemanha atual, com o
aumento da taxa de lucros contrastando com o aumento do desemprego e da
pobreza, vários políticos estão indo para a ofensiva apelando para uma
“responsabilidade social e moral” das empresas. O apelo vai no sentido de que
empresas que apresentam um extraordinário crescimento na taxa de lucros devam
investir na geração de novos empregos. Mas, por que os capitalistas teriam
interesse em gerar empregos e até que ponto é possível exigir uma face “mais
humana” do capitalismo?
O caso mais polêmico de
concentração de capital na Alemanha é o da Deutsche Bank. A instituição
financeira aumentou seus lucros em 2004 na ordem de 50%, atingindo 4,1 bilhões
de euros e, mesmo assim, está disposta a demitir 6.400 trabalhadores, dos quais
1.900 estão na Alemanha, para criar 1.200 novos empregos em países com salários
mais baixos. Também a Siemens, uma das empresas que mais emprega na Alemanha,
aumentou seus lucros de 3,4 bilhões de euros em 2003 para 4,2 bilhões de euros
em 2004 e ameaça demitir trabalhadores. O aumento na taxa de lucro do conjunto
das empresas alemãs em 2004 foi na ordem de 10,7%, havendo casos extremos onde
o crescimento atingiu 70%, enquanto os salários brutos dos trabalhadores
alemães atingiram um crescimento de 0,1% no mesmo período. As exportações -
elemento historicamente central para medir a competitividade da economia do
país - cresceram extraordinariamente no último período, mas, mesmo assim, a
economia não cresce e o Estado se apresenta como “falido”. É evidente que
essa é uma situação que gera uma massiva indignação social e mesmo os mais
fiéis defensores da economia de “livre mercado” são obrigados a se pronunciar
criticamente.
Entretanto, nos termos da
lógica capitalista, não há nada de errado nessa acumulação, pois, enfim, as
altas taxas de lucro são vistas como pilares do crescimento econômico e, por
conseqüência, do progresso e da riqueza das nações. Segundo os “mandamentos” do
liberalismo, o próprio mercado regula a economia, de tal forma que os preços se
mantêm equilibrados e o montante acumulado pelas empresas é destinado ao
aprimoramento tecnológico, um fenômeno forçado pela concorrência entre as
empresas. Através do investimento em tecnologia, gerando as suas condições de
sobrevivência no “mercado competitivo”, as empresas “asseguram” seus
trabalhadores e geram novos empregos. Ao Estado cabe a função de estimular esse
processo, seja de forma indireta com infra-estrutura, pesquisa e qualificação
de trabalhadores ou, diretamente, através de isenções de impostos e crédito
facilitado. Mais importante ainda é que o Estado crie as condições ideais para
que não haja interferências no processo de “livre acumulação de capital”
através de leis e de um aparato repressivo que garantam a ordem e o
funcionamento da exploração do trabalho, isentando-se, no entanto, de qualquer
mecanismo regulativo inerente ao próprio mercado e às relações entre capital e
trabalho. Não cabe ao Estado uma intervenção na economia que seja contrária à
lógica acumulativa do capital. A privatização é vista como estimuladora da
concorrência e a geração de empregos resultante compensaria ao Estado o custo
de uma abdicação na arrecadação de impostos das empresas, já que os novos
empregados passariam a contribuir com impostos e deixariam de receber auxílio
social.
A política acima descrita
foi colocada em curso na Alemanha e as principais alternativas apresentadas
pelos maiores partidos, tanto no governo como na oposição, colocam-se no mesmo
sentido. A diferença fundamental entre o governo e a oposição é que a oposição
pretende aprofundar ainda mais esse rumo e se apresenta insatisfeita com os
“resquícios sociais” ainda presentes no interior da social democracia e do
Partido Verde. Diante da política econômica implementada, pela qual as grandes
empresas ao invés de pagar impostos estão recebendo auxílio financeiro do
Estado e os trabalhadores são os principais responsáveis pela arrecadação
pública, o crescente desemprego de ordem estrutural vem gerando preocupações de
ambos os lados. Mas, porque tanta surpresa e indignação com empresas que
simplesmente se adaptam à lógica capitalista em curso? E porque tanta
expectativa numa tomada de posição do Estado (para a maioria dos alemães, o
responsável pelo desemprego) se a sua função é se retirar da economia, ficando
no papel de “mero estimulador”?
Para entender o referido
dilema é importante situá-lo num contexto histórico. A Alemanha, assim como
muitos outros países europeus, manteve um Estado de bem-estar social no período
da guerra fria, onde havia uma necessidade ideológica de provar que o
capitalismo é mais eficiente que o socialismo, seja na sua dimensão econômica
como social. A ameaça do socialismo no leste europeu exigia a implementação de
uma política social democrata e, por vezes, keynesiana, de taxação de impostos
sobre o lucro das empresas capitalistas, visando uma redistribuição social na
forma de políticas públicas. Com o desmoronamento da União Soviética e o fim da
guerra fria, o socialismo deixou de ser uma ameaça e os capitalistas começaram
a reagir prontamente contrários à taxação de impostos com vistas à manutenção
de um Estado de bem-estar social, iniciando uma ofensiva do capital contra o
trabalho e inviabilizando a continuidade das políticas públicas da social
democracia. Mas, como toda ideologia, a social democracia deixou marcas e uma
das suas principais heranças é a crença de que seria possível implementar uma “soziale
Marktwirtschaft” (economia social de mercado). É essa idéia que continua
animando políticos e instituições que, ao negarem a possibilidade de uma
planificação da economia, apostam numa responsabilidade social dos capitalistas
ou, então, o que é mais absurdo, num espírito de “patriotismo dos empresários
alemães”. E isso num contexto de mundialização do capital, num país que lidera
esse processo na Europa e onde qualquer menção ao nacionalismo ou à pátria é
rapidamente caracterizada de nazista. O problema é que o capital não tem
pátria, na lógica do mercado não vingam valores como justiça e solidariedade e,
se há capitalistas que, por vezes, fazem generosas doações sociais, estas
estão, em sua maioria, prioritariamente vinculadas a fins publicitários e de
conservação de imagem de si e de suas empresas. A geração de empregos, na
lógica do mercado capitalista, significa integrar uma quantidade estritamente
necessária de força de trabalho no processo produtivo que produza mais valor do
que custa para se reproduzir e nisso não há nenhuma generosidade ou
responsabilidade social: ela constitui a base da exploração capitalista.
Mas, as manifestações de
políticos alemães - incluindo o próprio chanceler Gerhard Schröder - que reagiu
duramente com relação aos planos da Deutsche Bank - aparentemente indignados
com a lógica dos empresários no país, parecem surtir um certo efeito, qual
seja, o de manter a governabilidade (a paz social que permite o normal
funcionamento dos negócios capitalistas). Afinal, no imaginário social da população
de países líderes do capitalismo mundial, a lógica capitalista não poderia ser
vista como negativa até porque, para a maioria, ela é vista praticamente como
“o ar que se respira” ou como “a água do aquário, fora do qual nada existe”.
Propostas de boicote de empresas, discursos com forte apelo moralista e
denúncias de incompetência e corrupção passam a ser dirigidas contra os
precursores do progresso na lógica liberal. Enquanto isso, o desemprego no país
atinge a cifra recorde de 5,2 milhões e desta vez aumenta, inclusive, em
regiões industriais como o Ruhr; a proporção de pessoas que vivem abaixo da
linha de pobreza chega a 13,5%; a pobreza infantil, segundo o último relatório
da Unicef, atinge 1,5 milhões de crianças (10%) e a distância entre ricos e
pobres vem se acentuando progressivamente nos últimos anos: os 50% mais pobres
possuem menos de 4% da renda enquanto os 10% mais ricos possuem 49% do total da
riqueza. As principais propostas de enfrentamento dessa situação social
apresentadas até o momento, no entanto, seguem na direção de um aprofundamento
da política neoliberal: desmonte social do Estado (especialmente na assistência
social e no seguro desemprego), diminuição de impostos, aumento da jornada de
trabalho e fim da estabilidade no emprego. Os excluídos são responsabilizados
pela exclusão social e mesmo as políticas baseadas na inclusão, como a
educação, acenam para a possibilidade de uma concorrência por espaço social, ou
seja, a responsabilidade novamente recai sobre o indivíduo, já que não há
espaço para todos. Em torno de 7,5 milhões de alemães procuram emprego e as
empresas apresentaram a existência de apenas 275 mil novas vagas. O discurso
oficial e do senso comum, no entanto, continua baseado na idéia de que os
desempregados preferem deixar de trabalhar.
Para os empresários e
acionistas, que faturam no atual contexto, o problema do desemprego estaria na
conjuntura da economia, na burocracia do Estado e na falta de competitividade
dos salários alemães em relação aos de outros países. A conjuntura para uma
minoria de empresas, entretanto, é uma das melhores, as exportações cresceram,
o Estado foi diminuído e os trabalhadores estão se submetendo a trabalhar mais
tempo sem receber uma proporcional remuneração para isso. O desemprego, afinal
de contas, sequer é um problema para estes capitalistas, pois, havendo maior
oferta de trabalhadores, maior será a pressão para baixar salários. O
inconveniente somente surge se a situação gerar um ambiente de agitação social,
com possibilidade de colocar em risco os interesses capitalistas. Mas, antes
que isso aconteça, os capitalistas contam com um forte instrumento ideológico a
seu favor: eles são vistos como os que geram empregos (Arbeitsgeber) e,
portanto, com sua “responsabilidade social” podem incluir pessoas no mercado de
trabalho. Vistos como empreendedores dispostos a correr riscos e dinamizadores
da economia, sua ânsia por lucro sequer é caracterizada como algo negativo,
mas, pelo contrário, como satisfação de uma “necessidade” que todos, de uma
forma ou outra, ambicionariam: o crescimento econômico.
A
pretensa moralização dos empresários, exigindo uma responsabilidade social,
fomenta a ilusão de que estes poderiam ser diferentes se assim o quisessem,
como se já não estivessem perfeitamente integrados à lógica de acumulação do
capital, na qual só há espaço para a concorrência e a razão instrumental, com
vistas a uma acumulação ainda maior. O maior problema do discurso moralista
contra o capitalismo é que ele não gera consciência social e mistifica o
próprio processo de dominação. Para tornar os capitalistas mais “humanos” é
necessário desapropriá-los do mecanismo que os torna desumanos: a propriedade
privada do capital acumulado pelo trabalho humano de outros.
Doutorando em
Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha
Comentário do blog:
É um texto antigo porém oportuno, pois expressa aquilo que
venho aludindo nos comentários anteriores: os capitalistas não tomarão as dores dos empregados e dos desempregados;
querem apenas aumentar seus lucros, sempre. Logo, a decisão de mudar essa
situação tem que ser do Estado, mas não de um Estado ideológico, ou teocrático, retrógado ou imperialista, e sim de um Estado democrático.
Vejam que isso acontece até na Alemanha, onde por mais
puritanos que sejam – protestantismo – e o nível de vida da população é muito
superior ao brasileiro, o Estado, empresas e trabalhadores são três grupos em
confronto. No mais, os argumentos dos capitalistas expressos no texto, são
conhecidos e antigos.
No Brasil, na contra-mão da história, o Estado, a Justiça
Trabalhista e os sindicatos pelegos são simplesmente contra as empresas privadas em geral. Escapam dessa sanha estúpida
as empresas pertencentes a burguesia que faz parte da Corte. Essas empresas inclusive,
quando “quebram”, seus donos ficam mais ricos. Coisas do capitalismo
tupiniquim, onde os da Corte enriquecem sempre, mesmo nas épocas de crise.
Os que dominam o Estado desde sempre, 1808, sejam de direita
ou esquerda, ainda preferem empresas estatais, cabides de emprego dos cabos
eleitorais, parentes, amantes e amigos dos políticos, dos sindicalistas e dos
financiadores de campanha, sem contar os fornecedores “amigos”.
Não temos capitalismo nem socialismo; temos uma miscelânea
que confunde qualquer analista, que se traduz num crescimento econômico pífio, mas numa diferença crescente e
constante entre os que mais ganham e os de menor renda. Aliás, como visto
acima, neste aspecto, isso vem acontecendo também na Alemanha, e, em todo
mundo. Aumento constante das diferenças de renda. Esse é o ponto.
Só uma nova forma
de convivência da sociedade poderá alterar esse quadro. Karl Marx bem que tentou, mas sua proposta,
sob uma ótica holística, nasceu morta, tanto que hoje somente dois países, Coréia
do Norte e Cuba, falidos mas autoritários, ainda impõem às suas populações essa
aberração chamada marxismo.
E Cuba descobriu finalmente uma fonte de renda: exportar
escravos instruídos. Neofeudalismo dos irmãos Castro, para contrastar ao
neoliberalismo de Friedmann.
Capitalismo Social. Projeto completo: agosto de 2012.
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