Fonte: Blog do Alexandre Matias
O escritor Luiz
Ruffato, que destacou o Brasil
como um país paradoxal no seu discurso em Frankfurt.
O escritor
mineiro Luiz Ruffato foi
o primeiro brasileiro a discursar na Feira do Livro 2013, em Frankfurt, o maior
evento do mercado editorial mundial, que começou no dia 1º de outubro passado,
do qual o Brasil participou com louros de homenageado.
Luiz Ruffato não se fez
de rogado e emendou um discurso emocionante e inesquecível, arregalando os olhos
dos gringos para boa parte dos problemas que nos afligem no Brasil.
Um discurso sóbrio
e sem eufemismos, que expôs didaticamente – e com números – o rosário de
preconceitos, violências e abusos com os quais somos obrigados a conviver
diariamente, mas, ainda assim, com um tom otimista, apesar do peso das palavras
usadas.
Um discurso
parente da recente fala do presidente uruguaio José Mujica na Assembléia da
ONU.
E a velha guarda
chiou: Ziraldo, ao final, gritou: "Não tem que aplaudir! Que se mude do Brasil,
então " e Nélida Piñon, presidente da Academia Brasileira de Letras,
desconversou dizendo: "adoto a postura de não criticar o Brasil fora do
país, assim como não critico meus colegas ”.
Conversa fiada. É
importante que se saiba que, por baixo da touca tutti-frutti de país exótico
latino-americano, há um país muito complexo, cheio de camadas contraditórias e
mantido sob a rédea curta de alguns poucos que, à medida em que veem a
sociedade crescer, apertam o cabresto com medo das mudanças. E foi sobre isto
que Luiz Ruffato falou no seu discurso,
que segue abaixo e na íntegra, com leitura obrigatória para quem se interessa
minimamente pelo Brasil.
“O que significa
ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo
capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora?
Para mim, escrever
é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século
XXI, de escrever em português e de viver num território chamado Brasil. Fala-se
em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o
trânsito das pessoas. Proclamar a nossa singularidade é uma forma de resistir à
tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do
ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia
eu-outro. Porque, embora a afirmação da nossa subjetividade se verifique
através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido
de existir –, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade
se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do
Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do
outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a
égide do genocídio. Dos 4 milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje
cerca de 900.000, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos
de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se
sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira,
mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos
autóctones.
Esse eufemismo, no
entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é
mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas e
africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e
negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do
século XIX, 5 milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força
para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer
esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até
hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada
à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas,
advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas,
escritores...
Invisível, acuada
por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania –
moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade –, a maior parte dos
brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia:
75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas
46.000 pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos
apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não
pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…
Convivendo com uma
terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem
dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no
desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido
pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto.
Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos
ódios e o semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de
homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100.000 habitantes, o
que equivale a 37.000 pessoas mortas por ano, número 3 vezes maior que a média
mundial. E quem está mais exposto à violência não são os ricos que se
enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por
cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres
confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e
policiais corruptos.
Machistas,
ocupamos o vergonhoso 7º lugar entre os países com maior número de vítimas de
violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45.000 mulheres
assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120.000 denúncias de
maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às
mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre
subestimados.
Hipócritas, os
casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a
nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo,
que chega a reunir mais de 3 milhões de participantes, a Avenida Paulista, em
São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da
cidade.
E aqui tocamos num
ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira,
cerca de 550.000 pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34
anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de
ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de
manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no
ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população
permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais, ou
seja, 1 em cada 3 brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar
os textos mais simples.
A perpetuação da
ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que
permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado
editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares,
sendo que 35% deste total representam compras do governo federal destinadas a
alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo
pouco, em média menos de 4 títulos por ano, e no país inteiro há somente 1
livraria para cada 63.000 habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e
grandes cidades do interior. Mas temos avançado.
A maior vitória da
minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos,
pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de
direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica,
vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a
mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um
número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última
década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de
transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas
raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no
entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500
anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde,
cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que
a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser
exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a
necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de
300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de
transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos
acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país
paradoxal.
Ora o Brasil surge
como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval,
capoeira e futebol, ora como um lugar execrável, de violência urbana,
exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém
pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar
o lugar de protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura,
pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de
produção e consumo, ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de
matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de
competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a 7ª
economia do planeta. E permanecemos em 3º lugar entre os mais desiguais entre
todos…
Volto, então, à
pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do
mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim,
todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito,
talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma
lavadeira analfabeta e de um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro,
caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil,
torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive o meu destino modificado pelo
contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode
alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas,
então a literatura pode mudar a sociedade.
Em nossos tempos,
de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele
que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo
reconhecimento mútuo, mais do que nunca tem sido visto como o que nos ameaça.
Voltamos as costas ao outro, seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o
indígena, a mulher, o homossexual, como tentativa de nos preservarmos,
esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos
à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos.
Para me contrapor
a isso escrevo. Quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo.
Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o
destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a
felicidade na Terra. Aqui e agora.”
Fonte: Blog do Alexandre Matias
(Enviado pela amiga Sheila, de Brasília)
Comentário
do blog:
“E se a leitura de um livro pode alterar o
rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a
literatura pode mudar a sociedade.”
Só um adendo. Freqüento
bibliotecas públicas, onde já tive mais de uma discussão com as pessoas que lá
atendem e pelo seguinte motivo:
Multas
pelo atraso na devolução do livro.
“No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos
de 4 títulos por ano, ...”
A multa é de apenas R$ 1,00
por dia de atraso. Para quem tem dinheiro, não faz nenhuma diferença, mas para
quem não tem, faz muita diferença.
Quando vândalos, teoricamente
estudantes, depredam escolas, ameaçam fisicamente professores, quebram as
carteiras escolares, fica tudo por isso mesmo e com direito à choro da nossa
ministra Maria do Rosário. Tadinhos !!!
Quando os poucos alunos que
retiram livros nas bibliotecas públicas, caso atrasem alguns dias a devolução
do mesmo, são multados inapelavelmente pelos “educadores”, que não conhecem
então outra forma de “educar” , à não ser pelo castigo da multa.
No Brasil temos a cultura da
multa. Nossos “burrocratas” criam milhares de Leis tão somente para incluir em
cada uma um valor de multa e, depois das dificuldades criadas, VENDEM
facilidades. Vendem para os ricos, pois os pobres vão para a cadeia. Só não são
punidos aqueles que quebram tudo que encontrarem pela frente (Black blocs). Aí
nem a ABIN consegue “encontrá-los”, não obstante praticarem vandalismo com hora
e local previamente anunciados.
Capitalismo Social. Projeto
completo: agosto de 2012.
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