quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Botando o dedo nas feridas

Fonte:  Blog do Alexandre Matias

O escritor Luiz Ruffato, que destacou o Brasil como um país paradoxal no seu discurso em Frankfurt.

O escritor mineiro Luiz Ruffato foi o primeiro brasileiro a discursar na Feira do Livro 2013, em Frankfurt, o maior evento do mercado editorial mundial, que começou no dia 1º de outubro passado, do qual o Brasil participou com louros de homenageado.
Luiz Ruffato não se fez de rogado e emendou um discurso emocionante e inesquecível, arregalando os olhos dos gringos para boa parte dos problemas que nos afligem no Brasil.
Um discurso sóbrio e sem eufemismos, que expôs didaticamente – e com números – o rosário de preconceitos, violências e abusos com os quais somos obrigados a conviver diariamente, mas, ainda assim, com um tom otimista, apesar do peso das palavras usadas.
Um discurso parente da recente fala do presidente uruguaio José Mujica na Assembléia da ONU.
E a velha guarda chiou: Ziraldo, ao final, gritou: "Não tem que aplaudir! Que se mude do Brasil, então " e Nélida Piñon, presidente da Academia Brasileira de Letras, desconversou dizendo: "adoto a postura de não criticar o Brasil fora do país, assim como não critico meus colegas ”.
Conversa fiada. É importante que se saiba que, por baixo da touca tutti-frutti de país exótico latino-americano, há um país muito complexo, cheio de camadas contraditórias e mantido sob a rédea curta de alguns poucos que, à medida em que veem a sociedade crescer, apertam o cabresto com medo das mudanças. E foi sobre isto que Luiz Ruffato falou no seu discurso, que segue abaixo e na íntegra, com leitura obrigatória para quem se interessa minimamente pelo Brasil.
“O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora?
Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século XXI, de escrever em português e de viver num território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar a nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação da nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro – é a alteridade que nos confere o sentido de existir –, o outro é também aquele que pode nos aniquilar… E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos 4 milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900.000, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones.
Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas e africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, 5 milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores...
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania – moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade –, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46.000 pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém…
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios e o semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100.000 habitantes, o que equivale a 37.000 pessoas mortas por ano, número 3 vezes maior que a média mundial. E quem está mais exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso 7º lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45.000 mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120.000 denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de 3 milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550.000 pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais, ou seja, 1 em cada 3 brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras do governo federal destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de 4 títulos por ano, e no país inteiro há somente 1 livraria para cada 63.000 habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior. Mas temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol, ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo – amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo, ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a 7ª economia do planeta. E permanecemos em 3º lugar entre os mais desiguais entre todos…
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e de um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive o meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.
Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais do que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro, seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual, como tentativa de nos preservarmos, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos.
Para me contrapor a isso escrevo. Quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora.”
Fonte:  Blog do Alexandre Matias
(Enviado pela amiga Sheila, de Brasília)

Comentário do blog:

“E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.”

Só um adendo. Freqüento bibliotecas públicas, onde já tive mais de uma discussão com as pessoas que lá atendem e pelo seguinte motivo:

Multas pelo atraso na devolução do livro.

No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de 4 títulos por ano, ...”

A multa é de apenas R$ 1,00 por dia de atraso. Para quem tem dinheiro, não faz nenhuma diferença, mas para quem não tem, faz muita diferença.
Quando vândalos, teoricamente estudantes, depredam escolas, ameaçam fisicamente professores, quebram as carteiras escolares, fica tudo por isso mesmo e com direito à choro da nossa ministra Maria do Rosário. Tadinhos !!!
Quando os poucos alunos que retiram livros nas bibliotecas públicas, caso atrasem alguns dias a devolução do mesmo, são multados inapelavelmente pelos “educadores”, que não conhecem então outra forma de “educar” , à não ser pelo castigo da multa.

No Brasil temos a cultura da multa. Nossos “burrocratas” criam milhares de Leis tão somente para incluir em cada uma um valor de multa e, depois das dificuldades criadas, VENDEM facilidades. Vendem para os ricos, pois os pobres vão para a cadeia. Só não são punidos aqueles que quebram tudo que encontrarem pela frente (Black blocs). Aí nem a ABIN consegue “encontrá-los”, não obstante praticarem vandalismo com hora e local previamente anunciados.

Capitalismo Social.  Projeto completo:  agosto de 2012.




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