Por Milton Pires
No seu monumental
Dicionário de Filosofia, Nicola Abbagnano refere-se ao conceito de emergência
como sendo o termo empregado pelos anglo-saxões para indicar o caráter criativo
da evolução. Necessário é dizer que hoje é na chamada Teoria dos Sistemas
Complexos que se aplica e se estuda a “ideia de emergência” com mais
frequência. Foge completamente à capacidade de um simples médico, sem
conhecimento formal de filosofia, escrever sobre isso.
Menos ainda é minha
intenção nesse artigo discorrer sobre o que venha a ser considerado
“emergência” em Medicina. Essas linhas tem conteúdo político e histórico.
Preciso de uma outra definição sobre aquilo que pretendo abordar e, correndo o
grande risco de cair no “lugar comum”, digo que emergência é uma quebra, uma
determinada “ruptura” de uma espécie de “tecido”..Tecido esse que vou aqui,
deliberadamente, chamar de “normalidade”.
Acredito que quando
alguém termina a leitura daquele que permanece sendo um dos (senão o maior de
todos) maiores livros escritos sobre o Brasil, “Casa Grande e Senzala,” a
mensagem que fica é que nessa nação o Estado nasceu antes da sociedade.
Gilberto Freyre prova, na minha opinião, de maneira genial como uma base naval
da marinha portuguesa precisou “correr atrás” dos elementos culturais mínimos
para formar um novo país.
Pergunto aqui, e
esse é o sentido que quero dar ao ensaio, se não nasceu desse fato uma tradição
única da nossa história: a tradição de emergência. Será que o improviso, o
“jeitinho”..a “correria na última hora” não passaram a ser conceitos próprios?
Não tem eles uma independência e uma força tal que hoje são, em si mesmas, a
definição da nossa sociedade?
Há dois dias, as
regiões economicamente mais importantes do Brasil ficaram sem energia elétrica.
Uma reunião de “emergência” foi convocado para descobrir o que estava
acontecendo. Os estádios para Copa estão longe de ficarem prontos? Uma reunião
de “emergência” deve ser feita para esclarecer os motivos. Não é mais possível
que a grande imprensa esconda a entrevista do Dr.Romeu Tuma no Roda Viva? Os
editores e chefes de redação vão fazer definir, em caráter de “emergência” o
que deve ser feito? E o caos no metrô de SP? A presidente convocou um encontro
de “emergência” com o Ministro dos Transportes.
Seria muito fácil
escrever mais um artigo sobre a incapacidade de prever..sobre a indiferença com
o futuro ...sobre a irresponsabilidade da administração pública brasileira em
absolutamente “qualquer coisa.” Para evitar tal risco, retorno ao primeiro
parágrafo onde menciono aquele conceito que chamei de “normalidade.” Afirmo,
lançando mão de um raciocínio puramente dialético, que rompeu-se na sociedade
brasileira a estrutura desse tecido que defini. Digo ainda que, perdendo a noção daquilo que venha a ser essa “coisa” chamada normalidade, tudo
no Brasil passa, necessariamente, a ser emergência!
A emergência não é,
no Brasil, aquilo que em filosofia chamamos acidente; ela é substância...Ela
tornou-se parte da própria estrutura do pensamento e tem, em si mesma, a
capacidade de força geradora de valores morais que antes residiam num plano do
inconsciente coletivo envolvido naquilo que chamei de tecido, ou se quiserem
“estrutura”, da normalidade.
Não existe, quero
deixar claro, mudança de governo capaz de modificar isso que escrevi acima. Não
é partidária a causa do fenômeno que apresentei. A exploração política dessas
condições por aquilo que chamo “Partido-Religião” é outro tema. Seria
necessário escrever sobre “revolução e normalidade” para entender como a noção
de “emergência” presta-se perfeitamente ao nascimento de um regime totalitário.
Enquanto não surgem
no Brasil as condições plenas para o advento do terror político (a
desinformação, a violência do Estado e a burocracia) já é absolutamente certo
que ninguém mais sabe o que é “normalidade” - nasceu a Sociedade de Emergência.
Milton Simon Pires é Médico.
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário