José de Souza Martins
A notícia do fim da greve dos funcionários da USP veio com uma ressalva. A de que poderá ser retomada após o término das férias do calendário escolar. Para quem, como eu, cresceu dentro de uma fábrica e presenciou a greve dos 300 mil, em 1957, soa estranho que alguém pare para descansar da paralisação e a ela retornar após o merecido descanso.
As greves universitárias do período pós-ditatorial fluem no cenário adverso da peculiar impotência do paredismo de classe média. Não incidem sobre atividades produtivas. Nenhuma riqueza deixa de ser criada, ninguém lamentará que alunos deixem de estudar, funcionários deixem de funcionar, professores deixem de ensinar. As perdas são invisíveis. Quem se importará com os enormes danos que bibliotecas fechadas durante meses causam a estudantes de pós-graduação que tem teses para concluir e prazos rígidos para cumprir na Universidade e nas agências de fomento que lhes concedem bolsas de estudo? Prazos que a greve não modificará. Em nossa cultura alienada, que de vários modos valoriza a ignorância, estudar não é necessariamente um bem. Para muitos é um castigo. Concretamente, ninguém perde com paralisações em setores que não produzem diretamente mais-valia, para irmos ao vocabulário que dá sentido às verdadeiras greves, as fabris. Ao contrário, são setores que vivem à custa de uma parcela da distribuição da mais-valia extorquida dos trabalhadores do setor produtivo.
As três universidades públicas paulistas são mantidas às custas de uma proporção não pequena da arrecadação do ICMS, recolhido sempre que alguém compra alguma mercadoria de alguém que não seja propriamente bandido e sonegador e que, portanto, emite nota fiscal para pagar o devido imposto. Os favelados da favela de São Remo, encravada em terreno da USP, e os favelados da favela do Jaguaré, a quatro quarteirões da Cidade Universitária, são comantenedores da Universidade de São Paulo. Quando, a duras penas, compram um quilo de feijão ou de arroz ou um litro de leite para refeição da família e das crianças, pagam parte do ICMS que mantém a Universidade e assegura à pequena burguesia que a frequenta o ensino de primeiro mundo que seus filhos nunca terão. A USP é agora mesmo anunciada como a ocupante do 10º lugar, a Unicamp do 12º e a Unesp do 36º no ranking das Universidades do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Da Cidade Universitária não se vê a favela que se espalha pelo morro do Jaguaré, no entanto tão perto, e a miséria dos exíguos barracos de chão de terra batida, com a bacia da privada encravada num canto do cômodo único, com a mesa de caixote e a cama coletiva lado a lado. De lá, porém, se vê perfeitamente o próspero cenário dos muitos carros estacionados na USP, do vai e vem dos beneficiários do ensino público gratuito, democrático e laico, da alimentação subvencionada, do transporte gratuito, das bolsas de estudo e até das moradias gratuitas para muitos. Não se trata aqui de fazer a crítica fácil a quem se deixa manipular ou arrebanhar para causas que tem sua razão. Trata-se de tentar desvendar o nó que se esconde por trás das tensões que aos poucos vão consumindo a Universidade.
A facilidade com que alunos são mobilizados para causas que não são as suas, as dos funcionários ou as dos professores, apenas sugere as peculiaridades da crise de gerações entre nós nos dias atuais. Antes da ditadura, as novas gerações tinham uma causa e uma esperança, a da definição de um projeto de nação para todos, confirmação de uma história social em andamento. Na ditadura, o projeto foi truncado e reprimido, quem o defendia foi perseguido, quem insistia foi preso, cassado, banido ou morto. A crise de gerações ganhou outro contorno, o da vítima, o da generosa disponibilidade até para dar a vida em nome do sonho de uma pátria livre e soberana, justa e democrática. Com o fim da ditadura, o sonho aparentemente acabou, perdeu conteúdos, cedeu lugar aos arranjos e conveniências de poder, à busca de privilégios corporativos. As novas gerações já não têm uma causa.
Tudo já está pré-formatado para elas pelos outros, pelos que não tendo causa própria se apossam do direito dos jovens de terem sua própria causa, suas próprias perguntas e suas próprias respostas. No afã autoritário do mando e da imposição, cada um a seu modo, professores e funcionários usurparam o que é próprio das novas gerações, que é recriar o mundo segundo seu modo de vê-lo e seu modo de querê-lo. Hoje, os estudantes dos movimentos grevistas nas universidades públicas, os dos cadeiraços, das ofensas e ameaças aos professores, querem o mundo e a sociedade ultrapassados de uma geração vencida, a geração fracassada que levou o Brasil ao abismo do mensalão e do petrolão, da Operação Lava Jato, da corrupção descarada, do poder pelo poder. Não lhes ensinaram a ver suas próprias contradições nem a reconhecer sua missão no mundo. Apenas a gritar sem falar, calar sem ouvir, espernear sem caminhar.
O Estado de São Paulo/Brasil Soberano e Livre
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