sábado, 9 de julho de 2016

O trabalhador no Estado de todo povo

Carlos I. S. Azambuja

Nenhum diretor de fábrica, a não ser que seja louco, acolhe bem um aumento de salários. Desde que existe, o Estado Soviético, como empregador, tem agido lógica e conscientemente mantendo baixos os salários e aumentando a diferença salarial entre os administradores e os trabalhadores.

Outra coisa que os patrões menos desejam é ver uma constante mudança de operários, uma flutuação de trabalhadores que se movem, migram livremente, e possam abandonar seus empregos sempre que queiram. Numa sociedade de livre empreendimento, onde o trabalho é livre, a direção nada pode fazer contra isso.

Na Rússia, porém, onde o Estado é o único patrão, muito podia fazer com relação ao problema. E o fez. Instituiu o congelamento do trabalho. A diferença mais evidente entre os países do capitalismo privado e a Rússia Soviética, no que diz respeito ao trabalhador, é que, no primeiro, ele pode deixar o emprego se quiser ou não estiver satisfeito, mas na Rússia não, pois o Estado controla TODOS os empregos. A aplicação do Rendimento Vertical Stakhanovista é possível, e passa a ser mais fácil, se o trabalhador é preso ao seu emprego.

Se observarmos o Código Soviético do Trabalho, de 1922, encontraremos as mais progressistas garantias de liberdade do trabalhador: abandono do emprego, proibição do trabalho noturno para mulheres e jovens, segurança social, etc. Entretanto, quando os senhores da Rússia se encontraram na posição de capitalismo monopolista, possuindo toda força humana e todos os meios de produção, seus interesses de classemudaram, para usar uma trivial fraseologia marxista. Em outras palavras: onde começaram como pedestres, onde cada motorista lhes parecia um demônio, sem coração, agora, de repente, se encontram na direção e encaram pedestres como idiotas, que não sabem para onde vão. Agora são diretores...

Como administradores querem baixar não apenas os salários e os custos da produção, mas pensam também ser necessário ter o domínio absoluto do suprimento de força humana do que foi, outrora, a “mão de obra”. Daí teve início a exploração das massas e o congelamento dos empregos foi uma das medidas mais naturais de se esperar. Em todo o país colonial governado pelo poder imperial soviético, o padrão de exploração é o mesmo. Logo, o trabalho se tornou compulsório, sem que ninguém pensasse em revogar as cláusulas do Código do Trabalho, de 1922.
Por volta de 1930, o movimento de operários – mudança de empregos – estava no auge, por causa dos baixos salários e da inquietação dos trabalhadores. A princípio, o esforço para compelir os operários a ficarem numa mesma fábrica foi vago, como publica o Pravda:

- 1930, 3 Set: O Manifesto do Comitê Central do Partido diz que para combater a mudança de empregos devem ser tomadas medidas para assegurar a fixação dos operários à produção por uma reconstrução apropriada da opinião pública do proletariado; para conseguir dos operários que se comprometam com o público proletário a manterem-se nos empregos pelo menos por um certo espaço de tempo; pela aplicação de vários meios de pressão pública, incluindo o boicote aos desertores refratários da produção, e pela introdução de diferentes formas de bônus e de suprimentos com a finalidade de fazer com que os operários fiquem na fábrica.

- Três dias depois, em 1930, 6 de setembro: Um Decreto do Trabalho, do Comitê Central do Partido, definiu o abandono de emprego, ainda que de acordo como artigo 46 do Código do Trabalho, como “um termo arbitrário do contrato de emprego” e “equivalente a uma infração da disciplina do trabalho”. Uma semana depois, a força do decreto foi sentida, ao privar, os que abandonarem os empregos, dos benefícios sociais e de uma questão ainda mais importante: dos seus cartões de racionamento. Aconteceu que o Estado, como empregador, era o Partido que controlava o pão do trabalhador,

- 1930, 18 Set: O Comissariado Popular do Trabalho publicou um Decreto determinando que os empregados que “arbitrariamente abandonassem seus empregos” perderiam permanentemente o direito de reclamar pelos benefícios de desemprego. Para encontrar novo emprego deveriam esperar numa fila, atrás dos outros. “Flutuadores teimosos” mereciam ter seus cartões de alimento cancelados.       
- 1930, 15 Dez: A Comissão Executiva Central do Partido Comunista ordena que “os desorganizadores refratários da população devem ser barrados por 6 meses de qualquer emprego, seja na indústria,seja nos transportes”.

- 1931, 8 Jan: Um decreto do Comissariado do Povo introduziu o livro-de-salário como meio de fiscalizar os movimentos dos operários.

- 1932, 27 Dez: Um decreto estende-o até mais longe, obrigando cada um a carregar um passaporte interno que deve ser apresentado ao entrar em qualquer emprego.

As linhas gerais do mecanismo de controle da força humana estavam agora completas. Não existe nesta vida argumento mais eficiente do que o de alguém capaz de nos tirar o pão da boca. É básico. Esse é o motivo pelo qual os teóricos marxistas consideram o proletariado os elementos mais seguros, enquanto sempre desconfiam do pequeno lavrador que possui terras. O homem que tem um pedaço de terra e que pode dizer que ela lhe pertence tem uma certa dignidade e independência que o torna um mau instrumento para o comunismo. No caso do trabalhador empregado, porém, o senhor – neste caso o Estado – no-lo dá, e o senhor o pode retirar, e o trabalhador não tem do que se queixar. O fato de que estavam completando o Primeiro Plano Quinqüenal e construindo um “Estado proletário”, tornava duplamente perigoso ser considerado um sabotador ou “desorganizador da produção socialista”.

O trabalhador estava bem encaminhado para o cativeiro, mas ainda não acorrentado. Os grilhões foram forjados na “reforma do trabalho” de 1938, seguida pelo infame decreto de 16 de junho de 1940.

- 1938, 26 Dez: Este importante decreto, publicado conjuntamente com o Comitê Central do Partido, pelo Conselho dos Comissários do Povo e pelo Conselho dos Sindicatos, ordenava muitas coisas, algumas das quais concernentes ao congelamento dos empregos; (a) o Livro do Trabalho foi introduzido conforme o modelo nazista. Esse Livro era permanente e acompanhava o operário de fábrica em fábrica. Era guardado pela administração, e nele eram anotadas quaisquer infrações, tais como atrasos, etc., e o trabalhador não podia despedir-se e entrar para um novo emprego, sem recebê-lo de volta da administração; quer dizer, sem seu consentimento; (b) os vencimentos integrais por motivo de doença dependiam de 6 anos de trabalho em um só lugar, e eram reduzidos proporcionalmente de acordo com o tempo de permanência no emprego; (c) isso era ordenado conjuntamente com várias penalidades muito severas, conforme veremos a seguir.

- 1940, 26 Jun>: Este decreto infame marcou o ápice. Ele desfez a diferença entre trabalho livre e trabalho assalariado forçado. Será bom que se lembre que, nesse período, Stalin andava flertando com Hitler, enquanto ajudava a lubrificar e alimentar a máquina de guerra nazista para a sujeição da Europa. Os artigos 3, 4 e 5 desse Decreto fazem do abandono do emprego uma“ofensa criminosa”. O artigo 5 determina especificamente o processo criminal dos empregados que deixem as fábricas por seus próprios critérios, com sentenças de prisão de 2 a 4 meses. Juntamente com outras medidas disciplinares, o Livro de Trabalho praticamente preso por toda a vida. O trabalho, assim, deixou de ser um acordo contraído.

- A Competição Socialista e o Movimento Stakhanovista
Com o Livro de Trabalho permanente, o controle dos cartões de mantimentos e a mobilização do trabalhador em geral, exceto por transferência oficial, a situação era especialmente favorável à administração para tirar do trabalhador tudo quanto desejasse. Esse “tudo quanto” logo assumia proporções loucas e anormais sob o sistema de competição stakhanovista. Competição socialista entre as fábricas ou entre grupos da mesma fábrica para vencerem uns aos outros nos resultados, foi coisa introduzida logo no princípio do I Plano Quinquenal. Foi melhorando cada vez mais, até que as “brigadas de choque” stakhanovistas apareceram, em 1935.

Em poucas palavras, tratava-se de um plano baseado em taxas de bonificação que fazia com que o operário extraísse a sua última grama de energia, e se excedesse, procurando atingir um sempre crescente padrão de trabalho por tarefa. Transformou-se numa forma de ritmo ofegante para os mais jovens e a melhor a seguir para a média dos trabalhadores. Finalmente, atingiu o estágio de “um esforço louco”, além da capacidade humana de suportar. Naturalmente a “psicologia socialista” foi ajudando.

Um professor de psicologia marxista “provou” que a fadiga era altamente subjetiva. A norma foi estabelecida pelos operários mais sadios. No entanto, o trabalhador que conseguisse apenas atingir a norma era incapaz de alimentar suficientemente sua família. Sobre a pressão das taxas de bonificação, ele aumentava as horas de trabalho voluntariamente, para conseguir taxas alem da norma. Naturalmente, todos faziam a tentativa, mas logo que um número de tantos operários excedia a velha norma, ela era elevada. Isso era chamado de “revisão de normas”.

Os suplícios medievais eram um plano horizontal, com os prisioneiros estendidos no solo, cabeça e pés atados a barras. Dois carcereiros, um à cabeça e outro aos pés, giravam as barras para conseguirem o efeito de distensão. Por outro lado, o supliciado vertical assemelha-se a um homem com seus pés acorrentados a uma rocha na praia, procurando erguer-se contra a maré que vai aumentando continuamente, lutando para evitar ser afogado.

O resultado de tudo isso foi que a URSS foi capaz de mostrar ao mundo uma extraordinária rapidez na transformação industrial do país.
Assim foi que Karl Marx profetizou corretamente: “À proporção que o capital se acumula, a sorte dos trabalhadores, seja o seu pagamento alto ou baixo, tende a tornar-se pior. Acúmulo de fortuna num pólo é, ao mesmo tempo, acúmulo de miséria, labuta penosa, escravidão, ignorância, brutalidade, degradação mental, no pólo oposto”.
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O texto acima é um resumo do capítulo “O Grilhão -  Congelamento do Emprego”, do livro “O Nome Secreto”, de autoria de Lin Yutang, editado no Brasil em 1961 pela Editora Itatiaia Ltda.

Carlos I. S. Azambuja
Historiador.

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