Pertence ao senso comum a ideia segundo a qual um ensino intelectualmente honesto deve fomentar nos alunos a aptidão para o pensamento independente dos vícios e das ideologias, ao passo que a chamada “doutrinação” consiste na imposição, pelo professor, de uma doutrina na qual ele acredita e para a qual deseja ganhar a adesão dos alunos. Sem pretender esgotar o tema, pretendo, aqui, convidar os educadores a refletirem mais a fundo sobre a prática da doutrinação para que, assim, possam melhor contribuir para a formação daqueles cujo aprendizado foi a eles confiado.
No livro
“A Doutrinação”, escrito na década de 1970, o filósofo Olivier Reboul aponta
dois sentidos para essa prática: a doutrinação de tipo conformista, que
consiste no reforço de preconceitos já existentes na cabeça do educando, e a
doutrinação de tipo sectário, marcada pelo ataque frontal aos preconceitos
existentes na cabeça do educando e sua substituição por outros. Enquanto o
conformismo impede que o educando elabore grandes projetos, cresça como pessoa
e, assim, contribua para o bem social como um todo, o sectarismo está na raiz
dos movimentos de negação radical da realidade, que frequentemente resultam em
violência e grandes tragédias pessoais e/ou coletivas.
Talvez
um dos grandes desafios com que se defronta o educador seja diagnosticar, na
própria prática pedagógica, se seu ensino está ou não trilhando o caminho da
doutrinação. Para melhor nos situarmos, sugiro tomarmos como ponto de
referência alguns sintomas claros da doutrinação apontados por Reboul: fazer
propaganda do partido político A ou B, impor um tipo de conhecimento que
poderia ser compreendido (o famoso “porque sim”), lançar mão do argumento de
autoridade quando não é o único possível, elaborar um ensino com base em
preconceitos e, paralelamente, manipular fatos para que a doutrina ensinada
aparente ser a única possível são indícios claros de que se está a doutrinar e
não a ensinar.
Mesmo
que o educador, ao olhar para essa lista, creia firmemente que não pratica
nenhuma das condutas arroladas, ainda assim é possível que o faça sem saber.
Acrescenta-se a isso o fato de que todo educador possui – e é legítimo que
possua – suas crenças e convicções pessoais de ordem política e de valores
morais e que um conjunto de aulas interessantes e atraentes podem implicar na
adesão irrefletida do aluno ao ponto de vista do professor pela simples
associação da opinião com a pessoa. Como, então, se resguardar desse perigo?
A resposta
que proponho pode parecer um truísmo, mas, em tempos de recrudescimento
ideológico e partidário como os nossos, se faz necessária: o educador deve ter
a prática contínua e disciplinada do estudo, associada sempre à honestidade
intelectual de expor o maior número de pontos de vista que um assunto comporta
e as possíveis conseqüências que a adoção de cada um deles pode acarretar.
O
caminho mais fácil para ser um professor “popular” parece ser, cada vez mais, o
do sectarismo, sobretudo por este se revestir de uma aparência de coerência
entre o ensinar e o agir. Com efeito, o militante político e o fanático vivem
aquilo que ensinam com grande fervor, mas não cumprem sua função de educadores,
que consiste, sobretudo, em abrir as portas do pensamento responsável e nunca
em fechá-las.
Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com)
é advogado, professor de Filosofia e gestor do Núcleo de História do IFE
Campinas.
Escola Sem Partido
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