Demétrio Magnoli
O socialista Salvador Allende
governou o Chile, em meio a uma crise permanente, por menos de três anos, entre
1970 e 1973, até o golpe militar de Pinochet. Os intelectuais de esquerda
chilenos dividiram-se, alguns optando pela crítica ao que interpretavam como
excessiva moderação do presidente, outros reprimindo suas convicções para
cerrar fileiras com o governo.
Sob o lema “este es un gobierno de
mierda, pero es el mío”, os segundos alertavam que a crítica dos primeiros
contribuiria para o triunfo final da direita golpista. No Brasil, há anos, a
“síndrome de Allende” circula nas rodas dos intelectuais de esquerda como
justificativa para a cega adesão ao lulopetismo. Nada –nem mesmo os desastres
econômicos e éticos à vista de todos– provoca mais danos à esquerda brasileira
que esse recuo dos intelectuais à trincheira da militância.
No Chile da época, os supostos
pecados de Allende situavam-se na esfera das opções de política econômica e
social. No Brasil do lulopetismo, outra coisa está em jogo: a captura do Estado
pela aliança criminosa entre uma elite política corrompida e a parcela do alto
empresariado que faz fortunas às custas de contratos com o poder público. O
“gobierno de mierda”, isto é, o bloco político liderado pelo PT, patrocinou a
santa aliança desvendada pela Lava Jato.
Mesmo assim, praticamente não se ouve
a crítica dos intelectuais de esquerda. A prisão de João Santana, acompanhada
de novas evidências contundentes do assalto aos recursos públicos, não os
comove. Há algo de trágico na paisagem seca.
Uma década atrás, na hora do
“mensalão”, deputados petistas choraram em plenário enquanto Duda Mendonça
fazia uma confissão parcial, mas devastadora. Naqueles dias, Tarso Genro falou
numa “refundação” de seu partido e o próprio Lula, encurralado, esboçou um
ambíguo pedido de desculpas. Contudo, a hipótese de um diálogo franco do PT
consigo mesmo e com a sociedade fechou-se pela intervenção dos mais estrelados
intelectuais de esquerda. No estúdio de Wanderley Guilherme dos Santos,
gravou-se o samba-canção da “conspiração das elites” contra Lula. No de
Marilena Chaui, a ária de um “golpe da mídia” contra o “governo popular”.
Outros, quase todos, seguiram as partituras recebidas. Nunca mais derramou-se
uma lágrima. O governo “es el mío” –mesmo se, de fato, nas frias planilhas
contábeis, é de Marcelo Odebrecht.
No Chile da Guerra Fria, a sombra
perene do golpe oferecia um argumento ponderável, ainda que discutível, para o
chamado à ordem unida. No Brasil atual, a invenção de um Pinochet de cartolina
sustenta a “síndrome de Allende”. Daí que, desde o “mensalão”, num país em que
as principais lideranças de oposição pertencem a partidos de centro ou
centro-esquerda, a linguagem petista encheu-se de referências oníricas a uma
“direita golpista” e ao perigo representado pelos “fascistas”.
As narrativas têm sua própria lógica.
A dupla conspiração, das “elites” e da “mídia”, evocada junto com a eclosão do
“mensalão”, foi expandida até abranger também o Ministério Público e o
Judiciário.
Os procuradores e os juízes, de
diferentes instâncias, participariam
de uma vasta trama de classe
destinada a perseguir Lula, Dilma e o PT. As partituras escritas na emergência
de 2005 evoluíram como uma acusação geral contra as instituições da democracia
brasileira.
De tanto repetir o álibi formulado
pelos intelectuais de esquerda, o PT passou a acreditar nele. Imerso na
“síndrome de Allende”, o partido celebra hoje 36 anos construindo em torno de
si mesmo uma muralha guarnecida por baluartes e canhões. Acantonados na sua
imaginária fortaleza sitiada, os petistas recusam-se a conversar com os
“infiéis” e, também, a falar a sério no espaço restrito aos “fiéis”.
Condenaram-se a entoar hinos marciais
–e aos brados, para que nada mais seja ouvido.
Folha de S.Paulo
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