terça-feira, 22 de março de 2016

ONDE ESTÃO AS LIDERANÇAS POLÍTICAS?

EIITI SATO

Nesta nova onda de protestos contra o governo Dilma e contra a corrupção, milhões de pessoas foram às ruas, vestidas de verde e amarelo,  dizer que não querem mais este governo e tudo aquilo que esse governo e seu  partido representam. A pergunta é: por que as lideranças dos partidos de  oposição não se fizeram presentes nos protestos?

Na realidade, algumas dessas lideranças compareceram, mas foram suficientemente discretas para não gerar reação indignada entre os manifestantes. Em toda parte, protestos contra o governo são conduzidos pelos partidos de oposição enquanto, no Brasil, os partidos de oposição são rejeitados de forma quase tão veemente quanto o PT, que está no poder.

Embora esse comportamento possa ser um sintoma de nosso tempo, no qual há uma onda de rejeição pela classe política,  no caso do Brasil, as reações recentes podem também ser um sintoma de uma  séria “doença” do sistema político brasileiro: a falta de lideranças autênticas e confiáveis.

Algumas propostas, como a instauração de um regime  parlamentarista, têm surgido, mas tais propostas estão muito longe da questão  central que é o fato de que há no Brasil um enorme e generalizado desencanto  com a política e, mais exatamente, com os políticos. Assim, o problema não é  encontrar fórmulas para facilitar a substituição de governantes, a questão é saber onde estão as lideranças políticas capazes de inspirar credibilidade a ponto de serem capazes de conduzir a nação em tempos difíceis.

Trata-se de um problema sério pois, no limite, as manifestações públicas sem lideranças pode levar à repetição do que aconteceu com a “primavera árabe” que, na maioria dos países em que ocorreu, transformou-se em lúgubres e até trágicos  “outonos árabes”, diante da falta de lideranças que pudessem realizar as  mudanças e a transição de governo em um processo pacífico e construtivo. Em  síntese, a pergunta é: como o Brasil se tornou uma nação sem lideranças  políticas? Uma segunda pergunta, decorrente da primeira, seria: como reverter  essa situação, isto é, como trazer para a política verdadeiros representantes da  elite econômica, profissional, intelectual e artística?

O indivíduo e o cidadão
Uma forma de abordar o problema é retornar aos antigos.  Etimologicamente o termo idiota provém da palavra grega "idiótes" que, na acepção original, designava literalmente o indivíduo privado, alguém que se dedicava apenas aos assuntos de seu interesse privado, diferentemente docidadão que ocupava algum cargo público ou participava dos assuntos que interessavam à polis, isto é aos assuntos públicos. As biografias de  personalidades como Sócrates ou dos grandes dramaturgos da Grécia Clássica  relatam que esses personagens participaram de batalhas decisivas de seu  tempo integrando os exércitos de Atenas, isto sem falar na atuação nos debates  sobre os destinos da cidade.

Em outras palavras, esses notáveis personagens  não eram “idiótes”, isto é, ao mesmo tempo que tinham suas ocupações  privadas, nas quais colocavam seu talento, seu conhecimento e suas  habilidades, exerciam também seu papel de cidadãos comprometidos com a  ordem pública. Passando para uma época mais próxima de nosso tempo, conta- se que George Washington, apesar de toda a sua notável trajetória de estadista,  sempre julgou como uma de suas contribuições mais importantes suas  iniciativas como fazendeiro e agricultor; costumava acompanhar as notícias  sobre as técnicas de cultivo e de fertilização mais avançadas e as difundia a  outros fazendeiros, a partir de Mount Vernon. Outro exemplo desse tempo foi  Benjamin Franklin, com suas preocupações com a ciência e a tecnologia.  Participava de sociedades científicas de seu tempo e foi o inventor do pára-raios  ao mesmo tempo em que participava ativamente da política e da construção dos  fundamentos do sistema político americano.   

No Brasil, enquanto o termo “idiótes” evoluiu de forma depreciativa para caracterizar uma pessoa ignorante, simples, e até estúpido, o sentido original  simplesmente desapareceu, uma vez que a elite brasileira virtualmente  abandonou a política, e a política passou a ser um modo de vida. Não se trata  aqui de argumentar que a política deveria ser conduzida apenas pela elite social  e que as portas para o ingresso na vida política deveriam estar reservadas  apenas para aqueles que fizessem parte da elite econômica, empresarial,  profissional e intelectual.

 A pergunta a ser feita é: porque destacados juristas,  eminentes professores, e outros profissionais com notável trajetória não se  candidatam a uma cadeira no Congresso? O que chama a atenção é o fato de  que, em um país onde há uma elite centenária e amplamente reconhecida nos  negócios, nas ciências, nas artes e nas profissões, essa elite simplesmente  abandonou sua participação e suas obrigações em relação à condução dos negócios públicos. Embora existam alguns, os ocupantes de cargos públicos oriundos dessa elite são muito poucos e acabam diluídos na grande massa de  políticos cuja motivação se encontra bem longe da retórica usual das  campanhas eleitorais quando são feitas generosas promessas de “promoção do bem comum”.

A quantidade de políticos que enfrentam processos judiciais por corrupção é absurdamente elevada e os documentos e testemunhos formam um quadro de  provas bastante robustas dos casos de políticos que se valem de seus cargos  para extrair ilicitamente benefícios para si, para sua família e para seu grupo.  Nos casos de indiciamento pela Justiça, também são notáveis os casos de uso –  ou de tentativa de uso – de prerrogativas do cargo para retardar o andamento  dos processos e, se possível, para fugir das punições previstas na lei. Na atual  conjuntura, alguém como o ex-presidente Lula ocupar um ministério apenas com  a finalidade de procurar um foro judicial mais amistoso para seus problemas com a Justiça lança ainda mais descrédito sobre a classe política.

Por que a elite brasileira abandonou a política?
A pergunta inevitável é: por que a elite brasileira virtualmente abandonou a política? Nos fins do século XIX, o diplomata e pensador James Bryce, ao analisar o sistema político americano, dedicou um capítulo à discussão da pergunta “por que os melhores não vão para a política”? Uma das explicações (entre outras) apresentadas por Bryce seria o fato de que, contrariamente ao  que ocorria na sua velha Inglaterra, nos Estados Unidos as pessoas de elevada  importância social não eram obrigadas a participar da vida pública. Com efeito,  na Inglaterra daqueles dias, os “lords” eram membros da Câmara dos Lords e  virtualmente compelidos a se tornarem membros da Câmara dos Comuns e,  assim, ocupar cargos públicos era quase uma decorrência natural.

No Brasil, a transformação das instituições políticas em meio de vida para aventureiros de todo tipo, sob a presunção de serem “democráticas”, efetivamente tornou a vida política, sobretudo o processo eleitoral, bem pouco  atraente para aqueles que possuem talento, qualificação e meios materiais para  construir uma trajetória de sucesso econômico, profissional, intelectual ou artístico. Nas grandes democracias o voto do eleitor é importante, mas é apenas parte de um processo mais longo e mais complicado.

No Brasil, o voto popular tornou-se praticamente a única peça ou, pelo menos, a peça pivotal em torno da qual a entrada ou a saída da vida política é definida. O processo eleitoral tal como configurado no Brasil não apenas exige uma incômoda exposição pública mas, com freqüência, exige também o emprego de meios que podem colocar seus códigos morais em questão, tais como obter os fundos necessários à sua campanha por meios ilícitos ou agradar uma massa de eleitores com promessas que, de antemão, sabe que não terá condições de cumprir.

Alguém com uma  formação kantiana, não aceitaria prometer o que não pretende, ou que sabe que  não terá condições para cumprir. O candidato sem qualquer formação, no entanto, não terá grandes dificuldades de resolver esse dilema; na realidade,  para ele tal dilema simplesmente não existe. Dessa forma, a luta torna-se  desigual e o kantiano, que tem uma base moral sólida, que possui talentos e  habilidades pessoais e que, portanto, tem outras opções fora da política, tenderá  a optar por sua carreira profissional, por seus negócios, ou por qualquer outra atividade para a qual tem preparo e habilidades, sem que seja necessário  submeter-se às demandas pouco atraentes da atividade política.

O fato é que a luta por posições de poder político, apenas tendo vista as prerrogativas e  privilégios e sobretudo as oportunidades de obtenção de vantagens pessoais  tem feito da política um abrigo para todo tipo de indivíduos, menos para aqueles  que lá deveriam estar por seu senso de responsabilidade em relação ao bem público e, como se dizia antigamente, portadores de ilibada reputação moral.

A redenção pela “Lava-Jato”?
Nesse quadro, o momento político pelo qual atravessa o Brasil pode ser  bastante promissor. O indiciamento de dezenas de personalidades da política  (eleitos ou nomeados) e a conseqüente punição, podem restaurar padrões de comportamento moral que a política brasileira virtualmente abandonou.

Com  efeito, as investigações e os processos judiciais instaurados na esteira da  “Operação Lava-jato” e de outras operações de investigação em curso sobre  autoridades e detentores de mandatos correntes ou de administrações  passadas, têm posto em cheque a atuação de políticos e de empresários  poderosos que, de forma inédita, podem vir a ser efetivamente condenados e  punidos. Caso esse cenário se confirme, é possível que, no médio prazo, venha a produzir um efeito significativo de saneamento da atividade política, trazendo  de volta para o mundo da política brasileira, a boa elite feita de pessoas que vivem de acordo com códigos morais e que valorizam o desempenho e o trabalho honesto e bem feito.

Obviamente, o termo elite aqui empregado não se  refere a classes sociais mais abastadas ou a segmentos profissionais melhor situados na escala social. Na realidade existe elite em toda parte. Em todas as regiões e em todas as camadas da sociedade há aqueles que se destacam por  seu talento e por suas virtudes. Escritores como Vitor Hugo e Charles Dickens  jamais afirmaram que as pessoas de valor estão no meio da pobreza. Em suas  obras, os personagens mostram dramaticamente em suas trajetórias que, mesmo em ambientes de miséria abjeta, é possível encontrar a grandeza humana.  Lincoln era originário de uma família pobre, cortou lenha e trabalhou  duro em atividades para garantir sua própria sobrevivência. Não estudou Direito  em Harvard ou em Yale. Foi um verdadeiro autodidata e com muito custo, e com grande esforço pessoal, tornou-se um homem culto. Um político sem cultura jamais produziria uma oração como o Discurso de Gettysburg, ou uma peça de oratória política notável como o Discurso da Casa Dividida. Como escreveu o  poeta Carl Sandburg, referindo-se à oração de Gettysburg, “os mais profundos  enigmas da democracia emergiam de seu discurso. Tinham o toque de sonho de  feitos vastos e furiosos, epitomizados para que qualquer adivinho pudesse ler ali  no futuro. Suas cadências ecoavam a antiga canção de que onde há liberdade é algo por que vale a pena que os homens morram ... Suas frases, finas, depuradas e polidas exteriormente, eram retorcidas e rudes como os enigmas da experiência norte-americana.” Decididamente, um político inculto jamais  poderia produzir algo parecido.

A “Operação Lava-Jato” já serviu para introduzir na jurisprudência brasileira o cumprimento da pena após a condenação em segunda instância, reduzindo substancialmente a possibilidade da impunidade. Talvez o próximo passo seja mudar o sentido do termo “foro privilegiado”, fazendo com que os ocupantes de cargos e funções políticas tenham o privilégio de serem julgados  em regime de urgência. Dessa forma, o julgamento de deslizes, faltas e desonestidade de políticos não seria mais protelado a ponto de o político – apesar de haver processo judicial com provas robustas de cometimento de falta grave – poder cumprir todo um mandato e ainda estar em condições de candidatar-se a novos cargos públicos. Talvez algumas medidas como essa possam ajudar a trazer de volta para a política a boa elite que o Brasil sempre teve.

Eiiti Sato
Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

Diário do Poder


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