EIITI SATO
Nesta nova onda de protestos contra
o governo Dilma e contra a corrupção, milhões de pessoas foram às ruas,
vestidas de verde e amarelo, dizer que não querem mais este governo e
tudo aquilo que esse governo e seu partido representam. A pergunta é: por
que as lideranças dos partidos de oposição não se fizeram presentes nos
protestos?
Na realidade, algumas dessas
lideranças compareceram, mas foram suficientemente discretas para não gerar
reação indignada entre os manifestantes. Em toda parte, protestos contra o
governo são conduzidos pelos partidos de oposição enquanto, no Brasil, os
partidos de oposição são rejeitados de forma quase tão veemente quanto o PT,
que está no poder.
Embora esse comportamento possa ser
um sintoma de nosso tempo, no qual há uma onda de rejeição pela classe
política, no caso do Brasil, as reações recentes podem também ser um
sintoma de uma séria “doença” do sistema político brasileiro: a falta de
lideranças autênticas e confiáveis.
Algumas propostas, como a
instauração de um regime parlamentarista, têm surgido, mas tais propostas
estão muito longe da questão central que é o fato de que há no Brasil um
enorme e generalizado desencanto com a política e, mais exatamente, com
os políticos. Assim, o problema não é encontrar fórmulas para facilitar a
substituição de governantes, a questão é saber onde estão as lideranças
políticas capazes de inspirar credibilidade a ponto de serem capazes de
conduzir a nação em tempos difíceis.
Trata-se de um problema sério pois,
no limite, as manifestações públicas sem lideranças pode levar à repetição do
que aconteceu com a “primavera árabe” que, na maioria dos países em que
ocorreu, transformou-se em lúgubres e até trágicos “outonos árabes”,
diante da falta de lideranças que pudessem realizar as mudanças e a
transição de governo em um processo pacífico e construtivo. Em síntese, a
pergunta é: como o Brasil se tornou uma nação sem lideranças políticas?
Uma segunda pergunta, decorrente da primeira, seria: como reverter essa
situação, isto é, como trazer para a
política verdadeiros representantes da elite econômica, profissional,
intelectual e artística?
O indivíduo e o cidadão
Uma forma de abordar o problema é
retornar aos antigos. Etimologicamente o termo idiota provém da palavra
grega "idiótes" que, na acepção original, designava literalmente
o indivíduo privado, alguém que se dedicava apenas aos assuntos de seu
interesse privado, diferentemente docidadão que ocupava algum cargo público ou
participava dos assuntos que interessavam à polis, isto é aos assuntos
públicos. As biografias de personalidades como Sócrates ou dos grandes
dramaturgos da Grécia Clássica relatam que esses personagens participaram
de batalhas decisivas de seu tempo integrando os exércitos de Atenas,
isto sem falar na atuação nos debates sobre os destinos da cidade.
Em outras palavras, esses notáveis
personagens não eram “idiótes”, isto é, ao mesmo tempo que tinham suas
ocupações privadas, nas quais colocavam seu talento, seu conhecimento e
suas habilidades, exerciam também seu papel de cidadãos comprometidos com
a ordem pública. Passando para uma época mais próxima de nosso tempo, conta-
se que George Washington, apesar de toda a sua notável trajetória de
estadista, sempre julgou como uma de suas contribuições mais importantes
suas iniciativas como fazendeiro e agricultor; costumava acompanhar as
notícias sobre as técnicas de cultivo e de fertilização mais avançadas e
as difundia a outros fazendeiros, a partir de Mount Vernon. Outro exemplo
desse tempo foi Benjamin Franklin, com suas preocupações com a ciência e
a tecnologia. Participava de sociedades científicas de seu tempo e foi o
inventor do pára-raios ao mesmo tempo em que participava ativamente da
política e da construção dos fundamentos do sistema político
americano.
No Brasil, enquanto o termo
“idiótes” evoluiu de forma depreciativa para caracterizar uma pessoa ignorante,
simples, e até estúpido, o sentido original simplesmente desapareceu, uma
vez que a elite brasileira virtualmente abandonou a política, e a
política passou a ser um modo de vida. Não se trata aqui de argumentar
que a política deveria ser conduzida apenas pela elite social e que as
portas para o ingresso na vida política deveriam estar reservadas apenas
para aqueles que fizessem parte da elite econômica, empresarial,
profissional e intelectual.
A pergunta a ser feita é: porque destacados juristas, eminentes
professores, e outros profissionais com notável trajetória não se
candidatam a uma cadeira no Congresso? O que chama a atenção é o fato
de que, em um país onde há uma elite centenária e amplamente reconhecida
nos negócios, nas ciências, nas artes e nas profissões, essa elite
simplesmente abandonou sua participação e suas obrigações em relação à
condução dos negócios públicos. Embora existam alguns, os ocupantes de cargos
públicos oriundos dessa elite são muito poucos e acabam diluídos na grande
massa de políticos cuja motivação se encontra bem longe da retórica usual
das campanhas eleitorais quando são feitas generosas promessas de
“promoção do bem comum”.
A quantidade de políticos que
enfrentam processos judiciais por corrupção é absurdamente elevada e os
documentos e testemunhos formam um quadro de provas bastante robustas dos
casos de políticos que se valem de seus cargos para extrair ilicitamente
benefícios para si, para sua família e para seu grupo. Nos casos de
indiciamento pela Justiça, também são notáveis os casos de uso – ou de
tentativa de uso – de prerrogativas do cargo para retardar o andamento
dos processos e, se possível, para fugir das punições previstas na lei. Na
atual conjuntura, alguém como o ex-presidente Lula ocupar um ministério
apenas com a finalidade de procurar um foro judicial mais amistoso para
seus problemas com a Justiça lança ainda mais descrédito sobre a classe
política.
Por que a elite brasileira abandonou
a política?
A pergunta inevitável é: por que a
elite brasileira virtualmente abandonou a política? Nos fins do século XIX, o
diplomata e pensador James Bryce, ao analisar o sistema político
americano, dedicou um capítulo à discussão da pergunta “por que os melhores
não vão para a política”? Uma das explicações (entre outras) apresentadas por
Bryce seria o fato de que, contrariamente ao que ocorria na sua velha
Inglaterra, nos Estados Unidos as pessoas de elevada importância social
não eram obrigadas a participar da vida pública. Com efeito, na
Inglaterra daqueles dias, os “lords” eram membros da Câmara dos Lords e
virtualmente compelidos a se tornarem membros da Câmara dos Comuns e,
assim, ocupar cargos públicos era quase uma decorrência natural.
No Brasil, a transformação das
instituições políticas em meio de vida para aventureiros de todo tipo, sob
a presunção de serem “democráticas”, efetivamente tornou a vida política,
sobretudo o processo eleitoral, bem pouco atraente para aqueles que
possuem talento, qualificação e meios materiais para construir uma
trajetória de sucesso econômico, profissional, intelectual ou artístico. Nas
grandes democracias o voto do eleitor é importante, mas é apenas parte de um
processo mais longo e mais complicado.
No Brasil, o voto popular tornou-se praticamente
a única peça ou, pelo menos, a peça pivotal em torno da qual a entrada ou a
saída da vida política é definida. O processo eleitoral tal como configurado no
Brasil não apenas exige uma incômoda exposição pública mas, com freqüência, exige também o emprego de meios que podem
colocar seus códigos morais em questão, tais como obter os fundos necessários à
sua campanha por meios ilícitos ou agradar uma massa de eleitores com promessas
que, de antemão, sabe que não terá condições de cumprir.
Alguém com uma formação
kantiana, não aceitaria prometer o que não pretende, ou que sabe que não
terá condições para cumprir. O candidato sem qualquer formação, no entanto, não
terá grandes dificuldades de resolver esse dilema; na realidade, para ele
tal dilema simplesmente não existe. Dessa forma, a luta torna-se desigual
e o kantiano, que tem uma base moral sólida, que possui talentos e
habilidades pessoais e que, portanto, tem outras opções fora da política,
tenderá a optar por sua carreira profissional, por seus negócios, ou por
qualquer outra atividade para a qual tem preparo e habilidades, sem que seja
necessário submeter-se às demandas pouco atraentes da atividade política.
O fato é que a luta por posições de
poder político, apenas tendo vista as prerrogativas e privilégios e
sobretudo as oportunidades de obtenção de vantagens pessoais tem feito da
política um abrigo para todo tipo de indivíduos, menos para aqueles que
lá deveriam estar por seu senso de responsabilidade em relação ao bem público e,
como se dizia antigamente, portadores de ilibada reputação moral.
A redenção pela “Lava-Jato”?
Nesse quadro, o momento político
pelo qual atravessa o Brasil pode ser bastante promissor. O indiciamento
de dezenas de personalidades da política (eleitos ou nomeados) e a
conseqüente punição, podem restaurar padrões de comportamento moral que a
política brasileira virtualmente abandonou.
Com efeito, as investigações e
os processos judiciais instaurados na esteira da “Operação Lava-jato” e
de outras operações de investigação em curso sobre autoridades e
detentores de mandatos correntes ou de administrações passadas, têm posto
em cheque a atuação de políticos e de empresários poderosos que, de forma
inédita, podem vir a ser efetivamente condenados e punidos. Caso esse
cenário se confirme, é possível que, no médio prazo, venha a produzir um efeito
significativo de saneamento da atividade política, trazendo de volta para o mundo da política brasileira, a boa
elite feita de pessoas que vivem de acordo com códigos morais e que valorizam o
desempenho e o trabalho honesto e bem feito.
Obviamente, o termo elite aqui
empregado não se refere a classes sociais mais abastadas ou a segmentos
profissionais melhor situados na escala social. Na realidade existe elite em
toda parte. Em todas as regiões e em
todas as camadas da sociedade há aqueles que se destacam por seu talento
e por suas virtudes. Escritores como Vitor Hugo e Charles Dickens
jamais afirmaram que as pessoas de valor estão no meio da pobreza. Em suas
obras, os personagens mostram dramaticamente em suas trajetórias que, mesmo em
ambientes de miséria abjeta, é possível encontrar a grandeza humana. Lincoln era originário de uma família
pobre, cortou lenha e trabalhou duro em atividades para garantir sua
própria sobrevivência. Não estudou Direito em Harvard ou em Yale. Foi um
verdadeiro autodidata e com muito custo, e com grande esforço pessoal,
tornou-se um homem culto. Um político sem cultura jamais produziria uma
oração como o Discurso de Gettysburg, ou uma peça de oratória política notável
como o Discurso da Casa Dividida. Como escreveu o poeta Carl Sandburg,
referindo-se à oração de Gettysburg, “os mais profundos enigmas da
democracia emergiam de seu discurso. Tinham o toque de sonho de feitos
vastos e furiosos, epitomizados para que qualquer adivinho pudesse ler
ali no futuro. Suas cadências ecoavam a antiga canção de que onde há
liberdade é algo por que vale a pena que os homens morram ... Suas frases,
finas, depuradas e polidas exteriormente, eram retorcidas e rudes como os
enigmas da experiência norte-americana.” Decididamente, um político inculto
jamais poderia produzir algo parecido.
A “Operação Lava-Jato” já serviu
para introduzir na jurisprudência brasileira o cumprimento da pena após a
condenação em segunda instância, reduzindo substancialmente a possibilidade da
impunidade. Talvez o próximo passo seja mudar o sentido do termo “foro
privilegiado”, fazendo com que os ocupantes de cargos e funções políticas
tenham o privilégio de serem julgados em regime de urgência. Dessa forma,
o julgamento de deslizes, faltas e desonestidade de políticos não seria mais
protelado a ponto de o político – apesar de haver processo judicial com provas
robustas de cometimento de falta grave – poder cumprir todo um mandato e ainda
estar em condições de candidatar-se a novos cargos públicos. Talvez algumas
medidas como essa possam ajudar a trazer de volta para a política a boa
elite que o Brasil sempre teve.
Eiiti Sato
Professor
do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
Diário do Poder
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