Rodrigo
da Silva
É,
eu entendo. Você provavelmente não possui identificação com qualquer
partido político brasileiro. É cada vez mais difícil ter conexão com as ideias
defendidas por eles, não é mesmo? E olha que já são 35 pedindo a sua atenção a
cada dois anos – alguns dos quais eu aposto que você sequer ouviu
falar, como o Partido Republicano da Ordem Social ou o Partido da Mulher
Brasileira (que de mulher tem quase nada: dos seus 17
parlamentares, 15 são homens). Os partidos definitivamente
vivem num buraco sem fundo. Segundo o Datafolha, 91% dos brasileiros não
confiam neles. É a maior crise de representatividade que se tem notícia
desde a redemocratização do país. E não é por acaso.
A
cenário é generalizado. Ninguém escapa. Faça a sopa de letrinhas que
quiser na hora de formar o nome da agremiação: junte o p com o s, tire o s,
acrescente o t, coloque ou não o b no final. Tanto faz. Todos os partidos estão abraçados na mesma
cova.
E
é nesse cenário que você se encontra nesse momento: seguramente preocupado
com a crise econômica que ao final do mês transforma cada nota na sua
carteira numa heroica sobrevivente, e provavelmente insatisfeito com
a classe política brasileira, independente das siglas ou das ideologias que
elas juram defender. Pra você, arrisco dizer, não existe qualquer messias
ou salvador da pátria ao final dessa história. Aécio, Lula, Cunha, Dilma, FHC.
Pouco importa. Caso qualquer um desses nomes surja envolvido num escândalo com
a justiça que eventualmente termine em prisão ou perda de mandato, eu
poderia apostar que você daria de ombros à possibilidade de ir às ruas
protestar, não é mesmo? A razão disso: você provavelmente não é desses que
analisa a filiação partidária antes de acatar se a justiça é justa ou não –
tampouco se sente constrangido quando um político toma conta das páginas
policiais.
A
palavra correta aqui é isenção. O dicionário a traduz como um
desprendimento moral. É a ideia de que você não tem rabo preso na hora de falar
sobre um determinado assunto. Se o político A, do partido B, foi pego com a
boca na botija, pouco importa a condição do político C, do partido D. À
isenção, não existe uma moral seletiva, ou a possibilidade de atenuar
a responsabilidade de uma pessoa pelas ações de outra. Políticos pegos com
a boca na botija são criminosos, independente das ideias que você defende.
Nos
últimos tempos, porém, como um efeito desse cenário onde a
isenção possui um alto padrão moral nas discussões políticas, quanto
mais risível se tornou a ideia de defender publicamente as ações de um governo
tão impopular, mais comum foi encontrar um típico muito específico
de partidário, camuflado atrás de um conceito de isenção que não se
sustenta a um olhar mais apurado: a particular espécie do isento governista.
Sim,
você sabe perfeitamente de que tipo estou falando. O isento governista é um desses fenômenos que escancaram a capacidade de potencializar
o cinismo que a política tem. Caso ainda não tenha ligado o nome ao
sujeito, separei algumas frases que entregam sua condição.
Essa
é clássica. Normalmente o discurso se inicia com ela. A ideia é mostrar
independência e desprendimento, como se o isento governista fosse uma voz politicamente consciente,
acima do bem e do mal das picuinhas eleitoreiras – quando seu único interesse,
longe disso, é cumprir o papel que lhe cabe na defesa do governo.
1.”NÃO
SOU PETISTA, MAS ...”
O isento governista não tem vergonha alguma em assumir sua condição de
não-petista, ainda que todos saibam qual partido ele costumeiramente
apoia. Mas isso pouco importa: esconder sua identidade partidária é apenas um
protocolo para cuspir uma moralidade que chame atenção ao discurso em
defesa do partido que ele finge não defender; um mise-en-scéne.
“Eu nem sou um eleitor habitual do PT. O meu
candidato a deputado não é do PT”, diz o jurista Celso Antônio Bandeira de
Mello, antes de iniciar mais um longo discurso isento governista à publicação Rede Brasil Atual. “A operação contra Lula é
confissão de medo da elite brasileira”, continua. “Esse peso se restringe
à chamada classe média, sobretudo a classe média alta, que é uma gente, eu
diria, lamentável. A classe média alta é invejosa. Não se satisfaz em estar
bem. Ela quer que os outros estejam mal para se sentir superior. Já pensou o
sujeito que faz universidade, consegue título de mestre, de livre-docente, de
titular, e vê que para o mundo ele vale muito menos do que um operário? É
humilhante, não é? Eles se sentem humilhados com a presença do Lula.”
Assim,
apesar da falsa ponderação inicial, o isento governista segue o script padrão: um
discurso construído no coração do partido, passado adiante por liderança
políticas, sindicais e estudantis, repetido de forma bestializada
pelas redes sociais. E é aí que ele segue para cumprir a segunda parte de seu
papel.
2. “E O AÉCIO?”
Eis
a pergunta que não quer calar. Longos anos dividindo para conquistar fez com
que a mentalidade política do governismo não conseguisse escapar da mais furada
das falsas dicotomias: a ideia de que quem não é petista, é tucano. Aos isentos governistas, incluir a oposição em escândalos é uma
espécie de tábua de salvação, um habeas corpus na defesa do governo,
um salvo-conduto para o peleguismo – como se as ações de um grupo de
políticos estivesse intimamente ligada as de outro.
Para
o isento governista, tão costumas em seguir cegamente a
figura de políticos, imaginar que possa existir uma oposição civil que não
possua qualquer identidade com um partido ou uma figura pública é uma tarefa
árdua. Aqui mesmo, constantemente passamos por isso: a cada vez que
publicamos algo questionando a atuação do governo federal, a acusação que
recebemos em troca é a de que somos tucano, não importa o quão
distantes do tucanismo estejamos (e nós criticamos o partido, entre
outras tantas vezes, aqui, aqui, aqui e aqui).
Dessa
forma, para não parecer irracional ou partidário à polícia ideológica dos isentos governistas, não raramente é preciso
construir uma espécie de mea culpa politicamente correto, com um enorme
parêntese introdutório acusando todos os líderes da oposição, antes de
iniciar qualquer discurso contrário ao governo. É isso ou ser condenado à
categoria dos indignados seletivos.
Afinal,
por que os escândalos da Lava Jato envolvendo o PT chamam mais atenção que os
escândalos estaduais tucanos? Por motivos evidentes. Como escrevi aqui: porque são esquemas
envolvendo a máquina pública federal, que é do interesse de todo mundo – e com
valores muito maiores. E a máquina pública federal é controlada em sua maior
parte pelo PT, não pela oposição. Para o ex-presidente do Tribunal de Contas
da União, o ministro Augusto Nardes, o escândalo na Petrobras é o maior esquema de corrupção da história do país.
Para o Ministério Público Federal, a Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de
dinheiro que o Brasil já teve. É muita grana. Segundo o coordenador da
força-tarefa da operação, as propinas pagas desviadas dos cofres da
Petrobras somam mais de R$ 6,2 bilhões (valor 60 vezes maior que o escândalo do
Mensalão).
Como
os valores envolvidos e o nível de complexidade do esquema demonstram: se a
corrupção é uma arte desempenhada inegavelmente por todos os partidos do país,
ninguém constrói esse quadro com a excelência do PT. E é por isso que
ele está no coração da indignação nacional.
3. “COM O AÉCIO SERIA PIOR.”
Assim, a cada vez que um tucano estrela um escândalo, a impressão que o isento governista tem é de que pode gritar
a plenos pulmões a máxima que justifica seu estado de espírito isentão:
– Com o Aécio seria pior.
Sim, caro eleitor. Essa não apenas é uma
verdade irrepreensível, independente dos cenários, como alimenta cínicos
discursos em defesa daquele que é considerado o governo mais impopular da nossa
história republicana.
Dessa forma, a desculpa de que o governo
anterior era o culpado por todas as mazelas do país – algo
bastante presente nos palanques até pouco tempo – se transforma na
inevitabilidade de um governo que sequer existiu, superar o atual estado das
coisas. E aqui, não importa quantos desastres econômicos, políticos e
sociais ocorram. Não importa quantos escândalos ainda venham a surgir. O atual
governo, por pior que seja, é incapaz de ser superado por sua oposição. E isso
por si só justifica sua defesa.
4. “ESPERO QUE TODOS SEJAM CONDENADOS. NÃO APENAS O
PT.”
Não raramente, o isento governista questiona o papel das instituições do país. Para ele, há dois pesos e duas medidas nas
investigações de corrupção. Há de um lado o PT, duramente combatido. E há os
outros partidos, esquecidos. Basta um olhar mais apurado, no entanto, para
entender que as coisas não funcionam exatamente dessa forma.
A operação Lava Jato investiga diferentes
políticos, de diferentes partidos – como Eduardo Cunha (PMDB), Renan Calheiros
(PMDB), Fernando Collor (PTB), Romero Jucá (PMDB), Ciro Nogueira (PP), e tantos
outros. Políticos como Pedro Corrêa (PP) e Luiz Argôlo (Solidariedade) já foram
até presos pela operação. O Partido Progressista (PP) é o campeão entre os
políticos investigados. Mas então, por que a desculpa de que só o PT é
investigado insiste em aparecer nos discursos dos isentos governistas?
Porque pouco importa que todos os partidos da
base do governo estejam no escândalo de uma estatal controlada há mais de uma
década pelo mesmo governo. O que importa é condenar a oposição.
Assim, se os tucanos não estrelam escândalos
com números de corrupção iguais aqueles que o PT é acusado – como se houvesse
uma sincronicidade na corrupção, como se os escândalos entre oposição e
situação se transformassem num jogo de soma zero – há um tratamento desigual da
justiça e da imprensa, que realiza a cobertura desses eventos.
A ideia aqui? A mesma do ponto anterior.
Banalizar a discussão e transformar tudo numa mera disputa entre tucanos e
petistas, o velho nós
contra eles – fazendo
com que a desgraça do primeiro seja a salvação do segundo. Assim, se há
escândalos de corrupção entre os tucanos – e há – logo tudo é permitido: não há
razão para se escandalizar com o governo, que não faz nada diferente daquilo
que vem sistematicamente sendo feito por outros partidos, e na
mesma proporção (algo que não faz o menor sentido).
A ideia do isento
governista é
desacreditar que exista outra opção viável para o país. Assim, tudo se
restringe a uma falsa dicotomia emburrecedora entre dois partidos nascidos nos
mesmos porões, com visões de país muito parecidas – e que, não por acaso, não
comungam de qualquer identificação por aqueles que agora prometem ir às ruas (e
é exatamente por isso que escrevi
um manifesto aqui pedindo a renúncia dos
tucanos). Ter o PSDB como oposição só
interessa a um
grupo de pessoas: os petistas.
5. “NÃO SOU PETISTA, MAS ESSES PROTESTOS
CONTRA O GOVERNO SÃO RIDÍCULOS.”
Esse é o grande final. A cereja do bolo. A
última etapa do processo.
Aqui, após fingir não ser um partidário do
governo, transformar os tucanos na única via possível ao petismo,
condená-los e defender sistematicamente o governo com os mesmos
discursos utilizados da cúpula do partido para a base, o isento governista se transforma num meticuloso crítico de protesto. De todos os tipos
de protestos? Nada disso. Dos protestos contrários ao governo – que viram uma
espécie de carnaval fora de época, uma micareta de coxinhas ignorantes.
Manifestações a favor do governo no ano passado renderambaterias de escola de samba, churrasco, carros de som tocando
músicas populares, militantes pagos para protestar, barraquinhas vendendo
comidas e bebidas, como uísque e cerveja, e um clima de absoluto desprendimento
com o debate público. Mas essas, ao contrário dos protestos de oposição, são
encaradas pelo isento
governista, quando não completamente ignoradas em sua críticaindependente,
como símbolos de uma resistência popular – ainda que rendam um número
incomparavelmente menor de populares, devidamente recompensados para erguer
suas faixas e bandeiras.
A ideia em focar suas críticas nas manifestações
contrárias ao governo segue o mesmo padrão das anteriores: deslegitimar o
sentimento de insatisfação com o governo – que toma a esmagadora maioria
da parcela mais pobre do país (não por acaso, como apontam diversas pesquisas
de opinião, o apoio para o impeachment é
maior entre os mais pobres que os mais ricos). Para o isento governista, protestos de
oposição, ainda que movimentem milhões de pessoas de diferentes classes sociais
em diferentes regiões do país, são um retrato exclusivo de uma população
de classe média alta, ignorante, branca, autoritária e vexatória, que não gosta
“de ver pobre andando de avião”.
Assim, questionar o governo nas ruas se torna
uma chaga, uma doença, estupidamente vergonhosa, pertencente aos mais ricos.
Inexoravelmente, os protestos ainda reúnem dois tipos muito particulares de
ricos: os tucanos e os defensores da ditadura miliar (quando não os tucanos
que defendem a volta da ditadura militar). Eis o combo do nós
contra eles do isento governista.
Dessa forma, escondendo-se atrás de uma falsa
noção de independência, a trupe que defende o governo escondido atrás de
sofismas, se transforma num retrato de nosso tempo – desavergonhadamente
cínico e pelego.
Por isso, a partir de hoje esqueça os petistas
e os tucanos. A maior vergonha de nosso tempo tem outro nome: é o isentão.
SPOTNIKS
Nenhum comentário:
Postar um comentário