Guilherme Cintra
Na redação do ENEM e de alguns
vestibulares, cobra-se o gênero dissertativo argumentativo. Nesse gênero, o
aluno deve dissertar, defender argumentos para sustentar sua tese e, além
disso, propor uma solução para o tema abordado [1]. Das competências cobradas
na redação do ENEM, a Competência 5 estipula que o aluno deve “elaborar proposta
de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos” [2].
Com isso, se o aluno não quiser perder 1/5 do valor da redação, ele deve
colocar algum tipo de proposta de intervenção para o tema proposto. Isso
significa que, mesmo se suas ideias no desenvolvimento e/ou tese da redação não
forem compatíveis com qualquer tipo de intervenção para o problema, ele ainda
deve colocá-la.
Segundo o site do vestibular do
Brasil Escola, “não basta concluir o texto, é obrigatória a apresentação de soluções
viáveis que respeitem os direitos humanos.” Isso significa que não só a
conclusão das suas ideias apresentadas é necessária, mas também a proposição de
alguma intervenção. Para deixar ainda mais claro, no mesmo site, diz-se:
“Não se esqueça também de que ser
indiferente, utilizando expressões do tipo “não adianta fazermos nada”, “não há
soluções para o problema” ou “infelizmente as coisas nunca vão mudar”,
certamente lhe prejudicará, ainda que ao longo do texto você tenha apresentado
bons argumentos.” [1]
Ou seja, não importa se o aluno
possui argumentos adequados para sustentar a tese de que não é necessário
intervenção para o problema, ele é obrigado a colocá-la. E ele não pode ser
sincero e dizer que “não é necessário fazermos nada”; ele deve tentar inventar
alguma solução para o problema ou ele ficará com nota menor. Essa necessidade
força o aluno a mudar suas próprias ideias. Ele deve escrever um texto que se
adeque ao que os elaboradores pensam, e não ao que ele pensa. Não existe
liberdade para defender a tese, na redação, de que o problema não precisa de
solução. A solução deve existir e ser detalhada [3].
Por que o aluno deve ser obrigado a
propor alguma intervenção se ele acha que ela não é necessária? Aristóteles já
dividia um texto em “tese”, “desenvolvimento” e “conclusão”. Por que propor
algo diferente disso?
Enquanto o Estado coloca um meio que
se pretende universal para o ingresso nas universidades, esse meio deve ser o
mais neutro possível. Porém, a neutralidade acaba quando esse meio força o
aluno a pensar de alguma forma específica. A opinião do aluno na redação deve
ser dada de forma que ele aceite que aquele tema proposto é realmente um
problema e deve ser solucionado. Mas isso é uma forma de manipulação
ideológica, uma vez que, entre outras coisas, é o próprio Estado que escolhe o
tema da redação.
Ora, se o aluno é obrigado a aceitar
que aquilo é um problema e propor soluções para ele – mesmo que ele não
concorde com elas – então a redação se torna uma forma de o Estado mudar,
sutilmente, a mente dos alunos. E esse risco se torna mais visível quando vemos
que, muitas vezes, para a proposta de intervenção ficar completa, deve-se
colocar o próprio Estado como solucionador do problema. E isso acontece muito
na prática, principalmente nas redações de nota mil [4].
Isso tudo faz com que seja possível
que coisas mais absurdas sejam defendidas. Se o tema da redação fosse
"censura aos meios de comunicação”, qual seria a proposta de intervenção
nesse caso?
Qualquer pessoa com um mínimo de bom
senso colocaria: "não é necessário censurar". Porém, como dito acima,
assim a nota da redação seria diminuída. Então, nesse caso, seria quase
obrigação o aluno defender a tese de que é necessário censura. E os temas
propostos nem sempre passam longe desse tipo absurdo
[5].
Além disso, os elaboradores do ENEM
nos obrigam a desenvolver uma proposta de intervenção“respeitando os direitos
humanos”. Isso é algo muito abstrato. Os “direitos humanos”, na Declaração
promulgada na Revolução Francesa, diziam respeito quase estritamente aos
"direitos naturais" [6]. Nesse caso, se alguém violasse sua
propriedade, era quase direito “sagrado” seu punir essa pessoa severamente.
Porém, os direitos humanos promulgados pela ONU se distanciaram bastante dessa
tradição. Assim, se alguém disser, numa redação, que a solução para certo
problema é aumentar as penas para bandidos, pode ser que o corretor alegue que
isso “viola os direitos humanos”. Mas quais? Aqueles da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão ou os da ONU? Essa ambiguidade abre espaço para
arbitrariedades do corretor.
Além do mais, por que é preciso
respeitar sempre esses “direitos humanos” na redação? Ora, é no debate que a
sociedade avança. No campo da argumentação não há nenhuma “cláusula pétrea” –
nem mesmo a de que “direitos humanos” devem sempre ser respeitados. A redação
deveria ser uma forma de abrir espaço para novas ideias, mas essa necessidade
de respeitar sempre os direitos humanos impede que ocorra o
debate.
Conclusão
As redações não são corrigidas
apenas pela argumentação do aluno (o que deveria ser o principal critério de
correção). Elas são corrigidas levando em conta o quanto o aluno se submete ao
que o MEC propõe.
Se fosse levado em conta apenas o
que o aluno pensa, não seria necessário uma proposta de intervenção; seria
preciso apenas uma simples “conclusão” no final da redação - que é o que
estaria de acordo com o que o aluno desenvolveu ao decorrer do texto.
Se o que ele desenvolveu não tem
como consequência a necessidade de uma proposta de intervenção, ele não deveria
ser obrigado a mudar de ideia e colocá-la. Há ainda o problema dos “direitos
humanos”, que são muito abstratos e abrem espaço para o corretor decidir,
arbitrariamente, se aquilo que o aluno escreveu é digno de se tirar nota (sob a
alegação de o estudante estar “violando esses direitos”). Não só isso: a
necessidade do respeito a eles é algo arbitrário, porque a redação deveria ser
um campo onde impera o livre confronto de ideias.
Guilherme Cintra
Tem 17
anos, é estudante e acaba de terminar o ensino médio.
https://www.facebook.com/guilherme.cintra.587?fref=ts
Notas
[1]
http://vestibular.brasilescola.uol.com.br/enem/proposta-intervencao-na-redacao-enem.htm
[2] http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/edital/2015/edital_enem_2015.pdf
[3] “A proposta de intervenção precisa ser detalhada de modo a permitir ao leitor o julgamento sobre sua exequibilidade; deve conter, portanto, a exposição da proposta e o detalhamento dos meios para realizá-la.”http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2012/guia_participante_redacao_enem2012.pdf
[4] Veja os exemplos: essa é uma lista das redações nota mil do ENEM 2014:http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/enem-e-vestibular/enem-2014-leia-exemplos-de-redacoes-nota-1000-15050154
[5] Por exemplo: um tema muito comum nas redações, ao menos nos cursinhos preparatórios para o ENEM, o de “regulação da mídia”, é praticamente um eufemismo para censura.
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3
[2] http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/edital/2015/edital_enem_2015.pdf
[3] “A proposta de intervenção precisa ser detalhada de modo a permitir ao leitor o julgamento sobre sua exequibilidade; deve conter, portanto, a exposição da proposta e o detalhamento dos meios para realizá-la.”http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2012/guia_participante_redacao_enem2012.pdf
[4] Veja os exemplos: essa é uma lista das redações nota mil do ENEM 2014:http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/enem-e-vestibular/enem-2014-leia-exemplos-de-redacoes-nota-1000-15050154
[5] Por exemplo: um tema muito comum nas redações, ao menos nos cursinhos preparatórios para o ENEM, o de “regulação da mídia”, é praticamente um eufemismo para censura.
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3
Escola Sem Partido
Educação
Sem Doutrinação.
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