sábado, 30 de janeiro de 2016

No dia Internacional da Lembrança do Holocausto, somos todos "negacionistas"

Antonio Caleari

Há pouco mais de um ano, com a publicação do relatório final da enviesada “Comissão da Verdade”, o estado brasileiro cruzou uma fronteira: reconheceu a condição de verdade oficial a uma determinada narrativa histórica. Mutatis mutandis, o Direito Comparado tem subsidiado os juristas com inúmeros casos bastante atuais, nos quais se constata a tendência crescente de proteção jurídica a um fato da história por todos nós conhecido, pretendido inquestionável: o relatado do genocídio judeu.

No Brasil, diferentemente do cenário internacional, não há — pelo menos por enquanto — consequências na esfera penal a quem ousa questionar o “pensamento obrigatório”. Não por falta de vontade. O Projeto de Lei Federal nº 987 de 2007 pretende, nesse sentido, criar um novo e decisivo marco em nossa política criminal: tornar crime a negação do Holocausto. São diversas as implicações jurídicas possíveis e ainda pouco exploradas.

Quando na USP, há poucos anos, Tese de Láurea — posteriormente convertida em livro — questionou a legitimidade das leis europeias que colocam na cadeia os “negadores do Holocausto”, uma parcela fundamentalista da academia procedeu uma verdadeira patrulha ideológica sobre os envolvidos, vendo naquela arguição científica uma terrível heresia, estigmatizando-a e sepultando um debate tamanho frutígero para uma compreensão crítica da realidade política.

Tanto não se deveria admitir a revisão de uma versão sobre um fato histórico (o mérito), tido “transitado em julgado”, como não se toleraria nem sequer o questionamento da proibição de se questionar o dogma. Sim, soa mesmo confuso e kafkiano.

Dentro da mesma discussão acerca dos limites da liberdade de expressão, há de se destacar a bastante noticiada censura ao trabalho dos biógrafos, impedimento que sensibilizou a opinião pública, chegando à pauta do Supremo Tribunal Federal. Centenas de professores universitários publicaram manifesto conjunto que muito lembra o seu correspondente francês, Liberté pour l’Histoire. O resultado anunciado não podia ser outro: não há espaço para a censura prévia na república contemporânea (ao menos em tese).

Tratou-se de uma rica ocasião na qual os limites da liberdade de expressão foram, mais uma vez, rediscutidos e sopesados com outros direitos tutelados na Constituição, tal qual o foram no emblemático caso Ellwanger. No outro episódio mencionado, na França, os acadêmicos também se mobilizaram contra as “leis memoriais”, fazendo uma única exceção: o Holocausto judeu, cuja proteção por meio da lei penal fora casuisticamente reputada legítima e necessária.

Os paralelos não se esgotam por aí. A mesma França, a qual permite as caricaturas e provocações mais agressivas possíveis à religião maometana, encarcera também — vejam só — aqueles que questionam o genocídio armênio. Na Turquia, por sua vez, é crime (literalmente) afirmar a ocorrência de um genocídio armênio, constituindo-se algo que, em confrontação com a legislação gaulesa, poderíamos caracterizar como uma excêntrica antinomia internacional. Ironicamente, o historiador britânico Bernard Lewis, filho de pais judeus, foi condenado na França por questionar o dogma histórico dos armênios.

Exemplos outros há em abundância. Polônia, Estônia e Letônia encarceram aqueles que negam os crimes do comunismo (representados em maior parte pela extinta União Soviética), ao passo que a Rússia criminaliza quem “distorça o papel da URSS na Segunda Guerra Mundial”. Aqueles que tiverem curiosidade acerca de uma das maiores reviravoltas provocadas pela revisão histórica — e muitas outras ainda estão por vir, como o caso de Rudolf Hess — podem pesquisar sobre o massacre de Katyn, o qual expôs justamente a falsa narrativa da “verdade oficial” envolvendo crimes de guerra entre Alemanha, Polônia e União Soviética.

Ao contrário do que muitos pensam — e torcem —, o veredicto do tribunal ad hoc composto pelos vencedores da guerra, em Nuremberg, está longe de ter se estabelecido como fulcralmente acurado.

Voltando ao âmbito das biografias, vale registrar um estudo apresentado na Universidade de Montreal, sem que causasse qualquer escândalo acadêmico, em que se procurou “desmontar o mito do altruísmo e generosidade de Madre Teresa de Calcutá”, verdadeiro ícone da solidariedade humana. Este mesmo Canadá, porém, faz parte do grupo de países que condenam e prendem os “negacionistas” da Shoah (vide o caso Zündel).

No Irã, o revisionismo da biografia de Jesus, a partir do apócrifo Evangelho de Barnabé, infere que “Jesus nunca foi crucificado e que Cristo previu a vinda do profeta Maomé”. Agências de notícias desse país de maioria islâmica afirmam que a descoberta “vai causar o colapso do cristianismo no mundo inteiro”. Encontra-se literatura revisionista dos dogmas da doutrina cristã em praticamente qualquer livraria do mundo.

Todavia, neste mesmo estado do antigo território persa, o autor de Versos Satânicos, livro considerado uma terrível ofensa ao Islã, teve sua morte exultada por ninguém menos que o Aiatolá Khomeini, a maior autoridade religiosa do país.

Nos EUA, embora fortemente cristianizado, faz-se valer a liberdade de expressão estatuída na Primeira Emenda. Há, a título de ilustração, estudos publicados que procuram comprovar a autenticidade do Evangelho de Judas (no qual, ao contrário da “Bíblia oficial, onde esse discípulo é retratado como um traidor, se sugere que foi Jesus quem pediu para a seu amigo que o traísse perante as autoridades). O pesquisador Joseph Atwill, também estadunidense, foi muito além disso: Cristo seria uma completa fabricação da aristocracia romana com o intuito de controlar o povo e fazer frente ao movimento messiânico na Judeia.

O famoso judeu Elie Wiesel, ganhador do Nobel da Paz, confrontado em entrevista com o fato do “negacionismo” ser permitido nos Estados Unidos, em discurso similar ao citado dos antirrevisionistas franceses da década passada, propõe a criação de uma particular ressalva legal à liberdade de expressão dos americanos: “sou um grande admirador da Primeira Emenda, mas acho que ela deveria comportar uma exceção em relação ao Holocausto”.

Voltemos à inflamada realidade brasileira e sua sucessão interminável de escândalos políticos. Da narrativa oficial proclamada pela Comissão da Verdade, passando pela polêmica das biografias, aportamos no cenário das condenações de políticos, também proclamadas pela corte suprema.

Com o julgamento dos réus no processo da Ação Penal 470 (vulgo “Mensalão”), pela mais alta corte do país e em último grau recursal (lembrando que os Infringentes não abarcam toda a trama), o Estado brasileiro declarou a existência de uma sofisticada quadrilha que atuou no governo federal, desviando dinheiro público, à época da administração deste mesmo Partido dos Trabalhadores que promove, agora, uma censura de ofício aos saudosos do regime militar e a outros teóricos dissidentes.

Notável, neste contexto, que o historiador e ferrenho antipetista Marco Antonio Villa defenda, conforme assinalado em seu livro Ditadura à Brasileira, ao contrário da Comissão da Verdade e da grande maioria dos autores que pesquisam a esse respeito, que apenas metade do período que vai de 1964 a 1985 pode ser considerado como uma verdadeira “ditadura militar”.

Vejamos que parte daqueles que desqualificam como uma teoria da conspiração a interpretação contramajoritária dos eventos da Segunda Guerra Mundial bradam ser uma “maquinação da mídia golpista” e “invenção da direita” o mais infame caso de corrupção dos últimos tempos. Negavam também, há não muito tempo, o “Petrolão”, sendo depois desmentidos pelo próprio balanço auditado da empresa estatal e pelas delações premiadas.

Os petistas, antes considerados referências éticas na política, ao instituírem uma Comissão da Verdade e silenciarem com a prisão dos revisionistas inconvenientes, convertem a si próprios em potenciais delinquentes de opinião (ou seja, também revisionistas de uma verdade oficial, pois negam a existência do Mensalão, discussão esta também já “transitada em julgado”, se nos valermos da mesma lógica).

Tal estrutura de incongruências irá fatalmente implodir, e isso está longe de ser uma questão partidária ou oposicionista, conforme já visto no panorama internacional. Não se pode defender uma seletiva liberdade de expressão para alguns, quando apropriado, e ao mesmo tempo sacramentar novos tribunais neoinquisitoriais para uma minoria de párias políticos.

Por que o Charlie Hebdo circula livremente, enquanto Dieudonné é preso por fazer piadas com os judeus? Por que militantes da Marcha das Vadias e da Parada Gay podem vilipendiar símbolos cristãos, ao ponto de publicamente introduzirem o crucifixo no ânus e registrarem o ato, em plena Avenida Paulista, enquanto a Viradouro foi proibida, mediante liminar judicial, de prestar uma homenagem às vítimas do Holocausto, retratando-o em seu desfile de Carnaval?

Os militares são negacionistas do libelo da resistência dita “democrática”, composta por movimentos de luta armada em defesa das ditaduras comunistas. Os petistas são negacionistas do Mensalão, e nem por isso se cogita a prisão de seus militantes por questionarem também uma verdade oficial e transformarem corruptos sentenciados em heróis (o que poderia, no limite, ser subsumido como apologia ao crime).

Parte dos humanistas da USP, tão bem a postos para estigmatizarem uma pesquisa metadiscursiva laureada (a qual certamente não leram), são também negacionistas de diversas teses por eles revisadas e tomadas como objeto de análise no ambiente acadêmico, ao longo de suas carreiras, a exemplo do professor Clóvis de Barros Filho, para o qual “pedofilia é amor” e “há afetos que a sociedade aplaude e afetos que a sociedade não aceita”; nas suas palavras, o “tesão oficial”.

Não consta ter havido qualquer moção da Congregação da FFLCH ou do IP a esse respeito, muito menos no caso de Paulo Ghiraldelli, filósofo doutor pela PUC, o qual ainda mais explicitamente defende a relativização da vida sexual infantil.

Falta-lhes compreender que, se em uma universidade deve haver espaço para a universalidade do conhecimento, não se pode criar exceções casuísticas que apenas evidenciam uma incoerência sistêmica dessas trincheiras acadêmicas da “esquerda” brasileira.

Há, para citar apenas mais um exemplo emblemático dentre infindáveis outros, renomados pesquisadores, como o professor e meteorologista Luiz Carlos Molion, que negam categoricamente as mudanças climáticas por resultado da ação humana. Afirmam que a Terra está a esfriar, entrando numa nova era glacial (!), e não o contrário, como dispõe a cartilha do aquecimento global da ONU.

Não seria também uma verdade histórica a existência da rede de corrupção petista, tal quais as apontadas violações de direitos humanos pela ditadura? A dor causada ao biografado e à sua família em virtude de informações escancaradas pelo seu biógrafo apócrifo não seriam análogas à dor causada pelos ateus “negacionistas” dos cânones religiosos e pelos caricaturistas de Maomé?

Um participante de uma marcha da maconha, já reconhecida legítima pelo STF, não causa também a indignação de setores mais conservadores, da mesma forma que parte da mobilizada comunidade judaica, autodiscriminada “povo eleito”, alega lutar justamente contra a discriminação por meio da aprovação do Martelo do Holocausto (Malleus Holoficarum)?

Há, de fato, um quê de “Je suis hypocrite” nisso tudo.

Segundo o hors concours das citações tão presentes na retórica antitotalitária, George Orwell, “se liberdade significa algo, significa o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem ouvir”. De fato, no campo das ideias, os “negacionismos” são recíprocos e essa é uma dinâmica natural no processo de busca pela verdade e pelo aperfeiçoamento do conhecimento humano.

Neste 27 de janeiro, “Dia Internacional da Lembrança do Holocausto”, cumpre refletir: não somos todos nós, em ao menos algum plano, também “negacionistas” de uma crença alheia? Quantas pessoas podem se sentir ofendidas com nossas opiniões mais controvertidas? Devemos caminhar no sentido de criminalizar opiniões, encarcerando os militares pró-64, os petistas de punho cerrado, os biógrafos não oficiais, os ateus, os humoristas, os usuários de drogas militantes, os cientistas contramajoritários e todos aqueles “negacionistas” de uma verdade oficial, assim caracterizados em virtude do volúvel espírito de seu tempo, o Zeitgeist?

Antonio Caleari é Bacharel em Direito pela USP, revisionista e autor do livro “Malleus Holoficarum: o estatuto jurídico-penal da Revisão Histórica na forma do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado Editora, Lisboa, 2012).


Nota do autor: O presente texto fora originalmente publicado no portal Consultor Jurídico (CONJUR), ontem, 27 de janeiro de 2016. Após sua divulgação via Twitter e diversos compartilhamentos pelo Facebook e por outros meios, o artigo foi simplesmente “despublicado” pelos editores do site, sob circunstâncias as mais escusas, poucas horas depois, restando em todos aquele velho sentimento de “deja vu”, pois, em se tratando do tabu do Revisionismo Histórico, coisas estranhas sempre acontecem… Um desrespeito aos leitores e uma atitude que, infelizmente, trás descrédito e envergonha este que é um dos principais veículos do país no ramo.

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