Antonio Caleari
Há pouco mais de um
ano, com a publicação do relatório final da enviesada “Comissão da Verdade”, o
estado brasileiro cruzou uma fronteira: reconheceu a condição de verdade
oficial a uma determinada narrativa histórica. Mutatis mutandis, o
Direito Comparado tem subsidiado os juristas com inúmeros casos bastante
atuais, nos quais se constata a tendência crescente de proteção jurídica a um
fato da história por todos nós conhecido, pretendido inquestionável: o relatado
do genocídio judeu.
No Brasil,
diferentemente do cenário internacional, não há — pelo menos por enquanto —
consequências na esfera penal a quem ousa questionar o “pensamento
obrigatório”. Não por falta de vontade. O Projeto de Lei Federal nº 987 de 2007
pretende, nesse sentido, criar um novo e decisivo marco em nossa política
criminal: tornar crime a negação do Holocausto. São diversas as implicações
jurídicas possíveis e ainda pouco exploradas.
Quando na USP, há
poucos anos, Tese de Láurea — posteriormente convertida em livro — questionou a
legitimidade das leis europeias que colocam na cadeia os “negadores do
Holocausto”, uma parcela fundamentalista da academia procedeu uma verdadeira
patrulha ideológica sobre os envolvidos, vendo naquela arguição científica uma
terrível heresia, estigmatizando-a e sepultando um debate tamanho frutígero
para uma compreensão crítica da realidade política.
Tanto não se deveria
admitir a revisão de uma versão sobre um fato histórico (o mérito), tido
“transitado em julgado”, como não se toleraria nem sequer o questionamento da
proibição de se questionar o dogma. Sim, soa mesmo confuso e kafkiano.
Dentro da mesma
discussão acerca dos limites da liberdade de expressão, há de se destacar a
bastante noticiada censura ao trabalho dos biógrafos, impedimento que
sensibilizou a opinião pública, chegando à pauta do Supremo Tribunal Federal.
Centenas de professores universitários publicaram manifesto conjunto que muito
lembra o seu correspondente francês, Liberté pour l’Histoire. O
resultado anunciado não podia ser outro: não há espaço para a censura prévia na
república contemporânea (ao menos em tese).
Tratou-se de uma rica
ocasião na qual os limites da liberdade de expressão foram, mais uma vez,
rediscutidos e sopesados com outros direitos tutelados na Constituição, tal
qual o foram no emblemático caso Ellwanger. No outro episódio mencionado, na França, os acadêmicos também
se mobilizaram contra as “leis memoriais”, fazendo uma única exceção: o
Holocausto judeu, cuja proteção por meio da lei penal fora casuisticamente
reputada legítima e necessária.
Os paralelos não se
esgotam por aí. A mesma França, a qual permite as caricaturas e provocações
mais agressivas possíveis à religião maometana, encarcera também — vejam só —
aqueles que questionam o genocídio armênio. Na Turquia, por sua vez, é crime
(literalmente) afirmar a ocorrência de um genocídio armênio, constituindo-se
algo que, em confrontação com a legislação gaulesa, poderíamos caracterizar
como uma excêntrica antinomia internacional. Ironicamente, o historiador
britânico Bernard Lewis, filho de pais judeus, foi condenado na França por
questionar o dogma histórico dos armênios.
Exemplos outros há em
abundância. Polônia, Estônia e Letônia encarceram aqueles que negam os crimes
do comunismo (representados em maior parte pela extinta União Soviética), ao
passo que a Rússia criminaliza quem “distorça o papel da URSS na Segunda Guerra
Mundial”. Aqueles que tiverem curiosidade acerca de uma das maiores
reviravoltas provocadas pela revisão histórica — e muitas outras ainda estão
por vir, como o caso de Rudolf Hess — podem pesquisar sobre o massacre de
Katyn, o qual expôs justamente a falsa narrativa da “verdade oficial”
envolvendo crimes de guerra entre Alemanha, Polônia e União Soviética.
Ao contrário do que
muitos pensam — e torcem —, o veredicto do tribunal ad hoc composto
pelos vencedores da guerra, em Nuremberg, está longe de ter se estabelecido
como fulcralmente acurado.
Voltando ao âmbito das
biografias, vale registrar um estudo apresentado na Universidade de Montreal,
sem que causasse qualquer escândalo acadêmico, em que se procurou “desmontar o
mito do altruísmo e generosidade de Madre Teresa de Calcutá”, verdadeiro ícone
da solidariedade humana. Este mesmo Canadá, porém, faz parte do grupo de países
que condenam e prendem os “negacionistas” da Shoah (vide o
caso Zündel).
No Irã, o revisionismo
da biografia de Jesus, a partir do apócrifo Evangelho de Barnabé, infere que
“Jesus nunca foi crucificado e que Cristo previu a vinda do profeta Maomé”.
Agências de notícias desse país de maioria islâmica afirmam que a descoberta “vai
causar o colapso do cristianismo no mundo inteiro”. Encontra-se literatura
revisionista dos dogmas da doutrina cristã em praticamente qualquer livraria do
mundo.
Todavia, neste mesmo
estado do antigo território persa, o autor de Versos Satânicos,
livro considerado uma terrível ofensa ao Islã, teve sua morte exultada por
ninguém menos que o Aiatolá Khomeini, a maior autoridade religiosa do país.
Nos EUA, embora
fortemente cristianizado, faz-se valer a liberdade de expressão estatuída na
Primeira Emenda. Há, a título de ilustração, estudos publicados que procuram
comprovar a autenticidade do Evangelho de Judas (no qual, ao contrário
da “Bíblia oficial”, onde esse discípulo é retratado como um
traidor, se sugere que foi Jesus quem pediu para a seu amigo que o traísse
perante as autoridades). O pesquisador Joseph Atwill, também estadunidense, foi
muito além disso: Cristo seria uma completa fabricação da aristocracia romana
com o intuito de controlar o povo e fazer frente ao movimento messiânico na
Judeia.
O famoso judeu Elie
Wiesel, ganhador do Nobel da Paz, confrontado em entrevista com o fato do
“negacionismo” ser permitido nos Estados Unidos, em discurso similar ao citado
dos antirrevisionistas franceses da década passada, propõe a criação de
uma particular ressalva legal à liberdade de expressão dos americanos: “sou um
grande admirador da Primeira Emenda, mas acho que ela deveria comportar uma
exceção em relação ao Holocausto”.
Voltemos à inflamada
realidade brasileira e sua sucessão interminável de escândalos políticos. Da
narrativa oficial proclamada pela Comissão da Verdade, passando pela polêmica
das biografias, aportamos no cenário das condenações de políticos, também
proclamadas pela corte suprema.
Com o julgamento dos
réus no processo da Ação Penal 470 (vulgo “Mensalão”), pela mais alta corte do
país e em último grau recursal (lembrando que os Infringentes não abarcam toda
a trama), o Estado brasileiro declarou a existência de uma sofisticada
quadrilha que atuou no governo federal, desviando dinheiro público, à época da
administração deste mesmo Partido dos Trabalhadores que promove, agora, uma
censura de ofício aos saudosos do regime militar e a outros teóricos
dissidentes.
Notável, neste
contexto, que o historiador e ferrenho antipetista Marco Antonio Villa defenda,
conforme assinalado em seu livro Ditadura à Brasileira, ao
contrário da Comissão da Verdade e da grande maioria dos autores que pesquisam
a esse respeito, que apenas metade do período que vai de 1964 a 1985 pode ser
considerado como uma verdadeira “ditadura militar”.
Vejamos que parte
daqueles que desqualificam como uma teoria da conspiração a interpretação
contramajoritária dos eventos da Segunda Guerra Mundial bradam ser uma
“maquinação da mídia golpista” e “invenção da direita” o mais infame caso de
corrupção dos últimos tempos. Negavam também, há não muito tempo, o “Petrolão”,
sendo depois desmentidos pelo próprio balanço auditado da empresa estatal e
pelas delações premiadas.
Os petistas, antes
considerados referências éticas na política, ao instituírem uma Comissão da
Verdade e silenciarem com a prisão dos revisionistas inconvenientes, convertem
a si próprios em potenciais delinquentes de opinião (ou seja, também
revisionistas de uma verdade oficial, pois negam a existência do Mensalão,
discussão esta também já “transitada em julgado”, se nos valermos da mesma
lógica).
Tal estrutura de
incongruências irá fatalmente implodir, e isso está longe de ser uma questão
partidária ou oposicionista, conforme já visto no panorama internacional. Não
se pode defender uma seletiva liberdade de expressão para alguns, quando
apropriado, e ao mesmo tempo sacramentar novos tribunais neoinquisitoriais para
uma minoria de párias políticos.
Por que o Charlie
Hebdo circula livremente, enquanto Dieudonné é preso por fazer piadas
com os judeus? Por que militantes da Marcha das Vadias e da Parada Gay podem
vilipendiar símbolos cristãos, ao ponto de publicamente introduzirem o
crucifixo no ânus e registrarem o ato, em plena Avenida Paulista, enquanto a
Viradouro foi proibida, mediante liminar judicial, de prestar uma homenagem às
vítimas do Holocausto, retratando-o em seu desfile de Carnaval?
Os militares são
negacionistas do libelo da resistência dita “democrática”, composta por
movimentos de luta armada em defesa das ditaduras comunistas. Os petistas são
negacionistas do Mensalão, e nem por isso se cogita a prisão de seus militantes
por questionarem também uma verdade oficial e transformarem corruptos
sentenciados em heróis (o que poderia, no limite, ser subsumido como apologia
ao crime).
Parte dos humanistas
da USP, tão bem a postos para estigmatizarem uma pesquisa metadiscursiva
laureada (a qual certamente não leram), são também negacionistas de diversas
teses por eles revisadas e tomadas como objeto de análise no ambiente
acadêmico, ao longo de suas carreiras, a exemplo do professor Clóvis de Barros
Filho, para o qual “pedofilia é amor” e “há afetos que a sociedade aplaude e
afetos que a sociedade não aceita”; nas suas palavras, o “tesão oficial”.
Não consta ter havido
qualquer moção da Congregação da FFLCH ou do IP a esse respeito, muito menos no
caso de Paulo Ghiraldelli, filósofo doutor pela PUC, o qual ainda mais
explicitamente defende a relativização da vida sexual infantil.
Falta-lhes compreender
que, se em uma universidade deve haver espaço para a universalidade do
conhecimento, não se pode criar exceções casuísticas que apenas evidenciam uma
incoerência sistêmica dessas trincheiras acadêmicas da “esquerda” brasileira.
Há, para citar apenas
mais um exemplo emblemático dentre infindáveis outros, renomados pesquisadores,
como o professor e meteorologista Luiz Carlos Molion, que negam categoricamente
as mudanças climáticas por resultado da ação humana. Afirmam que a Terra está a
esfriar, entrando numa nova era glacial (!), e não o contrário, como dispõe a
cartilha do aquecimento global da ONU.
Não seria também uma
verdade histórica a existência da rede de corrupção petista, tal quais as
apontadas violações de direitos humanos pela ditadura? A dor causada ao
biografado e à sua família em virtude de informações escancaradas pelo seu
biógrafo apócrifo não seriam análogas à dor causada pelos ateus “negacionistas”
dos cânones religiosos e pelos caricaturistas de Maomé?
Um participante de uma
marcha da maconha, já reconhecida legítima pelo STF, não causa também a
indignação de setores mais conservadores, da mesma forma que parte da
mobilizada comunidade judaica, autodiscriminada “povo eleito”, alega lutar
justamente contra a discriminação por meio da aprovação do Martelo do
Holocausto (Malleus Holoficarum)?
Há, de fato, um quê
de “Je suis hypocrite” nisso tudo.
Segundo o hors
concours das citações tão presentes na retórica antitotalitária,
George Orwell, “se liberdade significa algo, significa o direito de dizer às
pessoas aquilo que elas não querem ouvir”. De fato, no campo das ideias, os
“negacionismos” são recíprocos e essa é uma dinâmica natural no processo de
busca pela verdade e pelo aperfeiçoamento do conhecimento humano.
Neste 27 de janeiro,
“Dia Internacional da Lembrança do Holocausto”, cumpre refletir: não somos
todos nós, em ao menos algum plano, também “negacionistas” de uma crença
alheia? Quantas pessoas podem se sentir ofendidas com nossas opiniões mais
controvertidas? Devemos caminhar no sentido de criminalizar opiniões,
encarcerando os militares pró-64, os petistas de punho cerrado, os biógrafos
não oficiais, os ateus, os humoristas, os usuários de drogas militantes, os
cientistas contramajoritários e todos aqueles “negacionistas” de uma verdade
oficial, assim caracterizados em virtude do volúvel espírito de seu tempo,
o Zeitgeist?
Antonio Caleari é
Bacharel em Direito pela USP, revisionista e autor do livro “Malleus
Holoficarum: o estatuto jurídico-penal da Revisão Histórica na forma
do Jus Puniendi versus Animus Revidere” (Chiado Editora, Lisboa,
2012).
Nota do autor: O
presente texto fora originalmente publicado no portal Consultor Jurídico
(CONJUR), ontem, 27 de janeiro de 2016. Após sua divulgação via Twitter e
diversos compartilhamentos pelo Facebook e por outros meios, o artigo foi
simplesmente “despublicado” pelos editores do site, sob circunstâncias as
mais escusas, poucas horas depois, restando em todos aquele velho sentimento
de “deja vu”, pois, em se tratando do tabu do Revisionismo Histórico, coisas
estranhas sempre acontecem… Um desrespeito aos leitores e uma atitude que,
infelizmente, trás descrédito e envergonha este que é um dos principais
veículos do país no ramo.
Alerta Total – www.alertatotal.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário