segunda-feira, 2 de março de 2020

As histórias reveladas pelos documentos que a polícia secreta da Alemanha Oriental não conseguiu destruir

Clarissa Neher

Em setembro de 1980, Angelika Gerlach entrou com um pedido para viver na República Democrática Alemã (RDA) e adquirir a cidadania do país comunista. Num documento, dizendo ser órfã e sem parentes próximos, a mulher de 30 anos relata suas experiências profissionais, além da frustação e insatisfação de morar na vizinha "imperialista".

Na Alemanha Oriental, aparentemente recebida de braços abertos, Gerlach começa um curso de enfermeira em Erfurt, onde viveu até fevereiro de 1986, quando desaparece misteriosamente sem deixar rastros. Cerca de um ano depois e com um novo rosto, Gerlach ressurge como Sylvia Bayer em Neubrandenburg, onde se torna diretora do departamento de informação e documentação de uma farmacêutica.

O desaparecimento de Gerlach e sua nova identidade foram providenciados pelo Ministério de Segurança do Estado (MfS), conhecido popularmente como Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Essa, porém, não era a primeira vez que a alemã ganhava uma nova vida com o apoio do órgão comunista.

Gerlach era na verdade Silke Maier-Witt, uma das mais famosas terroristas da Fração do Exército Vermelho (RAF). Na época em que se tornou a mulher que sonhava em viver num país comunista, era procurada na Alemanha Ocidental por ter participado do sequestro e da morte do empresário Hanns-Martin Schleyer em 1977, no auge do radicalismo da organização guerrilheira alemã de extrema esquerda.

Durante a década de 1970, além de observar e monitorar a RAF, a Stasi chegou a colaborar com o grupo que aterrorizava a Alemanha do outro lado da fronteira, fazendo vistas grossas a viagens de integrantes da organização para o Oriente Médio a partir do aeroporto de Berlim Oriental. O contato entre eles se intensificou no decorrer dos anos e, na década de 1980, a polícia secreta comunista ofereceu asilo aos extremistas procurados na Alemanha Ocidental.

Foi assim que Silke Maier-Witt se tornou Angelika Gerlach. Com a ajuda da Stasi, que além de arrumar moradia e um novo emprego, ela se tornou uma cidadã da RDA. Ao receber a informação de que o disfarce da terrorista havia sido descoberto pela Alemanha Ocidental em 1986, a polícia secreta comunista imediatamente providenciou o desaparecimento da fugitiva, que, pouco depois, foi submetida a uma cirurgia plástica para mudar sua fisionomia e ganhou uma nova identidade.

Além de ser Angelika Gerlach e Sylvia Bayer, nos arquivos da Stasi, Maier-Witt também aparece como Anja Weber, o codinome pelo qual era identificada durante os anos em que foi "funcionária não oficial", ou seja, informante da polícia secreta.

A história de Maier-Witt na Alemanha Oriental e o auxílio da Stasi na clandestinidade de terroristas da RAF só foram descobertos graças ao trabalho de restauração dos milhões de pedaços de documentos picotados que foram recuperados na sede do antigo Ministério de Segurança do Estado e em repartições da pasta espalhada por diversas cidades da antiga RDA.

Apagar crimes e a história
No antigo complexo da sede da Stasi em Berlim, cerca de 12 funcionários, munidos de muita paciência, clipes e fita adesiva, trabalham montando o quebra-cabeça de pedaços de documentos que foram rasgados por membros da polícia secreta nos últimos meses de existência de um dos principais pilares do regime da Alemanha Oriental.

Esse trabalho de restauração, no entanto, só foi possível devido à coragem de ativistas de direitos humanos que enfrentaram o aparato de repressão para evitar que dossiês de cidadãos espionados pelo regime fossem perdidos. Com a queda do muro de Berlim e a iminente aproximação do fim do regime comunista em novembro de 1989, funcionários da Stasi receberam ordens para destruir documentos que poderiam provar violações cometidas pelo órgão. Muitos destes papéis foram rasgados a mão e colocados em sacos.

Diante desta destruição, ativistas começaram a ocupar repartições do serviço secreto em várias cidades. A primeira foi Erfurt, em 4 de dezembro de 1989. Em 15 de janeiro de 1990, chegou então a vez da sede do ministério em Berlim. Dezenas invadiram o complexo, colocando um fim a Stasi, criada em 1950.

Ao todo, foram recuperados cerca de 16 mil sacos com restos de documentos. Estima-se que neles haja entre 40 milhões e 55 milhões de páginas. Algumas de fácil restauração, rasgadas apenas ao meio. Já outras picotadas em dezenas de pedacinhos.

"O grande desafio da restauração é o enorme volume de papéis", afirma Andreas Loder, diretor do Projeto de Reconstrução Manual no Arquivo dos Documentos da Stasi.

O primeiro passo deste trabalho é uma triagem do conteúdo de cada um dos sacos, dando prioridade para aqueles que aparentam conter uma papelada mais relevante. Depois disso, os recortes são retirados cuidadosamente um a um e separados ou reunidos. Segundo Loder, dentro dos sacos, os pedaços de uma página costumam estar próximos. Em seguida, o quebra-cabeça é montado e colado. Por fim, páginas que pertencem a um mesmo documento são agrupadas.

Cada funcionário trabalha exclusivamente na reconstrução de um saco, cuja restauração de todo o conteúdo dura de um ano até um ano e meio.
Ao longo dos anos, foi possível perceber que o tamanho dos pedaços não tem relação com o grau de importância do documento, conta Loder. "Isso diz mais sobre a forma de trabalho e motivação do funcionário da Stasi.

Eles ficaram dias inteiros rasgando folhas e, geralmente, no final do expediente, já não havia muito empenho como no início do turno."
Desde 1995 ,quando o projeto de reconstrução manual foi iniciado, apenas 520 sacos foram restaurados desde 1995. Estima-se que esse processo para recuperar parte desta história ainda levará décadas.

Lacunas preenchidas
Nesta pequena parcela, no entanto, além da história de Maier-Witt, outras descobertas impressionantes foram feitas. Os recortes possibilitaram, por exemplo, um panorama mais amplo sobre a prática de doping na Alemanha Oriental, onde havia um tipo de programa oficial desde 1974. Os documentos do arquivo revelaram que muitos dos atletas não sabiam que estavam recebendo anabolizantes de médicos e treinadores. Eles ainda eram monitorados por agentes da Stasi, que também deveriam garantir o segredo sobre o procedimento em massa.

Outras descobertas ajudaram a preencher lacunas sobre a perseguição a opositores do regime, como no caso do químico Robert Havemann, que foi diretor do Instituto para Físico-Química da Universidade Humboldt, em Berlim, e chegou inclusive a ser "funcionário não-oficial" da própria Stasi.

Com o codinome Leitz, Havemann se tornou oficialmente informante da polícia secreta em 1956. No documento, é mencionado que o professor já era um contato da Stasi desde 1953 — no entanto, ainda não foram encontradas mais informações sobre esse período intermediário. Como "funcionário não-oficial", o químico recebeu a missão de fazer contatos com determinados cientistas da Alemanha Ocidental.

Apesar desta cooperação, a polícia secreta não confiava em Havemann, que estava sendo paralelamente espionado. Em 1963, ele perdeu o posto de "funcionário não-oficial" e foi declarado inimigo de Estado. Inicialmente, essa mudança de status não foi percebida pelo cientista, que costumava fazer críticas abertas ao regime comunista depois da construção do Muro de Berlim, em 1961.
Havemann acaba sendo expulso da universidade e, em 1965, foi proibido de continuar exercendo sua profissão no país. Essa repressão não conseguiu silenciar o químico, que continuou publicando críticas ao regime na imprensa da Alemanha Ocidental. Entre 1976 e 1979, ele foi colocado em prisão domiciliar numa tentativa de restringir sua movimentação. Poucos anos depois, em abril de 1982, o opositor que havia sido um comunista convicto morreu numa cidade próxima a Berlim.

A restauração dos documentos foi fundamental não somente para o panorama completo da história de Havemann, mas também para preencher lacunas no acervo do ministério que permaneceu intato.

"Em alguns casos, tínhamos uma folha com um nome de um informante da Stasi ou apenas a capa de uma pasta vazia. Conseguimos restaurar mais centenas de páginas que comprovaram, por exemplo, que determinado indivíduo contribuiu com a polícia secreta ou que revelaram todas as informações que foram repassadas sobre cidadãos espionados", conta Ute Michalsky, diretora do Departamento de Reconstrução no Arquivo dos Documentos da Stasi.

Michalsky afirma que, além de preservar a história, o trabalho de restauração é fundamental para proporcionar a pessoas que foram perseguidas e acabaram perdendo o emprego ou foram presas injustamente provas para a correção de erros cometidos pela Justiça na época e para sua reabilitação.

Auxílio tecnológico
Para tentar acelerar a montagem deste quebra-cabeça, foi iniciado em 2008 um projeto-piloto para a restauração digital desses documentos, numa parceira com o Instituto Fraunhofer para Unidade de Produção e Técnicas de Construção. Cada recorte era digitalizado e um software foi desenvolvido para reconhecer a cor do papel, o formato do corte e o tipo de escrita, e automaticamente unir essas peças.

"Devido ao grande volume de pedaços e ao atual nível da técnica de scanners, percebemos que essa tentativa não é economicamente viável", diz Michalsky. Nesta fase de teste, apenas 23 sacos foram reconstruídos.
Diante da conclusão, o projeto digital está hoje paralisado. Novos parâmetros estão sendo estabelecidos para sua retomada num procedimento que seja viável e estável.

Enquanto isso, o número de funcionários que trabalham na reconstrução manual foi reforçado para tentar acelerar a análise dos cerca de 15.500 sacos de recortes restantes com parte da história de repressão da Alemanha Comunista.


De Berlim para a BBC News Brasil

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