Alberto Aggio
Nossa ‘cidade futura’ enfrentará desafios imensos, mas não deve reiterar o passado
Ao olharmos para o panorama político nacional e internacional em que estamos imersos, e que seguramente influenciará as eleições municipais que se avizinham, não resta nenhuma dúvida de que vivemos tempos desafiadores e de mudança. O desafio será processar mais um aggiornamento na trajetória da nossa modernização. A ideia de mudança, apesar de alguns desencantos, tem estimulado os brasileiros a participar da vida política, além de ensejar um sentimento comum de valorização da construção coletiva da nossa democracia.
Desde a redemocratização passamos por muitas experiências, algumas bem-sucedidas, outras nem tanto. Muitos entenderam que democracia significava apenas reivindicar suas demandas ao Estado. Contudo os brasileiros vêm compreendendo que, embora importante, esse entendimento é insuficiente e não produz resultados duradouros. Não basta se indignar, protestar ou se rebelar. É necessário agregar interesses e organizá-los politicamente em torno de projetos de reforma e de transformação da realidade, mesmo que parciais e setoriais.
Com o incremento do interesse e da participação política da cidadania desde as jornadas de julho de 2013, cresce a percepção de que uma concepção verticalizada da ação política e de governo, de caráter oligárquico ou iluminista, compromete a construção da democracia e não responde às necessidades da população. Esse tipo de política, muitas vezes associado à demagogia, é hoje abertamente questionado. O tempo em que vivemos passou a exigir uma mudança nos comportamentos políticos cujo vetor está orientado para fortalecer, consolidar e renovar a vida democrática, com mais participação da cidadania.
Repensar a política a partir da realidade concreta dos cidadãos visando a equacionar os inúmeros problemas urbanos tornou-se reflexão obrigatória para inúmeros políticos e urbanistas ao redor do mundo. Em paralelo com problemas ecológicos, os problemas urbanos são reconhecidamente questões que afetam o conjunto da humanidade. Há efetivamente um deslocamento do lugar da cidade na trajetória futura da humanidade. "O arquiteto Carlos Leite observou essa mudança de natureza histórica ao anotar que “o século XIX foi dos Impérios, o século XX das Nações e o século XXI é o século das cidades”
Há, portanto, uma necessidade imperiosa de mudar o enfoque, superando o localismo. O aforismo de que as pessoas vivem no município e não no Estado ou na Federação é apenas uma meia-verdade. Os problemas das cidades brasileiras e suas soluções não podem ser reduzidos a questões exclusivamente locais. O nefasto domínio do “poder local” pelos coronéis, assim como a expectativa de conquistar e construir um (outro) “poder local” a partir de uma versão envergonhada dos “sovietes”, que ainda embala os delírios do velho esquerdismo, não fazem mais sentido no século 21.
O nexo entre nossas cidades e a dinâmica mundial não se configura como uma construção artificial. Ele é parte da realidade da quase integralidade dos brasileiros. O que acontece é que as cidades brasileiras são muito pouco pensadas a partir de um enfoque cosmopolita. Como se sabe, a globalização cria imensas oportunidades e também instaura um quadro de grandes tensões num mundo que vive mudanças profundas e irreversíveis. As cidades globalizam-se e tornam-se expressão desse cenário dramático, mas dificilmente produzem uma política que leve efetivamente em conta essas grandes transformações, especialmente na esfera da comunicação entre pessoas, entre corporações e instituições, públicas e privadas.
Com raras exceções, o poder público nos municípios mantém-se inercialmente como a “vanguarda do atraso” nesse processo de mudanças avassaladoras que vêm impulsionando a transição para a sociedade do conhecimento, com sua dinâmica de permanente inovação, especialmente na comunicação instantânea entre pessoas e organizações. Mudar essa situação exige dos governantes transparência e abertura à sociedade.
É consensual entre os estudiosos do problema que o desafio está em buscar uma nova concepção de governança, em outras palavras, um modo de governar consonante com a crescente complexidade e diversidade da sociedade do nosso tempo. Indispensável para tanto é a ampliação do diálogo e a interação de uma pluralidade de atores, em relações horizontais, visando a ampliar a participação da sociedade no governo. Ainda de acordo com esses estudiosos, o espanhol Josep Pascual à frente, o conteúdo dessa governança tem como pauta a busca do desenvolvimento econômico e tecnológico integrado aos valores de equidade social, coesão territorial, sustentabilidade e ética. Sem democracia não se pode fazer nada disso.
No século 21, “bom governo” e governança democrática parecem formar uma conjunção absolutamente necessária. Sem desconsiderar a dimensão operacional da gestão pública e menos ainda a estrutura representativa da cidadania, a perspectiva da governança democrática deverá ajudar a consolidar uma cultura política que revalorize a política como território aberto de construção de objetivos democraticamente compartilhados.
Há um século Gramsci fez um incitamento à reflexão dos jovens de Turim por meio da expressão “cidade futura” como metáfora de um novo mundo, de uma nova sociedade. Ao contrário do que se imagina à primeira vista, não se tratava de uma utopia. No século 21 temos melhores condições materiais, tecnológicas e políticas para construir aquele novo mundo imaginado por Gramsci. Mesmo assim, e ainda que provavelmente diversa da ambicionada pelo jovem sardo, nossa “cidade futura” enfrentará desafios imensos, mas sabe que não deve reiterar o passado.
Alberto Aggio
Historiador,
é professor titular da Unesp
O Estado de São Paulo/Brasil Soberano e Livre
O Estado de São Paulo/Brasil Soberano e Livre
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