sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

‘Fitas do Moro’ foi história que nasceu em estado de coma

J.R. Guzzo

É possível que nunca se saiba ao certo o que realmente aconteceu na defunta história das gravações de conversas entre o ministro Sérgio Moro e o procurador federal Deltan Dallagnol, furtadas no ano passado por uma gangue de criminosos digitais de segunda divisão. Durante alguns dias, pelo que será lido no futuro nos arquivos da mídia, o caso foi descrito como uma bomba de hidrogênio capaz de mudar os destinos da República. Hoje, com a apresentação da denúncia penal contra os marginais e o jornalista que divulgou o fruto do seu golpe, parece ter sobrado uma coleção de impressões pequenas. Numa interpretação mais ambiciosa, “as fitas do Moro” foram mais uma pobre Batalha de Itararé – a batalha famosa porque “não houve”, como tantas outras na notável tradição brasileira de multiplicar zero por zero. Numa visão mais realista, não se chegou nem a isso. Foi apenas uma história que nasceu em estado de coma, teve morte cerebral em 24 horas e desde então vive por aparelhos.

Com Sérgio Moro, que pelo roteiro escrito na ocasião, seria destruído e levaria para a cova, junto com ele, toda a Operação Lava Jato, não aconteceu absolutamente nada, porque nada se apurou de real contra ele – seu nome, na verdade, mal apareceu no noticiário neste fecho de novela, quando se apresentou a denúncia. Quem apareceu segurando o caixão, no fim das contas, foram os delinquentes que furtaram suas comunicações, e o jornalista que fez uso delas. É pouco para tanto barulho. Sobra, num gesto final de resistência para dar algum verniz de seriedade ao episódio, uma tentativa de escrever o último capítulo da história como um combate em favor da liberdade de expressão. A dificuldade prática para se montar essa causa será encontrar, ao longo de toda a “narrativa”, algum momento em que a liberdade de imprensa tenha sido desrespeitada.

Não houve, desde que apareceu a primeira fita, nenhum gesto dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário para impedir ou dificultar a publicação de coisa nenhuma. Não se tentou qualquer tipo de censura. Não houve ameaças a ninguém. O jornalista que originou as publicações chegou a receber uma espécie de salvo-conduto do STF, no qual se proibia que a polícia investigasse qualquer dos seus atos. A um certo momento, inclusive, formou-se uma espécie de consórcio entre órgãos de comunicação para dar mais impacto ao que ia sendo divulgado. A única coisa que houve foi um inquérito policial para apurar os crimes cometidos pela gangue. Não se trata de uma opção – é o que a lei manda que se faça. Se o jornalista envolvido na história foi denunciado, é porque o Ministério Público acha que ele participou dos delitos – e não porque publicou as fitas. Um juiz decidirá se aceita ou não a denúncia, e a partir daí a justiça segue seu curso. A liberdade de imprensa não tem nada a ver com isso.

(Publicado no Estadão, em 22 de janeiro de 2020)

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