sábado, 10 de fevereiro de 2018

Reforma da Previdência que quer eliminar privilégios não pode esquecer do funcionalismo

Fernanda Trisotto

Para Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, Brasil já passou da hora de fazer sua reforma da Previdência e para eliminar os privilégios, será preciso mexer também com o funcionalismo antes que o tema perca a disposição da sociedade

O ano novo não teve um começo fácil para o Brasil. As contas públicas estão em frangalhos – tanto o governo federal quanto estados e municípios estão penando para não estourar os gastos. O primeiro puxão de orelha veio logo da agência Standard & Poor’s, que rebaixou a nota de crédito do Brasil e nos colocou ao lado de países como o Vietnã. Entre outras razões, o fato de o Brasil não conseguir aprovar sua reforma da Previdência pesou na avaliação da agência de risco.

Para a economista-chefe da XP Investimento, Zeina Latif, a reforma da Previdência é a espinha dorsal do ajuste fiscal, importante para o governo, e o país já está atrasado por não tomar nenhuma atitude. “Será que a gente vai precisar quebrar de verdade para conseguir fazer reforma?”

Para ela, aprovar algo ainda em 2018 é importante para garantir um fôlego ao próximo presidente. Mas também não dá para ser ‘qualquer coisa’. Uma reforma válida apenas para quem entrar no mercado de trabalho agora seria ruim. A aprovação da idade mínima com regra de transição já é promissora. Porém, deixar o funcionalismo de lado pode significar esquecê-lo por muito tempo. “Todo o discurso do governo nessa nova tentativa de reforma é eliminar os privilégios. Aí na hora que fala que vai aguardar para mexer no funcionalismo meu temor é de que enfraqueça o apelo, a disposição da sociedade por essa reforma que mexe só no INSS”, pondera.
Esse processo ainda é o termômetro dos desafios que o próximo presidente vai encarar para retomar o crescimento. “Agora 2019 é a hora da verdade. O próximo presidente tem de vir com agenda forte, ambiciosa e com muita capacidade de articulação política”, aponta.

Zeina esteve em Curitiba para um evento de lançamento da Patrimono Investimentos, em Curitiba. Ela conversou com a Gazeta do Povo sobre a situação fiscal do Brasil, a reforma da Previdência e as expectativas para o próximo presidente. Leia os principais trechos.

Qual sua avaliação do atual momento do Brasil?
O setor público está nesse colapso, que não é só do governo federal – é dos estados, dos municípios, não tem capacidade de fazer investimentos, tem que atrair o setor privado. Atrair o setor privado não é fácil: você tem, por um lado, muita demanda para infraestrutura e serviços no Brasil, mas por outro é um país onde é muito difícil de fazer negócios. Para você atrair esse dinheiro – porque dinheiro na mesa tem – você tem que arrumar o funcionamento dos avanços institucionais que o país precisa. Tudo isso num contexto de uma sociedade que está muito decepcionada, muito desconfiada, não tem salvador da pátria. É uma sociedade com interesses muito pulverizados. Se por um lado a gente tem uma agenda tão difícil politicamente, por outro lado eu vejo o Brasil melhor posicionado para lidar com isso, com esses problemas, do que no passado.

O país começou o ano com o efeito do rebaixamento da nota de crédito na Standard & Poor’s...
Não concordei com a decisão. O que tem de importante foi reafirmar e ressaltar a gravidade da crise fiscal e da urgência dessas medidas – não tem mais espaço para adiar essas agendas. A S&P, no fundo, falou que está rebaixando o Brasil e colocando no grupo do Vietnã porque o Brasil não consegue aprovar a reforma da Previdência e tem riscos eleitorais, que somando tudo, é prenúncio das dificuldades do próximo presidente. Ela toma a natural incerteza do cenário eleitoral como sinal de que a gente vai ter muita dificuldade com essa agenda e eu acho que está cedo para dizer isso. O que eu penso é o seguinte: tem desafios, são enormes, mas por outro lado o país está mais maduro. A gente não pode tomar a incerteza como a certeza que tudo vai dar errado, porque pode dar certo. A incerteza também é para o bem – pode ser que a gente se surpreenda.

No que isso impacta a projeção do Brasil para os próximos anos?
As manifestações de colapso do estado estão aí e podem piorar muito este ano. Tem muitos estados e o próprio governo federal em situação bastante difícil: febre amarela e não tem seringa, estado que não consegue pagar folha de pagamento. É torcer para que não aconteçam catástrofes e coisas do tipo, porque a nossa capacidade de reação vai ser muito limitada. Agora, a gente vai construindo um cenário para que o próximo presidente e a nossa classe política, que é muito pragmática, vão conseguir avançar. A discussão é quem, dentre esses candidatos, vai ter mais capacidade política de entregar uma agenda mais ambiciosa, de forma que o Brasil consiga ter ciclos econômicos daqui para frente tão acentuados. Será que a gente vai precisar quebrar de verdade para conseguir fazer reforma? E só vai fazer reforma quando a coisa vai mal ou teremos mais maturidade para fazermos reformas com mais frequência? Hoje a gente tem mais chance de enxergar um cenário benigno do que no passado. Venezuela a gente não vai virar. O Brasil tem instituições mais sólidas. Mas a questão é essa: quem vai poder entregar mais? Essa resposta a gente não vai ter em 2018, teremos em 2019, quando o futuro presidente tomar posse. Provavelmente não vai ter lua de mel, vai ter de chegar já mostrando a que veio. Acho que podemos nos surpreender positivamente, tanto do ponto de vista de reação da economia quanto de não ter uma volatilidade expressiva. Agora 2019 é a hora da verdade. O próximo presidente tem de vir com agenda forte, ambiciosa e com muita capacidade de articulação política, porque são agendas que não dependem só de boa vontade e de estar conectado. Isso é importante, mas ele terá que ter capacidade de articulação política e diálogo.

Uma das medidas que ajudariam a missão do próximo presidente é a aprovação da reforma da Previdência, mas não há sinais de que ela sairá esse ano. É melhor qualquer reforma do que nenhuma mudança?
Depende. Acho improvável que aconteça, mas digamos que o presidente faça uma reforma da Previdência só mudando as regras para quem ingressar agora no mercado de trabalho. Se for para fazer isso, é melhor não fazer, porque vai ser uma reforma ruim. Agora, se você consegue fazer idade mínima com regra de transição, manter isso, vai ser um salto importante. Eu acho que a dificuldade do governo na aprovação da reforma da Previdência não é exatamente a questão de capacidade de articulação política. É porque o tema é de fato difícil, demorou para esse debate avançar e cair a ficha da sociedade da importância da reforma, que estamos envelhecendo e não dá mais para manter o desenho do passado. E vejo ainda muita resistência do funcionalismo em relação às mudanças, que faz uma pressão muito grande dentro do Congresso. Isso é bastante claro quando a gente olha ao dia seguinte do anúncio do governo de que iria adiara a votação da reforma para depois do Carnaval, no dia seguinte, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, falou que ia ter de flexibilizar adicionalmente as propostas de reforma da Previdência da parte do funcionalismo. Mais recentemente, saiu na imprensa que o governo também discute não mexer com funcionalismo agora, deixar essa parte para o próximo presidente e fazer só o ajuste do INSS. Se caminhou desse jeito, a minha interpretação é de que fato aí é que tem uma grande resistência.

E o discurso do governo para emplacar a reforma é de redução de privilégios...
Todo o discurso do governo nessa nova tentativa de reforma é de uma reforma que não vai impactar as pessoas mais pobres – vai impactar os não-pobres, e, portanto, tem essa questão de justiça e de eliminar os privilégios. Aí na hora que fala que vai aguardar para mexer no funcionalismo – mesmo que mexa só no INSS já seria importante – mas o meu temor é de que ao não mexer no funcionalismo enfraqueça o apelo, a disposição da sociedade por essa reforma que mexe só no INSS. A gente vê um quadro difícil para aprovação. Mesmo que seja só INSS, por mais decepcionante que seja não mexer com o funcionalismo. E essa questão do funcionalismo é urgente no caso dos Estados. Mesmo que isso não aconteça, só fazer o INSS já é importante. Quanto mais a gente avançar agora, mais o próximo presidente vai ter capital político para avançar em outras agendas: a reforma dos militares, a questão do funcionalismo, reforma tributária. Então, se você sobrecarrega demais a missão do próximo, obviamente que poderá ter reveses.

E não fazer nada com a Previdência afeta muito as contas públicas.
A reforma da previdência é a espinha dorsal do ajuste fiscal. Nesse orçamento deficitário, que ainda não temos o número, mas deve ser mais de 2% ou até 2,5% do PIB, no nível federal 57% das despesas são de previdência e tem outras despesas obrigatórias – a gente já está gastando toda a nossa margem. Não é à toa que não tem dinheiro para investir. Independe de regra de ouro, de regra de teto – isso não é saudável para o país: o dinheiro acabou. A reforma da previdência é essencial, e a gente está atrasado. Qualquer país minimamente arrumado estabeleceu a idade mínima há 20 anos – nós tentamos fazer isso e não conseguimos. Eu não estou comparando o Brasil a países desenvolvidos. Estou comparando com países parecidos como a gente. Nossos vizinhos da América Latina já fizeram suas reformas para adequar a idade mínima. É um absurdo o Brasil não ter idade mínima para aposentar. Aliás, tem: para os mais pobres, que se aposentam, a depender da regra, com 60 ou 65 anos. Justamente quem tem mais renda, que é quem se aposenta por tempo de contribuição, não tem idade mínima para aposentar. É um equívoco do ponto de vista fiscal e de equidade.

Quais as opções do governo: enxugar a máquina? Mexer na regra de ouro, como vem sinalizando?
Já passou dessa fase. Claro que uma reforma administrativa seria muito boa, mas já não resolveria. A regra de ouro é uma boa regra: o governo só pode emitir dívida pública para amortizar a própria dívida e para investimento, não pode usar para gastos correntes. Ela fala que esta geração não pode deixar a fatura para a próxima. Quer ter gastos com previdência, funcionalismo, com isso e aquilo? Pois é, vai ter que fazer com carga tributária. Já deixamos um quadro bastante ruim para os nossos jovens de é um país que não cresce e ceifa oportunidades. Ainda vamos deixar mais? Há uma questão concreta que é a seguinte: até que a gente tenha a aprovação de reformas estruturais e elas, de fato, se materializem nos cofres públicos, a gente vai passar por riscos. O número talvez fique menor, mas hoje é algo na casa de R$ 200 bilhões para cumprir a regra em 2019. O próximo presidente já entra correndo o risco de cometer crime fiscal e isso ameaçar o seu mandato. Flexibilizar a regra de ouro, se bem feito, não compromete a solvência de dívida nossa. É um ajuste de curto prazo, em que se põem contrapartidas, limitações, para que isso não gere precedentes. No fundo, a questão é como vai arrumar R$ 200 bilhões ou algo nessa casa em 2019? Não tem mais dinheiro do BNDES, certo? CPMF não tem como – vai cobrir R$ 50 bilhões e olha lá. Mesmo que você faça um conjunto de medidas, é um volume de recursos muito grande num país que tem sérias limitações para aumentar a carga tributária. A opção é diluir por alguns anos, mas com contrapartidas, como não aumentar funcionalismo. E o governo não pode mandar um orçamento já violando a regra. Alguma flexibilização será necessária. A questão é como fazer isso sem abrir precedentes e sinalizar irresponsabilidade fiscal. Simplesmente flexibilizar, sem nenhuma contrapartida, aí seria um tremendo equívoco porque abre um precedente muito ruim.

Este ano vamos escolher o próximo presidente. Há espaço para um debate eleitoral de nível?
Durante a campanha, seria ingenuidade pensar que os candidatos vão querer discutir o seu desenho de reforma da previdência. É ingenuidade achar que teremos esse tipo de conversa. A questão na agenda econômica é não negar o problema, porque isso vai ser questionado. Não há espaço para discurso populista, porque para ser populista é preciso ter dinheiro no bolso. A tendência dos candidatos é de ter uma postura mais responsável, porque a campanha de 2014, em que os problemas foram negados e passou-se uma imagem de um país que não existia, deixou lições. Os equívocos de 2014 deixaram lições para a classe política: tem limite para você negar problemas, porque você corre o risco de ganhar a eleição e aí tem que fazer o ajuste da casa. E como é que faz? Num país que passou por uma crise como essa – em que chefes de família perderam emprego, com crise de segurança, colapso do setor público – a sociedade precisa entender a importância do equilíbrio fiscal par a gente recuperar a capacidade do estado de oferecer serviços públicos. Aí tem que ser o debate, não de ter ou não problema, mas em cima de quais são as propostas de cada um. Qualquer que seja o partido e a orientação do partido, a discussão deve ser em cima das propostas e não de um falando que tem problemas e o outro falando que não tem.

Gazeta do Povo

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