domingo, 24 de novembro de 2019

Todo poder emana da Lei

Fábio Chazyn

Tá na boca do povo: “É muita lei e pouca vergonha!”. No Brasil, a lei é pra-inglês-ver e pobre respeitar. Culpa de quem? Assim como não se pode condenar as raposas por gostarem de galinhas, não se pode condenar o criminoso poderoso por gostar da impunidade.

A hipocrisia das nossas leis vem de longe. Vejamos o caso da nossa Lei Magna. A nossa primeira Constituição de 1824, ainda sob o império, exaltava as virtudes da igualdade em pleno país da escravidão; a de 1891, já sob a república, gabava-se por promover o sufrágio universal, enquanto a fraude eleitoral corria solta e mulher nem votava; a de 1937 enaltecia as atribuições de um Congresso quase sempre fechado; a de 1969 garantia os direitos à liberdade do cidadão sob o AI-5. Já a mais recente, conhecida como a que garante direitos ao cidadão, ah! essa garante mesmo... Estabelece que um cidadão não pode ser preso antes de ser condenado três vezes por um sistema jurídico super ocupado e emperrado.

Quando se trata de ladrão-de-galinhas, ele vai preso mesmo sem condenação alguma e fica mofando na cadeia esperando que os juízes “arrumem” um tempo para diminuir a pilha dos 100 milhões de processos pendentes no judiciário brasileiro para, então, avaliarem se o cara foi prêso com razão ou sem razão.

A lei é para todos, pois todos são iguais perante ela. Mas têm uns mais iguais do que outros. Quando se trata de transgressor endinheirado, independentemente da gravidade e do estrago causado pelo seu delito, a justiça permite que ele espere, em liberdade, o processo tramitar de recurso-em-recurso até o crime prescrever.

Se não é gozação, é conspiração!

Se os operadores de leis permitem brechas na sua elaboração e/ou na sua aplicação, não pode restar dúvida de que se trata de gente de índole duvidosa que quer conquistar espaço político e econômico com a covardia dos que agem com conchavos nas sombras dos gabinetes ou nas garagens dos palácios...
Mas também não se pode ignorar que agora vivemos na era da “Lava-Jato” e da “Internet”. A primeira permitiu mostrar o problema, enquanto a segunda viabiliza a solução do problema permitindo que a ‘voz-do-povo’ seja ouvida.

Daqui pra frente, a culpa por deixar a “putaria-correr-solta” recai sobre os próprios cidadãos que titubeiam em tirar a raposa do galinheiro.

Convenhamos! Se a lei não consegue eficácia, é porque o sistema judicial atual é ‘poroso’, leniente com os “amigos da cúria”, sem puni-los pelos seus crimes. Na medida em que se optou pela prioridade absoluta da garantia da “plena defesa do contraditório”, o réu adquiriu o direito de procrastinar sua condenação indo de recurso-em-recurso. Seria ingenuidade ou má-intenção não se admitir que, apesar do mérito da opção, ela acaba abrindo oportunidades para a bandidagem agir impunemente.

Como é que chegamos a esse ponto? A explicação não precisa de muito detalhe. Um rápido passeio na história basta para mostrar o que aconteceu.
Nos tempos idos, as relações entre a população tribal eram regidas pelo “Direito-Costumeiro”. Este nasceu do “Direito-Natural” ditado pela “Lei-das-Selvas” que, se de um lado permitia liberdade à vazão do instinto predador do Homem, por outro lado ele o praticava seguindo um código tácito que impunha a regra do ‘jogo-limpo’ da luta e da piedade para com o perdedor. Era o postulado da “Lei-Divina”.

Com o passar do tempo, foi necessário se inventar regras de organização e controle de territórios que vinham sendo anexados por conquistadores. Foi o que aconteceu durante a formação do Império Romano. Assim surgiu o primeiro código escrito, conhecido como a “Lei das Doze Tábuas”, que reconhecia explicitamente que a vontade do povo tinha força de lei e que as leis não podiam ser feitas contra o indivíduo.

Mais tarde, durante as invasões européias pelos bárbaros vindos do Norte, que dividiram o Império Romano em feudos, houve a reimplantação da ordem regida pelo “Direito-Costumeiro”. Desta vez, Germânicos. Na sequência, os feudos se reconsolidam e formam  reinos sob o jugo de monarcas. Estes acabam dando vida ao sistema híbrido do “Direito Romano-Germânico”, que servia tanto para o controle de grandes territórios, como para não subverter hábitos já arraigados nas populações envolvidas.

Naquela época, a natureza absolutista do monarca via-de-regra incitava aspirações e conspirações. A autoridade-opressora vivia instável. Acabou encontrando refúgio na retórica da razão-libertadora proposta pelos filósofos Iluministas que promoviam o conceito do governo focado na “vontade geral”. De fato, a conversão do foco nos valores individuais para os valores da coletividade foi a bandeira que procuravam para conseguirem manter-se no poder.

Porém, promover a “vontade geral” implicava agregar a realização de objetivos sociais às tarefas ligadas à manutenção da ordem. Esta nova atribuição do governante acabou levando à formação de uma casta tecnocrata-legisladora que tinha o propósito de criar códigos rígidos e regulamentados. Foi o início da era do “positivismo-jurídico”. 

Esse “Direito-Positivo” foi tomando mais corpo quanto mais se afastava do “Direito-Natural”. No processo, os legisladores se debatiam para não entregar o poder político aos julgadores interpretadores das suas leis. O divórcio entre o “Direito” e a “Moral” era inevitável dentro da pretensão de tutelar o cidadão em todos os aspectos da sua vida, pois era preciso “regrar o uso para evitar o abuso”.

Daí foi só um pulo para que os fazedores de leis as disseminassem com crescente positivismo na procura da segurança-jurídica e, em consequência, da estabilidade dos inquilinos do poder...

Enquanto evoluía o “Direito Romano-Germânico” fertilizando a prática do “Direito-Positivo” nos países em que essa cultura se irradiava, desenvolvia-se outro processo nos de cultura inglesa.

Com as mesmas origens tribais, o “Direito-Costumeiro” dos povos primitivos da Inglaterra deu lugar ao “Direito-Comum”. Trata-se de um sistema de ‘leis-não-escritas’, ou seja, baseado nas experiências passadas. Lá, a lei é jurisprudencial. Às memórias dos costumes da região registradas nas Cortes de Westminster  agregaram-se normas produzidas pela Chancelaria do monarca. Mas a sua aplicação é somente subsidiária. As sentenças continuam centradas nos usos e costumes, que são exaltados durante o confronto de argumentações orais entre os patronos dos litigantes.

É a letra-quente do direito-comum no Reino Unido, Estados Unidos e outros herdeiros, em oposição à letra-fria do direito-civil baseado no “Direito Romano-Germânico”, adotado no Brasil.

Aqui na terrinha, enquanto os fazedores-de-leis exorbitam na produção de normas nos labirintos da burocracia, os interpretadores-de-leis arbitram em nome da ‘mutação’ dos costumes, construindo regras ‘ao vivo’. Estes estão se revelando campeões entre os “caga-regras”, ainda que os legisladores tenham conseguido a façanha de produzir quase 6 milhões de leis desde a outorga da Constituição de 1988. Já regulamentaram um terço dela. “Só” faltam os outros dois terços... mais, é claro, a regulamentação das confusões criadas pelo STF!

A crescente audácia de discricionariedade do STF aparentemente tem sido a forma que encontrou para continuar participando da “política” de compadrio num ambiente de presidencialismo-de-coalizão que tentou excluí-lo da ‘orgia’ do toma-lá-dá-cá...

Enquanto isso, nem os fazedores-de-leis, nem os interpretadores-de-leis aceitam devolver ao cidadão a sua discricionariedade no exercício de sua cidadania, sob o pretexto de que ele é incompetente. “O brasileiro não sabe nem votar!”, reverberam em coro. Acham que é preciso proibir o cidadão de decidir as coisas com o seu livre-arbítrio. É necessário normatizar tudo, pois “tudo o que lei não proíbe, é permitido”. Sob o pretexto de proteger a segurança do cidadão incapaz, “não se pode deixar que ele entre na água sem saber nadar, ainda que, sem entrar na água, ele nunca vai aprender a nadar”.

No Brasil, sob o atual sistema político, o cidadão segue tutelado, fadado a nunca se emancipar, e o STF segue paternalista, como pretenso defensor obstinado da segurança de um povo infantilizado, “interpretando” o que é ser cidadão brasileiro e o que ele quer e precisa.

O STF “interpreta” até o que são provas incriminatórias. Age como se a sua versão é mais importante do que o fato. Quando os ministros da Corte “interpretam” que a prova não é “lícita”, determinam que não há prova. O STF se apropriou do direito de tergiversar sobre a licitude da prova. Insiste que o que o cidadão vê ou ouve não é necessariamente a verdade, mas sim o que magistrado “quer” ver ou ouvir.

Quem ganhou de verdade com a Carta de 88 não foram os cidadãos, como ela prometeu na sua letra-fria, mas sim os magistrados que ganharam o poder de interpretar-e-aplicar a lei segundo a sua versão do fato.

Os membros do STF viraram ‘pop-star’. Na mídia o tempo todo, desfilam como ativistas-especialistas. Posam orgulhosos nos seus ‘tronos’ televisionados ostentando um vernáculo inacessível ao cidadão comum e reafirmando a sua distância deste, sem dissimular o seu desprezo à imposição legal da igualdade de todos perante a lei. Usam e abusam de uma verborreia tão rebuscada que beira a necessidade de recorrer-se a um interprete do vernáculo para interpretar o interprete das leis. Tarefa difícil esta que tem sido desempenhada pelos tradutores para a língua libras.

Fingem que entendem de tudo, da lei, da sociologia e até da ciência, em episódios novelescos passando pela pesquisa com célula-tronco, direito ao aborto de feto acéfalo, união de pessoas do mesmo sexo, etc. etc.

Usurpam do povo a última palavra. Desprezam o mandato eletivo, que lhes daria pelo menos um mínimo de legitimidade, para subir no pódio do melhor emprego vitalício do País. Ousam decidir o que querem, independentemente do que quer a sociedade, que desprezam. Se não conseguem em solo, constroem conluios na sua “turma” e suspenses numa torcida que, acreditam, já está castrada e não pode reagir.

São os interpretes-guardiães-protetores de tudo. Da “vontade geral” dos cidadãos, do funcionamento da sociedade e até da política. Metem o bedelho em tudo. Tudo serve como pretexto para consolidarem a sua hegemonia sobre os outros poderes da Nação. Decidem sobre o destino dos corruptos, dos infiéis partidários, de quem pode ou não pode ter foro privilegiado, por prisão após sentença em 2ª instância judicial, etc. etc. e até qual instituição pública é confiável ou não...

É o extremo-poder do mandatário da extrema-discricionariedade. Sou ousadia é desmesurada. Desprezando a camisa-de-força que são submetidos os juízes pelo positivismo jurídico, os podem-tudo do STF têm a audácia de construir a argumentação sobre o ‘mutatis mutandis’ dos costumes e converter o errado no certo.

A extrapolação de poder pelo STF é o sintoma da doença que desnaturou o positivismo-jurídico no Brasil e que maculou o sistema de separação de poderes do Montesquieu. O lado bom disso é que o vedetismo dos ministros daquela Corte age para revelar o seu descolamento com a sociedade Levanta suspeitas de que legisladores e julgadores inescrupulosos infiltrados nos poderes institucionais do País têm usado seus cargos para desfrutar de poder discricionário em benefício próprio.

Não há como negar que o atual sistema é vulnerável ao ataque de covardes impatrióticos. O povo já pôs o dedo na ferida. O povo está certo, “tem muita lei e pouca vergonha”. E também já tá-na-cara, só não vê quem não quer: estamos às vésperas da mudança de um sistema jurídico que não funciona como deveria. Estamos às vésperas do golpe-de-misericórdia para por fim a esta Constituição que nasceu Cidadã e vai morrer Vilã.

Tá na hora de pensar na próxima. Que ela não seja “porosa”, pondo fim à possibilidade dos criminosos usarem a lei como poder contra a impunidade.
Que não tarde mais. Afinal, já passou da hora de tirar a raposa do galinheiro!

No próximo artigo, “De volta para o Futuro”, vamos examinar as alternativas de um novo arcabouço jurídico para o Brasil.

Alerta Total

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