segunda-feira, 17 de junho de 2019

Dos EUA ao Brasil, como presidentes tentam governar sem Congresso

Fernanda Odilla

Com uma base dispersa no Congresso, que dificulta a articulação e não garante certeza de apoio em votações importantes, o presidente Jair Bolsonaro tem recorrido à assinatura de decretos para tirar do papel promessas de campanha, mudando leis e reorganizando a administração federal sem depender diretamente dos votos de deputados e senadores.

Nos primeiros cinco meses de mandato, Bolsonaro editou 157 decretos presidenciais, e chegou a dizer que tem mais poder que o presidente da Câmara justamente por ter uma caneta à mão para assinar esse tipo de expediente.

Ele usou esse poder para editar, por exemplo, o decreto de armas, que pode até ser derrubado pelo plenário do Senado em votação prevista para essa semana se a maioria entender que a medida contraria a lei.

Para agradar a base aliada, o presidente tem tentado ainda tirar do papel com sua caneta projetos de congressistas aliados via decreto, como fez com o fim do horário de verão, proposta do deputado João Campos (PRB-GO) que tramitava lentamente.

Bolsonaro, contudo, não é o presidente que mais editou decretos – Collor, Itamar, FHC e Lula editaram mais na média mensal, por exemplo – e tampouco o Brasil é o único que tem usado esse tipo de expediente que permite mudar leis e tomar decisões administrativas sem autorização do Congresso.

É o que revela a pesquisa Presidência Institucional na América Latina, feita no Centro para Estudos Latino Americanos na Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA) pela cientista política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Magna Inácio.

MP x Decreto
Diferente das medidas provisórias, que necessariamente precisam da aprovação do Congresso para continuar em vigor, os decretos são, como diz Inácio, decisões unilaterais do presidente. No Brasil, os decretos entram em vigor imediatamente após a publicação no Diário Oficial, sem apreciação prévia do Congresso.

"Os decretos (tendem a ser) pouco analisados, pois seus efeitos são considerados discretos, residuais. Mas não são", afirma a professora Inácio que analisa a edição desses decretos em países como os Estados Unidos, Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Peru e Brasil desde a década de 1980.

Ela assinala que, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, na América Latina, quanto mais força o presidente tem no Congresso, maior é o número de decretos assinados. A orientação ideológica, ela acrescenta, não é o que mais influencia o número de decretos editados.

"Essas decisões unilaterais dependem dos poderes que o presidente tem e do tamanho da maioria que o apoia. São utilizadas por presidentes com diferentes orientações ideológicas", afirma, lembrando que decretos não têm força de lei e podem ser questionados - e revistos – pelo próprio Congresso ou pela Justiça.

Exagero
"Obviamente, presidentes com agendas de reformas mais ambiciosas e divergentes dos governos anteriores podem recorrer mais a esse tipo de decreto, seja para rever regulamentação de leis e decretos prévios ou reorganizar os órgãos do Executivo de acordo com as suas prioridades", completa a professora.

O estudo indica que presidentes dos EUA usam menos esse tipo de expediente se comparados aos líderes de países sul-americanos.
Mas, nos Estados Unidos, Donald Trump tem recebido críticas por exagerar no número de Ordens Executivas, medidas administrativas similares aos decretos no Brasil que permitem que o presidente americano ponha em prática decisões sem aprovação prévia do Congresso, como por exemplo, definir como as agências federais devem usar seus recursos e até inverter decisões tomadas anteriormente.

Nos primeiros 100 dias de governo, o presidente americano assinou 30 ordens executivas. Foram 11 ordens executivas a mais que o democrata Barack Obama e 19 mais que republicano George W. Bush.

Para construir o muro na fronteira com o México e, assim, tirar do papel uma promessa de campanha, Trump assinou uma ordem executiva. Também usou o expediente para construir dois oleodutos descartados por Obama e ainda mudou a lei para ficar mais fácil demitir funcionários do governo federal e restringir a ação dos sindicatos que os representam.

Trump também assinou, em 2017, uma nova ordem que ficou conhecida como "comprar (produtos) americanos e contratar americanos" ("Buy American, Hire American") para o país aplicar "de forma rigorosa" as leis migratórias e o controle de concessão de vistos de trabalho a estrangeiros.
Picos

O estudo da professora revela que, nos países da América do Sul, o número anual de decretos editados varia significativamente e tende a atingir picos em momentos críticos.

O número de decretos disparou durante a implementação intensiva de reformas estruturais, como os planos de estabilização da inflação e de privatização realizados por Carlos Menem (1989-1999) e no início do período dos Kirchner (2003-2015) na Argentina.

O Paraguai, por sua vez, experimentou dois picos, durante as administrações minoritárias e politicamente instáveis de Juan Carlos María Wasmosy Monti (1993-1998) e Fernado Lugo (2008-2012).
Já o Peru, onde o Congresso tem diversas ferramentas para controlar o Executivo, apresenta um número crescente de decretos emitidos, especialmente após o período autoritário de Alberto Fujimori (1990-2000).

Decretos no Brasil
A professora Magna Inácio diz que, no Brasil, o presidente que mais editou decretos foi José Sarney (com média mensal de 113,2 decretos). Em seguida, aparece FHC com média de 104,7 decretos por mês. Jair Bolsonaro assinou, até abril, uma média de 31,4 decretos por mês.

Nesses números estão incluídos os chamados decretos numerados e os não numerados. O expediente de decretos não numerados foi criado pelo então presidente Fernando Collor, em 1991, e perdurou até 2018, quando foi extinto por Michel Temer.

O decreto não numerado era usado para decisões como abertura de créditos, declaração de utilidade pública - como desapropriação para fins de reforma agrária -, concessão de serviços públicos, criação de grupos de trabalho e declaração de vacância de cargos. Os decretos numerados eram restritos às decisões com efeitos normativos, ou seja, aqueles que especificam os detalhes de como uma lei será aplicada.

Na prática, são dois os tipo de decretos: um que vale para regulamentar uma lei, determinando a forma de aplicação da lei, e outro para modificar a estrutura administrativa do Executivo.

"O decreto regulamentar permite ao presidente implementar ou modificar seletivamente uma lei", diz Inácio, citando como exemplo o decreto das armas, editado pelo presidente Bolsonaro em maio, que alterou a lei existente, ampliando possibilidades de porte de armas.

O outro tipo é o decreto administrativo que permite, desde 2001, modificar a microgestão de políticas e programas de governo. "Ou seja, ele pode transferir órgãos e competências entre unidades da administração federal por decreto, para fortalecer ou enfraquecer certas áreas de política ou para premiar ou punir certos grupos de interesses", explica a professora.

"Os dois tipos de unilateralismo permitem ao presidente certa flexibilidade para governar", justifica a professora.
Segundo ela, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva usaram extensivamente o expediente para implementar políticas distributivas, como desapropriação de terras para fins de reforma agrária.

Já os decretos de Michel Temer e Bolsonaro têm, segundo a professora, foco principalmente na gestão das políticas públicas e a estrutura do Executivo, por meio de decisões direcionadas aos servidores públicos e órgãos do executivo.

'Articulação é fundamental'
Bolsonaro pode não ser o presidente que mais editou decretos, mas é um dos poucos que fala abertamente sobre o "poder da caneta" que tem nas mãos.

No mesmo dia em que se reuniu com os chefes do Legislativo e do Judiciário para discutir um "pacto pelo Brasil", o presidente declarou ter mais poder que o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ).

"Hoje pela manhã tomando café com Dias Toffoli (do STF), (Davi) Alcolumbre (presidente do Senado) e Maia eu disse para Maia: com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto. Logicamente decretos com fundamento", disse Bolsonaro, horas depois do encontro, durante discurso no lançamento da Frente Parlamentar da Marinha Mercante, em Brasília, em 28 de maio de 2019.

O estudo de Magna Inácio indica ainda que não são os presidentes com coalizões pequenas e bases fracas os que governam por meio de decretos justamente pela dificuldade de conseguir os votos da maioria.

"Presidentes com apoio majoritário no Congresso utilizam mais decretos porque também aprovam mais leis e as implementam rapidamente. Além disso, aqueles que formam coalizões utilizam esses decretos para gerenciar os seus aliados dentro do Executivo".

Mas, segundo a professora, decretos representam um risco maior para presidentes com bases minoritárias, como as de Collor e Bolsonaro, ou para os que lideram coalizões mais heterogêneas, como aconteceu com Dilma Rousseff.

"Para serem bem-sucedidos, os presidentes precisam antecipar os humores do Congresso, as reações fora do Parlamento. Para isso, a articulação com o Congresso é fundamental. Líderes e legisladores soam alarmes diante de propostas sem suporte parlamentar, impopulares ou que serão vistas como ameaças dentro do Congresso. Ou seja, o presidente pode evitar desastres se souber ouvir o Congresso e decifrar seus sinais", avalia Inácio.

"E, uma vez diante de reações do Congresso, presidentes fracos não têm votos. Esse roteiro nós aprendemos com Collor e Dilma no Brasil. Bolsonaro, ao dizer que é mais poderoso do que o presidente da Câmara dos Deputados porque pode fazer decretos com a sua Bic, parece ainda não ter entendido essa lição. Ao contrário, o presidente vinculou claramente a disposição em agir unilateralmente a uma disputa com o Congresso".

'Contraintuitivo'
O professor Cristóbal Rovira Kaltwasser, da escola de ciência política da Universidade Diego Portales, no Chile, diz que o estudo de Magna Inácio, à primeira vista, parece ser "contraintuitivo" por indicar que presidentes com bases grandes e não os com menos apoio no Congresso são os que tendem a editar mais medidas.

Mas, segundo Kaltwasser, a pesquisa revela um problema chave do chamado presidencialismo de coalizão - não só no Brasil como na América Latina. Para o professor, o estudo abre novas frentes de pesquisa como as dificuldades de se governar com uma coalizão grande mas fragmentada e diversa e ainda sobre as prioridades dos presidentes e de que forma eles executam suas políticas.

O professor observa que Venezuela e Colômbia, por exemplo, usam do expediente. Conta ainda que no Chile uma medida administrativa está sendo usada para mudar uma lei aprovada no governo anterior, de Michelle Bachelet, que permite o aborto em casos de risco de vida da mulher, estupro e malformação fetal fatal.

Cristóbal Rovira Kaltwasser pondera que decretos são importantes porque dão agilidade a determinadas ações que requerem urgência. Cita, por exemplo, medidas que precisam ser tomadas em caso de desastres naturais, como terremotos.

"O problema é o uso sistemático para temas que não estão relacionados a emergências", avalia, emendando que é uma medida usada por líderes tanto de direita quanto de esquerda "com uma agenda mais radical".
Magna Inácio cita como exemplo a agenda de governo de Bolsonaro, que tem sido, em parte, implementada via decretos.

"É o teor dos decretos, mais do que o número, que parece sinalizar um movimento mais radical de unilateralismo presidencial no governo Bolsonaro", opina a professora, lembrando que algumas medidas do presidente têm sido questionadas e correm o risco até de serem invalidadas.

Preço alto
A aparente agilidade assegurada pelos decretos não é garantia de que o presidente vai poder impor sua agenda sem percalços ou questionamentos.
No caso de Temer, um dos decretos assinados por ele rendeu também um processo criminal. Em abril de 2019, Temer virou réu por ter editado o decreto dos portos. O inquérito foi aberto em 2017, a partir de delações premiadas de executivos da empresa J&F. Para o Ministério Público Federal, o ex-presidente cometeu os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro para editar um decreto que beneficiaria uma empresa. Temer nega.

E o impeachment Dilma Rousseff também foi fundamentado nos decretos assinados pela então presidente. Dilma perdeu o cargo após ter sido acusada de editar créditos suplementares para atrasar pagamentos da União a bancos públicos e, assim, manobrar o orçamento sem a aprovação do Congresso.

Em relação aos decretos editados por Bolsonaro, há questionamentos e pedidos para invalidá-los. Só na Câmara, há 117 pedidos para sustar 20 dos decretos assinados por Bolsonaro. Há ainda ações no Supremo questionam a legalidade da "canetada" do presidente em relação à flexibilização do porte de armas.

Essa semana, Bolsonaro viu a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovar relatório que pede a suspensão do decreto editado em maio para alterar regras de uso de armas e de munições, facilitando o porte. Agora, a suspensão vai ser discutida pelo plenário do Senado.

O presidente também viu o STF impor limites a um outro decreto que extinguia conselhos. Por unanimidade, os ministros determinaram que o governo federal não pode extinguir conselhos que tenham sido criados por lei - estudo do Ipea de 2017 indica que 40% dos conselhos foram criados por lei.

Da BBC News Brasil em Londres


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