domingo, 7 de janeiro de 2018

Por que milhões de jovens com alta escolaridade estão abandonando a Rússia

BBC-Mundial

A principal ativista ambiental da Rússia é uma das centenas de milhares de pessoas - a maioria jovens com alta escolaridade - que fizeram as malas e deixaram o país nos últimos anos. Os russos têm até um nome para o fenômeno: "poravalism" (algo como "movimento da hora de cair fora"). A repórter da BBC Lucy Ash conta quais são as razões apresentadas por elas:
"Se tenho saudades de casa?", diz Evgenia Chirikova. "Na verdade, não.

Muita gente aqui fala minha língua. Eles são amigáveis, cheios de energia e curiosamente educados. Estou vivendo na Rússia dos meus sonhos!"
Ela fala da Estônia, onde tem morado nos últimos dois anos e meio, fugindo da perseguição política que sofreu por ser ativista ambiental e por criticar o presidente Vladimir Putin.

Chirikova se tornou militante há 11 anos, depois de conhecer com a família a floresta Khimki, antigo local caça dos czares, cheio de carvalhos centenários, javalis selvagens e borboletas raras.

"Eu estava grávida, planejando um piquenique com minha filha mais velha e meu marido, quando vi uma coisa estranha", conta. "Havia cruzes vermelhas pintadas em diversos carvalhos e bétulas. Me perguntei porque essas árvores perfeitamente saudáveis precisariam ser cortadas."
Khimki era uma reserva natural, conhecida como o "pulmão verde" de Moscou. Chirikova e o marido, Mikhail, tinham se mudado para a região justamente para fugir do caos do centro e para estarem próximos à natureza.

Ao voltar do passeio, Chirikova ligou para a autoridades ambientais para relatar o que tinha visto. Ela tinha suposto que uma empresa estivesse ilegalmente tentando burlar a lei.

Mas ficou abismada ao descobrir que o desmatamento tinha sido aprovado para a construção de uma rodovia que cortaria a floresta pelo meio - mesmo havendo outras rotas possíveis menos agressivas para o ambiente.
Membros do Ministério de Recursos Naturais disseram a ela que a decisão tinha sido aprovada pessoalmente por Vladimir Putin - que depois, já como primeiro-ministro, assinou um decreto flexibilizando a proteção à floresta para permitir obras de "transporte e infraestrutura".

Chirikova suspeitava de que a verdadeira razão para a autorização era abrir terreno para o mercado imobiliário.

Ela deixou seu emprego como engenheira para organizar uma oposição ao projeto. O primeiro protesto do seu grupo, Salve a Floresta Khimki, reuniu 5 mil pessoas e colheu 50 mil assinaturas - uma das maiores demonstrações em favor do ambiente na história da Rússia.

Sua atuação convenceu o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento e o Banco Europeu de Investimento a pararem de financiar a rodovia.

Perseguição
Mas o sucesso teve um custo: Chirikova foi presa várias vezes, outros ativistas foram agredidos e jornalistas que cobriam a história foram perseguidos.

Quando o editor do jornal de Khimki, Mikhail Beketov, levantou suspeitas de que políticos locais estariam lucrando com o projeto, seu cachorro foi morto, seu carro foi incendiado e ele foi agredido fisicamente de maneira tão brutal que sofreu sequelas no cérebro e nunca recuperou a habilidade de falar. Morreu de ataque cardíaco alguns anos depois.

Chirikova se lembra de visitá-lo na UTI. Ele havia perdido diversos dedos, tinha tido uma perna amputada e perdido parte do crânio após apanhar com uma barra de ferro.

"Minhas pernas começaram a tremer tão violentamente que sentei no chão do hospital", diz ela. "Pela primeira vez, eu estava realmente com medo. Qualquer um que tivesse capacidade de fazer isso com outra pessoa não tinha nenhum princípio moral. Eu me dei conta de quão mafioso era o regime que tinha tomado o poder no meu país."

Chirikova foi atacada de outra forma - através do seu ponto fraco, seus filhos.

"As autoridades espalharam mentiras sobre mim, dizendo que eu batia nas minhas filhas e não as alimentava direito", diz ela. "Um cara do serviço secreto apareceu no meu prédio e pediu para meus vizinhos assinarem um documento dizendo que eu era uma péssima mãe."

Sua filha mais velha começou a ter medo de ir para a escola por causa de diversos homens mascarados que ficavam em carros observando a família. Quando alguém batia na porta, as meninas se escondiam debaixo da cama.
Eventualmente a família teve de se mudar para um bairro mais próximo ao centro de Moscou. Mas a perseguição continuou, dessa vez na forma de ameaças por telefone.

Chirikova diz que suas filhas tiveram que fazer três anos de terapia para se recuperar. E que sua ansiedade não parava de piorar, principalmente quando o serviço social ameaçou separá-la de suas filhas.

"Eu ficava acordada de madrugada, imaginando o que faria se fosse presa e minhas filhas, mandadas para um orfanato", diz ela. "No fim, foi isso que me fez tomar a decisão de sair do país."

Mesmo tendo ganhado um prestigioso prêmio internacional por sua campanha, a ativista não conseguiu impedir a construção da rodovia ligando Moscou a São Petersburgo. Ela acha, no entanto, que os planos originais foram modificados e, assim, uma área menor da floresta foi destruída.
Da Estônia, ela continua a incentivar outros ativistas que ainda estão na Rússia por meio de seu site.

Debandada
Entre os anos 2000 e 2014, aproximadamente 1,8 milhão de russos deixaram o país, de acordo com Alina Polyakova, diretora de pesquisa para a Europa no think tankAtlantic Council, um centro de análises políticas em Washington.

Ela afirma que esse movimento tem se intensificado e que a migração de tanta gente - em sua maioria jovens com alta escolaridade - é uma "ameaça significativa à segurança nacional da Rússia".

Calcular o número exato de pessoas que abandonaram o país é complicado, pois a maioria mantém seu passaporte russo mesmo quando consegue documentos de outros países. Mas as estatísticas oficiais do país apontam que 350 mil pessoas deixaram a Rússia só em 2015 - dez vezes mais que em 2010.

No último andar de um shopping em Berlim, a capital alemã, outra expatriada conta sua história à BBC.

Asya Parfenova, de 33 anos, era jornalista em Moscou e foi parte do movimento de Observação das Eleições em 2012 e 2013. Ela escreveu sobre situações como o transporte de pessoas entre diversas regiões eleitorais - aparentemente para votarem mais de uma vez - e urnas suspeitas.

"Sou provavelmente a única dos meus amigos que participaram da observação das eleições que nunca esteve na cadeia", diz.

A jornalista criou uma empresa que lhe permitiu conseguir um visto de trabalho na Alemanha. Ela hoje administra um Escape Room - um espaço para um jogo em que os participantes ficam trancados em um quarto e precisam resolver diversos enigmas para poder escapar.

"Gosto de regras claras, e não temos isso na Rússia", diz ela. "O governo está sempre vendendo a ideia de estabilidade, mas na verdade o país é o lugar menos estável possível no momento, porque ninguém consegue prever o que vai acontecer amanhã ou como as leis vão passar a ser interpretadas - e isso é muito ruim para os negócios."

Parfenova diz que muitos empreendedores russos de sucesso estão tentando fincar os pés em mercados estrangeiros. "Eles querem preparar, digamos, uma 'rota de saída', um refúgio seguro caso se torne insustentável continuar na Russia."

Hora de dar tchau
A palavra "poravalism" - que dá a ideia um ideia de um movimento da "hora de cair fora" - virou até uma gíria, segundo o crítico de música Artemy Troitsky, que também trocou sua terra natal pela Estônia.
Em 2011, ele e outros diversos intelectuais e representantes da oposição participaram de protestos contra fraudes nas eleições. Todos usavam fitas brancas, e Putin os ridicularizou dizendo que elas pareciam camisinhas. Em uma resposta bem humorada, Troitsky subiu ao palco vestido com uma capa branca emborrachada.

No mesmo ano, ele enfrentou uma enxurrada de processos por difamação. Mas o que o fez deixar o país também foi a preocupação com os filhos.
Logo após a Russia anexar a Crimeia, em 2014, e a guerra na Ucrânia que se seguiu, Troitsky diz ter visto surgir um "perverso festival de nacionalismo, militarismo e ortodoxia".

"Passava mal com as coisas que meus filhos acabavam ouvindo na escola. Minha filha me disse que 'fascistas estavam prestes a invadir o país e que tínhamos que nos defender, e que Putin era uma ótima pessoa etc. etc.", conta ele, que, apesar de tudo, diz ter muitas saudades de casa e continuar imerso na cultura russa.

Ele às vezes visita o país, e diz ter esperanças de poder voltar de vez.
Gerações mais novas, no entanto, talvez não sejam tão apegadas, ele ressalva. Só um quarto dos filhos dos seus amigos, jovens de 20 e poucos anos, ficaram no país. O restante está estudando, trabalhando e construindo sua vida no exterior.

Londres é um dos destinos populares entre os russos que decidiram deixar o país.

Um dos que moram na cidade, Mikhail Khodorkovsky passa a maior parte do seu tempo na internet, tentando modificar seu país pelo lado de fora.
Ele comandava a petrolífera Yukos antes de ser preso, em 2003, sob acusações vistas como tendo motivações políticas. Depois de dez anos atrás das grades, ele escreveu a Putin pedindo sua soltura para que pudesse dizer adeus à mãe, que estava morrendo no exterior. Mas uma vez fora do país, recebeu alertas de que, caso voltasse, seria alvo de novos casos criminais.

Assim como Chirikoba, Khodorkovsky hoje vê a internet como seu "campo de batalha". Diz que as pessoas podem pensar que ele, do escritório de sua fundação, a Open Russia, estaria por fora da realidade do país. "Eu preciso convencê-los do contrário. Então vivo realmente o tempo todo no mundo virtual. É uma escolha que fiz."

A voz de quem fica
Questionada sobre o que ama na Rússia, Nadya Tolokonnikova responde: "Isso é como perguntar o que você ama em sua mãe. É simplesmente minha mãe, e não consigo me imaginar minha vida sem ela."

Tolokonnikova foi alçada à fama aos 22 anos, quando ela e outras duas artistas da banda punk Pussy Riot foram presas por cantarem "Virgem Maria, mãe de Deus, nos livre de Putin" na Catedral de Moscou.

Tolokonnikova passou quase dois anos em um campo de detenção, costurando uniformes da polícia por 16 horas por dia. Mesmo assim continuou comprometida a permanecer no país.

"A língua é o fator número um, porque me sinto uma idiota tentando expressar meus pensamentos em uma língua diferente. Você não consegue usar detalhes, nuances e melodia em uma língua estrangeira da mesma forma como faz com a sua. Isso é precioso para mim. Além disso, há a cultura, os ícones e a religião. O cinema e a literatura. O povo russo é selvagem, perigoso, criativo e extremamente corajoso", afirma ela.

"Eu amo fazer parte dessa comunidade de pessoas corajosas que estão arriscando suas vidas para mudar seu país. Dá um sentido para minha vida."

Depois de ser libertada, ela fundou um site de notícias independentes focado no sistema de Justiça, o MediaZona. Também criou o Zona Prova, que faz campanha por melhores condições prisionais.

Ela diz ter visto diversas presas gravemente doentes terem a medicação negada enquanto estava atrás das grades em Mordovia, no norte do país.
Tolokonnikova diz que a maior parte de seus leitores têm menos de 35 anos, mentes inquietas e estão impacientes por mudanças. Ela acredita que uma sede por aventura, por ações significativas e por orgulho - que não pode ser confundido com nacionalismo - talvez faça que alguns jovens não saiam do país e traga outros de volta.

As pessoas que protestaram contra corrupção em diversas cidades neste ano também são motivo de esperança para ela.

"São os verdadeiros patriotas. Não o tipo de patriota apoiador de Putin, que prefere viver no exterior e ganhar dinheiro com a indústria de petróleo e gás. As pessoas protestando nesse momento contra Vladimir Putin querem tornar a vida melhor para o seu país", afirma a ativista.

"Eles querem desenvolver a economia, a arte, a mídia. Querem ter canais de TV melhores, não só essa maquina de propaganda oficial que a televisão é hoje."


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